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A bioarte como ponto de partida

[04 de setembro de 2014]



Ao ser convidado a escrever um texto que versasse sobre o tema da bioarte fiquei intrigado e comecei a fazer um vocabulário visual de imagens que dialogassem com esse universo. É possível se lembrar das diversas aquarelas feitas por Dürer em que representava recortes da natureza – detalhes da vegetação e diversos animais se configuram como algumas das imagens mais realistas naquilo se convencionou chamar por Renascimento.
Posteriormente, poderíamos elencar também os diversos estudos científicos realizados durante o século XIX; como se esquecer das célebres viagens latino-americanas de Humboldt, da expedição Langsdorff e dos trajetos de Spix e Martius? Esses homens que desbravaram as consideradas selvagens terras americanas vinham em nome da ciência e da vontade enciclopédica de se catalogar o mundo ao seu redor.

Porém, ao se usar a palavra “bioarte”, geralmente não estamos nos referindo aos diversos momentos da história da arte em que imagem e biologia se cruzaram. Por mais que, diferente dos movimentos de vanguarda, inexista um manifesto que tente circunscrever as diretrizes dessa produção, parece ser costumeiro enxergar esse campo como relativo aos artistas que se utilizam de processos típicos das ciências biológicas para a criação de imagens. Como diz a artista portuguesa Marta de Menezes em entrevista recente, a bioarte diz respeito a uma alteração do ambiente de trabalho do artista, ou seja, o laboratório se transforma em ateliê e os métodos científicos não são instruções autoritárias, mas percursos de experimentação para se obter resultados que se colocam numa fronteira entre as artes visuais e a ciência.[1]


Nesse sentido, os trabalhos que compõe a ainda jovem estrada daquilo que se convencionou chamar por bioarte geralmente tangenciam questões que também perpassam a prática científica, tais como o uso de organismos e seres vivos, além das implicações éticas que essas operações trazem ao debate público. Como bom exemplo disso, cabe lembrar um trabalho de 1997 realizado pelo artista brasileiro Eduardo Kac, em São Paulo. Intitulado “Time capsule”, se tratava do ato de implantar em seu corpo, no calcanhar esquerdo, um microchip que continha informação de dados relativa à identificação do seu portador. Uma tecnologia usada para identificar animais perdidos foi, então, utilizada para também um animal, porém capaz de autoprogramar o uso desse artefato.

Devido ao fato desta proposição artística partir da necessidade de uma pequena, mas ainda assim necessária intervenção cirúrgica no corpo do artista, a instituição que abrigaria o projeto declinou a proposta alegando motivos de segurança. Eduardo Kac, de todo modo, conseguiu apoio de um segundo espaço expositivo e concluiu o implante de sua cápsula do tempo em seu corpo. Como ele relata em seu próprio website, trata-se de um questionamento em torno da importância do vínculo entre corpo humano e tecnologia digital na contemporaneidade.[2]




Se o espaço abaixo da terra já foi o refúgio de diversos objetos que se desejou que fossem preservados rumo ao futuro, o nosso corpo humano seria, portanto, o novo casulo para resguardar informações a respeito de nossas vidas. A fotografia e o vídeo, portanto, perderiam seu lugar central de documentação e as informações em bits se configurariam como nossas memórias centrais.

Um gesto como esse, em que um corpo estranho adentra o organismo vivo de Eduardo Kac poderia, portanto, ser considerado como um exemplo de bioarte. O artista brasileiro é considerado um dos grandes expoentes dessa área de pesquisa e atualmente é professor no School of the Art Institute de Chicago. Em 2000, tentou trazer ao público um de seus projetos mais polêmicos, a coelha Alba. Modificada geneticamente em um laboratório francês, se trata de uma coelha que, quando exposta a determinado tom de luz azul, apresentava sua pelugem fluorescente em verde. Mesmo tendo seguido a orientação de Kac e tornando possível esse corpo animal que poderia ser colocado em diálogo, por exemplo, com a importância da cor no campo da pintura, o laboratório se recusou a entregar o animal ao artista causando uma polêmica com grande projeção internacional. Até que ponto experiências assim podem ser consideradas arte? Por outro lado, qual o limite entre um exercício significativo da ciência e pesquisas que parecem menos importantes?

Mesmo que alguns resultados dessas experiências científico-artísticas sejam vetados ou tenham um resultado cujo acesso não se dá através da observação direta (se aproximando da arte conceitual), tenho a impressão de que essa produção de imagens traz à tona o importante e complexo estado de encontro entre duas experiências: a vida e a ciência. Trata-se de colocar sobreposto o ato de observar o mundo e de tentar compreendê-lo pelo viés da análise.

Sob o norte da arte, felizmente, podemos tanto descontruir as certezas da ciência transformando-a em ficção, quanto também ver as quadro paredes de um laboratório por uma perspectiva política. Mais do que trancar essas produções artísticas pelo nome próprio da bioarte, fica o convite para que esse termo seja um ponto de partida para a ampliação dos modos de contemplar o mundo.



[1] CARDOSO, Cristina de Oliveira & MENEZES, Marta de. “Biologia como mídia: entrevista com Marta de Menezes” in Revista-Valise, Porto Alegre, v. 4, n.7, julho de 2014. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/RevistaValise/article/view/40648/30722 [acessado em 23 de julho de 2014].
[2] http://www.ekac.org/timec.html [acessado em 23 de julho de 2014]


(texto publicado na primeira edição da revista "Escafandra", de Oaxaca, México)
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