A casa dos pais
[18 de novembro de 2014]
(para Eduardo Coutinho)
O desejo de realizar a presente exposição veio do trajeto entre a Lapa, bairro do Rio de Janeiro onde resido há quatro anos, e a Rua dos Biólogos, em outro bairro carioca, Jacarepaguá, endereço onde vivi por mais de duas décadas com a família. Naquele lugar entre a felicidade por rever a figura materna e a indignação pelo trajeto de mais de uma hora, me peguei a pensar como era estranha essa fisicalização da distância de um espaço que um dia julguei ser meu e que agora parecia ser tão mais da “outra”, da senhora minha mãe. Como é estranho se concentrar na ideia de que é preciso se planejar e organizar o tempo para ir até a casa que agora é dela e ver o então quarto meu esvaziado de objetos pequenos, mas ainda a ostentar a cama, o armário e o guarda-roupa que mais parecem congelados no tempo ou já no estatuto de uma instalação permanente dentro do cubo branco que esse lugar de descanso se tornou.
Após conversar com os dez artistas presentes nessa exposição nos últimos meses e explicar um pouco o lugar de origem desse anseio curatorial, eis que percebo estarmos sentados durante a montagem compartilhando nossas biografias em torno dos trabalhos a serem alçados para as paredes. O fato de parte desse grupo de pessoas ter se conhecido durante as rápidas horas de montagem e problematizarem a relação entre produção de arte/imagem e autobiografia de modo tão transparente e informal, mas igualmente capaz de pensarem esses dados também sobre uma perspectiva crítica quanto às suas trajetórias como artistas, me fez crer que esse encontro foi especial.
Temos, portanto, distribuídos pelos cômodos da Casa Contemporânea (edifício esse que foi por longo tempo a residência de uma família com ascendência espanhola) uma colcha de retalhos de modos de distanciamento e aproximação de figuras paternas e espaços anteriores de residência. Alguns de nossos pais tem rosto, outros tem mãos habilidosas para a costura e para seguir as linhas de páginas de livros. Algumas de nossas casas tinham quintais para acúmulos de objetos por décadas, outras tinham buracos na parede que precisavam ser tampados com cartazes publicitários. O som e o cheiro da panela de pressão ativa a memória de uns, ao passo que o sal grosso sai da cozinha e é matéria para a escultura que é a passagem do tempo. Por sete vezes uma mãe recebeu as chaves de seu novo lar e este também foi o número de desenhos feitos por um rapaz a observar os cômodos de sua casa por diferentes perspectivas. Uma foi a parede destruída de uma casa para que, um dia, dois cômodos se convertessem em outro um - mas o rastro da queda permanece.
Penso que este encontro dialoga com o último dado numérico: ocupamos essa residência e tentamos transformá-la, novamente, em um espaço único (uma exposição), com a consciência e desejo de deixarmos nossas pequenas marcas – nos parafusos quebrados dentro das madeiras ou nos buracos feitos pelos suportes de televisores. Creio, de modo análogo, que as diferentes perspectivas através das quais os artistas aqui reunidos trabalham diz respeito a uma vontade de escavar parte de suas memórias familiares para compartilhar com o outro, mas com a certeza de que o tempo agirá sobre os objetos artísticos daí derivados e que a poeira, inevitavelmente, tomará conta de nossas histórias.
Dos tons de dourado ao vermelho retirado da capa de um livro, passando pelo peso plúmbico do grafite e o contraste entre o vapor d’água e as embalagens coloridas para consumo; eis aqui o nosso elogio à vida, ao contar histórias e à possibilidade de se fazer arte e curadoria olhando o mundo de um ônibus que ia da Lapa para Jacarepaguá – e que, mais do que isso, vai do artístico para o banal (e vice-versa), sem medo de ser feliz e sem ponto final.
(texto curatorial da exposição "A casa dos pais", realizada na Casa Contemporânea, em São Paulo, entre 25 de outubro e 22 de novembro)