A grande onda
[03 de novembro de 2011]
Entre 11 de outubro e 6 de novembro é realizada a exposição “Pintura antifurto”, de Pedro Victor Brandão, na Casa França-Brasil, no Centro do Rio de Janeiro. Trata-se de mais uma edição do projeto Ocupação Cofre em que artistas contemporâneos de diferentes gerações lidam com o espaço destinado ao cofre do edifício projetado por Grandjean de Montigny, um dia parte da Praça do Comércio e sede da Alfândega do porto carioca.
O trabalho do artista, em primeira instância, se diferencia de ocupações anteriores devido ao seu diálogo explícito com a história de nosso patrimônio. Desde a porta é possível ver um retângulo (56x156cm) à altura do espectador e que dá conta do espaço horizontal da parede frontal. Ao se olhar de perto percebemos que quatro fileiras de imagens de notas de Real dão corpo à forma geométrica. Vinte e quatro notas em cada linha. Magenta e branco dão os tons deste mosaico. Abaixo há uma bancada onde estavam à disposição do espectador, desde o dia da abertura, uma série destas notas. Agora lidamos com o vazio tal qual o branco desta “bandeira” de notas de vinte e cinquenta reais. A volta recodificada da moeda ao espaço (fantasmático) sagrado do cofre e agora destinado à arte contemporânea.
Podemos interpretar esse trabalho através da relação entre arte e política. Pedro Victor pôde fotografar individualmente notas manchadas pelo “líquido antifurto” presente em alguns caixas eletrônicos. Na tentativa de se violar a estrutura da máquina, geralmente com a utilização de explosivos, é liberado um líquido de cor magenta que impregna o papel-moeda e, por consequência, devido à determinação recente do Banco Central, o transforma em mero papel. A imagem do objeto resultante de um crime é transformada em arte. Aquilo que legalmente não tem mais valor financeiro volta ao seu estado inicial; elevado ao estatuto artístico, novamente poderá vir a ter valor, mas já dentro do mercado da arte. Somando à ironia deste imagem, o artista permite que o público leve para casa, gratuitamente, uma partícula do mosaico. Estes espectadores se tornam colecionadores e, devido à não reposição diária destes exemplares (assinados e serializados em seu verso), podem já especular sobre os valores possíveis para suas pequenas obras de arte.
Por quais outras vias de acesso, porém, podemos ler esta exposição? Retornemos a seu título: “pintura antifurto”. Existe alguma pintura exposta aqui? Não, temos o registro fotográfico destas notas que foram pintadas não pelo acaso (visto a intenção da violação), mas de modo “aleatório”. Esta obra foi construída de modo colaborativo; foi necessário existir um roubo para que estas notas fossem manchadas. Os modos como os caixas foram violados são proporcionais aos diversos tipos de pintura magenta. Há uma espécie de tensão entre fotografia e pintura, técnico e “artesanal” (apenas no título pictórico e não no ato, já que é uma máquina que a realiza, mesmo que acionada manualmente por humanos). Após realizar os cliques fotográficos, Pedro Victor teve um trabalho de curadoria: escolheu as imagens que dariam corpo à sua instalação e sobre estas explicitou o contraste entre mancha e nota em estado bruto. Deste modo, sobre a parede da galeria temos o embate entre a cor e o vestígio da morte da nota. Os ossos ainda se deterioram, mas isso não faz muita diferença; o cadáver já está exposto.
Formalmente, a organização destas áreas brancas, que remetem a camadas de uma mesma imagem, como se alguém houvesse rasgado sua superfície, faz lembrar a pintura do chamado “expressionismo abstrato”. Uma “desorganização organizada” e um peso pensado para as cores vistas, dentro deste recorte histórico, pontualmente na obra de Clyfford Still. Estalactites, montanhas ou uma fábula? Enfim, paisagem. O caráter horizontal da imagem contribui com esta apreensão. Seu formato dialoga diretamente com o da pintura de paisagem clássica, monumental ou privada, mas sempre com a intenção de ser uma janela e mostrar ao público a extensão de um espaço, seu panorama.
Tal modo de construir a visualidade foi recebido e configurado pela ainda incipiente fotografia durante o século XIX. De um Victor para outro. Uma das fotografias feitas por Victor Frond, posteriormente transformada em litografia para o livro “Brasil Pitoresco” (1858-1861), representa um panorama da “Entrada da Baía de Guanabara”. A imensidão do céu, a discreta, mas exuberante paisagem tropical carioca e embarcações enfileiradas a se aproximar, possivelmente, do Porto do Rio de Janeiro. E onde é realizada a exposição de Pedro Victor Brandão? Justamente no edifício em que um dia a Alfândega desse mesmo porto era sediada. Assim como os caixas eletrônicos e bancos, os portos também são espaços de troca financeira. Nesse sentido, as notas avulsas oferecidas pelo artista se transformam em pequenos cartões postais de sua (agora) paisagem fictícia. A natureza carioca é iguamente antifurto; qualquer tentativa de registro dela sempre será mero indício, assim como estes fragmentos de papel fotográfico. Do olhar estrangeiro e exotizante de um artista sobre uma cidade para a visada sobre o status quo da violência e economia no porto seguro de outro fotógrafo.
Na parte de baixo da imagem central de “Pintura antifurto” o contraste se dá de modo pontual: pequenas “manchas brancas” ao lado daquilo que realmente é a área manchada; acima, um contraste mais intenso dado pela extensão contínua de branco. A areia molhada pelo encontro da água e uma grande onda que se anuncia entre o horizonte e a margem. Micos deixam de ser dourados, onças tem suas pintas apagadas. Não há mais espaço para a apreensão tranquila da Baía de Guanabara. É preciso nadar contra a maré, subir nesta grande onda e impedir que ela se transforme em um maremoto social.