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33 quilômetros


[18 de julho de 2018]



No último dia 7 de julho, na cidade do Rio de Janeiro, me programei para visitar dois eventos com duração de algumas horas: uma performance de Ayrson Heráclito dentro da instalação Rhodislândia, de Hélio Oiticica, no espaço OM.art, no Jockey Clube, no Jardim Botânico; a exposição-evento coletivo “Greve geral”, no Espaço Cultural Phábrika, em Fazenda Botafogo. A performance de Ayrson começava às 15h e a outra programação às 16h. Como atualmente moro em Copacabana, fazia mais sentido ir ao primeiro para depois acompanhar o segundo.

Visitei a OM.art e vi parte da performance “Buruburu” de Heráclito. O público era composto, aparentemente, por um misto de pessoas que já frequentam o circuito das artes visuais (artistas, colecionadores, curadores, galeristas, jornalistas, etc) e frequentadores do Jockey Clube que pareciam ter sido pegos de surpresa. Esbarrei com alguns colegas e comentei que depois iria para a Phábrika. Nenhum dos ali presentes conhecia o espaço e logo eu explicava que se localizava no bairro de Fazenda Botafogo, próximo à estação de metrô.

Era curioso notar duas reações típicas da geografia cultural carioca depois desse anúncio de sua localização. Primeiramente, um arregalar de olhos que trazia em si a expressão de “uau, você vai até o outro lado da cidade?”. Em um segundo momento, todos, sem exceção, verbalizaram mais ou menos a mesma frase: “mas não tem metrô em Acari/Fazenda Botafogo... o que tem lá é trem”.



A associação de um bairro com o trem, no pensamento hegemônico da Zona Sul carioca, é um modo de dizer que se trata de um bairro “suburbano”, ou seja, “longe”, “distante” e por vezes visto como muito “perigoso”. Quando a Zona Sul representa o centro da mobilidade para alguém, qualquer localidade para além da Tijuca – e para além da linha 1 de nosso pequeno metrô – roça esse imaginário do cafundó. Peguei o metrô no bairro de Botafogo e, vinte e três estações depois, estava em Acari/Fazenda Botafogo – sim, o que há ali é uma estação de metrô.[1]

Trinta e três quilômetros separam esses dois Botafogos presentes na mesma cidade do Rio de Janeiro. Essa contagem de quilômetros é – com variações dependendo de cada artista – aproximadamente o tanto que a maioria dos artistas apresentados em “Greve geral” percorre periodicamente para ir de encontro aos equipamentos culturais distribuídos pela Zona Sul e Centro de nossa cidade – sejam as galerias, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage ou as instituições do Centro, como o Paço Imperial, o CCBB ou – já no leito de morte – a Caixa Cultural.

Na Phábrika havia um grupo de vinte e sete artistas – em sua maioria alunos da Escola de Belas-Artes da UFRJ - que, das 16h até a noite, experimentou linguagens desde mídias mais tradicionais como a pintura até projeções de vídeo. Performances eram anunciadas através de um jogral que nos chamava para os diferentes espaços em que elas começariam. Devido à área ampla da Phábrika, os corpos do público se distribuíam entre as performances, as instalações, as salas em que objetos eram mostrados e os espaços usados para conversar não apenas sobre arte, mas também sobre a vida.

O que era ali compartilhado por esse grupo dialogava com questões iminentes tanto na produção de arte contemporânea nos últimos anos, quanto no senso comum de um país em crise política, econômica e identitária como o Brasil. Havia espaço para o que poderíamos chamar imediatamente de “arte política”, mas também para olhares que traziam proposições menos diretas e com mais camadas de interpretação. Havia espaço até para o humor - esse elemento que curiosamente parece pouco em voga em momentos de tantos gritos e poucos sussurros. Tratava-se certamente de potente um espaço de experimentação.

Ao deixar o espaço e me encaminhar novamente para o metrô, fiquei a me perguntar: será que o público frequentador do Jockey Clube iria até a Phábrika ver essa mesma programação? E se houvesse a mesmíssima programação com Ayrson Heráclito em Fazenda Botafogo – um artista que certamente aceitaria o convite –, será que iria? Trabalhando há mais de um ano no MAC Niterói e presenciando a invisível dificuldade que muitas pessoas tem em cruzar a ponte Rio-Niterói, respondi a mim mesmo que não, a grande maioria do público de artes visuais não iria até a Phábrika.

Essas constatações me trouxeram à memória minha própria trajetória – um ex-morador de Jacarepaguá que por anos também atravessou aqueles trinta e três quilômetros – e me levou a valorizar ainda mais a efemeridade da “Greve geral”. Por mais que o público frequentador fosse massivamente de alunos de artes visuais, ali estavam uma ou outra pessoa que moram nos arredores da Phábrika e que espiavam os acontecimentos de maneira curiosa. Dessa forma, quem sabe, se cria um público frequentador e futuramente questionador quanto às artes visuais e as imagens na contemporaneidade. Assim, com o tempo, a extensa área chamada geralmente de “subúrbio” – muito maior em tamanho do que a Zona Sul e o Centro juntos – gera algumas programações independentes nos bairros que, infelizmente, não são as meninas dos olhos da administração pública municipal.

É curioso notar que as mesmas áreas admiradas/exotizadas por Hélio Oiticica, como o Morro da Mangueira, seguem a agir no imaginário artístico carioca para o público da Zona Sul – assim como o importante episódio em que a escola de samba baixou no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1965, e foi barrada. A pergunta que fica é: quando o fluxo deixará de ser unicamente “do subúrbio para a Zona Sul” e se transformará em vias de mão dupla?

Talvez “Greve geral”, ao propor uma programação feita “do subúrbio para o subúrbio”, nos ofereça um bom ensaio como resposta.


[1] A estação mais próxima de trem seria Barros Filho, na linha roxa da Supervia que conecta a Central do Brasil a Belford Roxo. Esta estação está aproximadamente a dois quilômetros do Espaço Cultural Phábrika.


(publicado sobre a ocupação/exposição “Greve geral”, realizada na Phábrika, no Rio de Janeiro, em 07 de julho de 2018)
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