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A gula como problema artístico


[31 de agosto de 2008]

Peter Greenaway costuma dizer que não é cineasta; prefere ser tratado como um pintor que faz filmes. Em diversas entrevistas consultadas, o britânico possui uma postura severa para com a produção americana, chegando a afirmar que seus diretores “... não entendem sobre o que se trata de fazer metáforas em cinema. Eles são extremamente bons em fazer filmes corretos, com narrativas lineares, que entretém soberbamente. Mas eles muito raramente fazem alguma outra coisa”. [1] O que incomoda Greenaway é uma criação cinematográfica que tende a subordinar a potencialidade proporcionada pela utilização de imagem em movimento e do som à narrativa.

Com tais afirmações é inevitável termos em mente sua formação acadêmica, realizada em pintura. Por outro lado, em sua obra como um todo as possibilidades de narrativa não são meramente negadas, visando uma construção audiovisual baseada unicamente na tradição das imagens das artes plásticas. Peter constrói sim ficções, sendo algumas delas, inclusive, recheadas de diversos estranhos personagens. O que faz diferença em sua poética é uma preocupação clara em fugir do lugar comum, problematizando sempre os conceitos de linearidade narrativa, metalinguagem e, porque não, história da arte. Assistir a uma obra sua é lidar com recodificações claras de questões muito amplas e caras à produção artística como um todo.

Como ponto de partida para esta pesquisa, tomei como exemplo seu filme comercialmente mais bem-sucedido, intitulado “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante”, realizado em 1989. Dentre as diversas possibilidades de abordagem que poderia pensar junto a esta obra, resolvi optar por uma que julgo ser constante dentro de diversos filmes de Greenaway: a gula.

Um dos primeiros registros claros e objetivos da gula como tendência comportamental digna de preocupação, dá-se com João Cassiano, no século IV. Este, após conviver com alguns monges cristãos no deserto do Egito, tomou nota de oito de seus comportamentos mais nocivos. Encabeçando a lista, lá está a gula.   Mais tarde, diversos importantes nomes do cristianismo irão dedicar algumas linhas ao assunto, como por exemplo, Evágrio Pôntico, padre também do século IV:

A gula é a mãe da luxúria, o alimento de maus pensamentos, a preguiça de jejuar, o obstáculo ao asceticismo, o temor do propósito moral, a imaginação da comida, o delineador dos temperos, a inexperiência desenfreada, frenesi descontrolado, receptáculo da moléstia, inveja da saúde, obstrução das passagens corporais, gemido das vísceras, o extremo dos ultrajes, aliada da luxúria, poluição do intelecto, fraqueza do corpo, sono difícil, morte sombria. [2]

Como podemos perceber, em algumas escritas a gula torna-se inclusive o pecado capital mais grave, por poder conseguir levar seu portador a todos os outros (atuais) seis pecados. Para alguns teólogos medievais e renascentistas e até para a própria bíblia, o alimentar-se se torna um grande problema quando esquecemos sua função meramente fisiológica e começamos a nos deter sobre os pequenos ou grandes prazeres das bebidas e comidas degustadas. “Não estejas entre bebedores de vinho, nem entre comedores de carne, pois bebedor e glutão empobrecem, e o sono veste o homem com trapos”, já diz o livro de Provérbios. [3]

No caso do citado filme de Peter Greenaway, encontramos indícios de uma possível abordagem do tema em seu próprio título, que devidamente coloca um “cozinheiro” em seu início. Esta obra se desenrola em cima de, basicamente, os quatro personagens de seu título. O ladrão é o detentor de maior destaque e o grande guloso da película. Sua esposa por sua vez possui um comportamento completamente inverso ao do marido. Enquanto o personagem dele se põe a tagarelar durante todas as duas horas de filme, sua esposa é deveras silenciosa. Além disso, seus hábitos alimentares também destoam. O ladrão come praticamente sem parar as mais diversas especiarias, numa busca incessante por se adequar ao gosto refinado do cozinheiro francês; sua esposa, aparentemente mais acostumada com pratos finos, apenas se preocupa em comer calmamente e sofrer as conseqüências do comportamento agressivo do ladrão.

A mulher, se não é gulosa, por outro lado, tem uma fome sexual notável. Essa pode ser lida como conseqüência de sua desastrosa relação amorosa com o ladrão. De qualquer forma, merece atenção no que diz respeito às comuns tensões entre os pecados da gula e da luxúria, como também aponta Francine Prose. Os dois pecados são os únicos que também estão relacionados a um perpetuar da espécie, sendo essenciais à nossa sobrevivência e quase inevitáveis. Teólogos medievais, como Santo Agostinho, irão hierarquizá-los ou equipará-los. São Tomás de Aquino inclusive irá inverter a relação proposta por Agostinho, afirmando que “Eu não temo a impureza da carne, mas a impureza do desejo”.[4] As conseqüências para as atitudes luxuriosas de Georgina se enquadram nesse comentário de São Tomás. Ela trai seu marido e transa dentro da dispensa do restaurante.

Esta narrativa toda se passa em cerca de três ambientes: uma cozinha, um restaurante (chamado Le Hollandais) e um banheiro. Para cada ambiência cenográfica, uma cor diferente: verde, vermelho e branco. Quanto ao amante do título, ele acaba se transformando na solução de fuga possível para a esposa. Tão comedido quanto ela, eles iniciam um caso extraconjugal sem a menor necessidade de palavras. Ao contrário do verborrágico ladrão, eles dois conseguem estabelecer comunicação com meros olhares.

Greenaway consegue construir seu filme através de uma linguagem cinematográfica comedida no que diz respeito a movimentos de câmera e enquadramentos. O diretor economiza na edição de imagens e abusa dos planos-seqüência, além de se basear em travellings e planos que privilegiam a horizontalidade. Todo o tempo estamos a lidar com uma obra que conjuga pólos aparentemente opostos: a visualidade classicizante de uma direção segura e o comportamento do ladrão que, assim como os textos de teólogos medievais previam, se inicia com a gula e desemboca na concretização de outros pecados capitais, tais como a ira, a soberba e a inveja.

Com o desfecho do filme próximo, o ladrão descobre que está sendo traído. Rapidamente, após quebrar todo seu restaurante num acesso de raiva, ele muni-se com garfo e faca e grita diversas vezes: “Vou matá-lo e comê-lo!”. Tal ato não se concretiza, porém, o amante, que era um colecionador de livros, é assassinado tendo de engolir páginas e páginas sobre história da Revolução Francesa.




Sua esposa pede ao cozinheiro que asse o corpo de seu amante e, junto a toda a equipe do restaurante Le Hollandais, obriga que o ladrão pratique um ato de canibalismo. Pela primeira vez, este fica tão enojado a ponto de vomitar ao ver o prato que lhe é oferecido. Em seguida, é morto com um tiro. Neste exercício da gula, o pecador acaba punido.



Observadores atentos constatarão que, durante as seqüências filmadas dentro do restaurante vermelho, o ladrão e seus comparsas são acompanhados por uma extensa pintura, que durante todo o filme é repetida, sendo inclusive o pano de fundo para seus créditos finais. Trata-se do Banquete dos oficiais da Companhia de Milícia de São Jorge em Haarlem, de Frans Hals, datada de 1616.



Greenaway opta por seguir a tradição holandesa dos retratos em grupo nas suas opções de enquadramentos, além de colocar a reprodução da obra ao fundo do restaurante, da mesma forma como as milícias holandesas penduravam os retratos em seus espaços de reunião. O inglês está claramente a reler a história da arte e a tomar como modelo comportamental e estético de seus personagens os homens pintados por Frans Hals. Ambos são indivíduos cujo status social está em ascensão, levando-os à busca de notoriedade. Os do filme através do restaurante recém-aberto e da sua tendência a atitudes coletivas e irracionais; os holandeses através de seu próprio retrato, registro imagético que permanece resguardado, ecoando suas memórias. Como afirma Amy Lawrence,

As milícias eram sociedades de homens beberrões que tinham pouco a ver com um militarismo doméstico contra os espanhóis. Elas eram uma desculpa para se vestirem bem e ficarem bêbados com os rapazes... queixas barulhentas, bebedeira, os barulhentos tiros de armas de fogo, indisciplina no uso de pólvora e insultos às mulheres eram lugar comum… A gigante reprodução da pintura no restaurante é um ícone para mau comportamento… [5]

Penso que podemos prolongar esta leitura da gula também para esta obra de Hals. O próprio artista foi integrante da milícia de São Jorge, tendo, assim como seus companheiros, uma fortuna crítica que aponta para os pecados da carne – Arnold Houbraken, historiador do século XVIII, por exemplo, afirma que Frans costumava “encher a cara todo final de tarde”.[6]

Nesta obra, percebemos um elemento constante nos retratos de grupos holandeses, o banquete como propósito formal para transmitir a idéia de unidade e comunhão entre os homens pintados. Alois Riegl, historiador suíço, escreveu um extenso texto em que traça uma linha evolutiva desse gênero da pintura holandesa, colocando Frans Hals no cume de sua história. Segundo ele, o pintor nascido em Haarlem seria capaz de conjugar tanto a coordenação das figuras, que dão atenção ao observador externo, quanto a subordinação das mesmas, sempre entretidas com algum acontecimento interno ao espaço pictórico. Logo, Hals engloba coordenação e subordinação, coerência interna e externa ao quadro, fazendo correspondência à estrutura de crítica de arte proposta por Riegl.[7]

Fazendo jus às suas outras representações de banquete, Frans expõe os homens à mesa, todos portando taças de vinho, que orgulhosamente ostentam, mostrando-as uns aos outros. Além disso, nos detendo sobre os alimentos sobre a mesa, vemos carne de porco, animal esse tradicionalmente também relacionado ao pecado da gula. É sabido também que, devido ao alarde e ao rombo financeiro que os banquetes faziam, chegando a durar até mesmo uma semana, algumas regiões criaram leis que obrigavam as festas a serem interrompidas caso ultrapassassem quatro dias de duração. [8]

Diferente do filme de Greenaway, em que o personagem guloso é devidamente punido, Frans Hals constrói um monumento ao joie de vivre; sua pintura celebra uma efemeridade constante aos doze homens sentados à mesa. É um monumento ao mundano, ao passageiro, aos prazeres de se comer, beber e viver. Se há algum espaço para condenação deste comportamento, ele está fora da tela – cabe ao espectador julgar positivamente ou negativamente esses homens. Contextualizando a pintura e a inserindo num panorama do Seiscentos holandês, não nos parece improvável que seu efeito moralizante estivesse justamente nessas entrelinhas, da mesma forma como outras obras de Hals que, para alguns historiadores, possuem tendência moralizante discreta – como ditava o calvinismo, a religião da maioria holandesa desse recorte histórico.

Falando em discurso moralizante, religião e a possível dicotomia entre celebração e condenação, julgo podermos conjugar como a pilastra final desta pesquisa uma outra pintura de outro holandês – o célebre Hieronymus Bosch. Nascido na isolada cidade de ‘sHertogenbosch, o pintor possui uma fortuna crítica extensa e irregular, mas que dialoga com uma possível dicotomia entre celebração ou condenação dos temas de suas pinturas. Seria Hieronymus um herege que através de suas obras cultuava o demônio ou, num percurso inverso, um católico fervoroso que buscava a aplicar funções didáticas às suas pinturas?

Domenicus Lampsonius, poeta e humanista flamengo, dedica algumas linhas ao pintor: “Por quê, Hieronymus Bosch, esses teus olhos atônitos? Por quê essa palidez no rosto?”. [9] Faço de suas perguntas as minhas ao me deparar com sua mesa dos sete pecados capitais, de 1480/1500. Ao centro, Jesus Cristo mostra suas chagas. Abaixo dele, lemos a frase “Cave cave deus videt”, ou seja, “Cuidado, cuidado, o Senhor vê”. Os pecados que o circundam são percebidos por seus olhos. Dentre eles, obviamente temos a gula.



Trata-se de uma cena que se passa no interior de uma casa. Um homem gordo, sentado à mesa, devora algo que se assemelha ao osso de um animal e fita o espectador. Implorando por comida, na altura de seus joelhos, uma estranha figura, típica da pintura de Bosch: um anão, uma criança ou simplesmente mais um de seus estranhos seres? Do outro lado, já tendo chutado para longe a cadeira em que estava sentado, outro homem bebe vorazmente. Abaixo, mais comida está sendo preparada. À esquerda, possivelmente a esposa de um dos homens representados, chega, passivamente, com mais comida, pronta a servi-los e a cumprir com seu papel de mera dona-de-casa.

O que a representação da gula dentro da mesa tem de diferente e essencial para esta análise é a associação entre comida e excremento, que se dá sutilmente através da representação de uma proto-latrina no lado esquerdo desse cômodo. Comida e dejeto estão diretamente relacionados, já que uma das únicas certezas que temos quanto à nossa alimentação é que parte dela será expelida. Podemos somar a essa associação criado por Bosch o próprio estado animalesco desse glutão comedor de carne de porco (segundo o historiador Claus Grimm), que pode ser lido então como o próprio animal, imerso dentro de seu próprio excremento. Enquanto em Frans Hals não existe um espaço para essa associação, o mesmo não pode ser dito quanto ao filme de Peter Greenaway, em que, logo na primeira seqüência, Albert Spica obriga um homem a ingerir suas próprias fezes, dando prosseguimento à associação entre homem a animal irracional.

Também encontramos um comportamento dos homens representados em Bosch muito semelhante à forma como os personagens de Peter Greenaway se relacionam entre si e com o espaço cenográfico do restaurante, que chega a ser destruído pelo personagem principal. Diferindo, temos em Greenaway uma personagem feminina que consegue punir seu marido guloso, ao passo que em Bosch a mulher parece apenas cumprir uma função socialmente estereotipada: preparar mais comida e colocá-la à disposição de seu parceiro. Por outro lado, também poderíamos ler esta atitude de outra forma: como não percebemos nesta figura nada que indique que ela estivesse a comer vorazmente, podemos julgá-la como uma inteligente mulher, que apenas está a incentivar o pecado alheio, observando tudo com um olhar um tanto quanto cínico.

No que diz respeito às relações entre Bosch e Hals, devemos ter em mente, inicialmente, que ambos são holandeses, logo a obra de Frans Hals se dá num lugar cujo espaço de experiência já havia sido marcado pelas pinturas de Hieronymus. Além disso, estamos lidando claramente com ações que acontecem em torno de mesas, sendo a obra de Bosch inclusive pintada sobre o tampo de uma. Se em Hals lidamos com um retrato que parece querer registrar e tecer um “elogio da loucura”, no melhor sentido erasmiano, em Bosch parece ser difícil nos descolarmos de sua aparente função didática, principalmente devido à inclusão de Cristo ao centro, e à construção formal que remete aos olhos de Deus. Ainda contamos com mais duas legendas, citações da bíblia, que Bosch introduz. Acima, “Porque são gente falha de conselhos e neles não há entendimento. Oxalá eles fossem sábios! Que isto entendessem, e atentassem para o seu fim!”; abaixo, “Esconderei o meu rosto deles, verei qual será o seu fim”. [10] Hieronymus ainda tem o trabalho de incluir mais quatro círculos, um representando a morte e outro o Juízo Final, e por fim a escolha que deve ser tomada por nós ao contemplarmos a mesa – ir a favor dos pecados e cairmos no Inferno, ou aceitarmos sua postura didática e subirmos ao Paraíso. Como se percebe, Bosch está claramente a dialogar com uma tradição medieval das representações cristãs.

Podemos ler as três obras aqui escolhidas como elogios à loucura? Julgo que sim. Ao mesmo tempo em que as três condenam seus gulosos de diferentes formas, os três artistas se deram ao trabalho de não deixas suas condenações serem meramente panfletárias, o que me leva a pensar até que ponto as posturas desses três homens, enquanto indivíduos, também são de condenação.

Peter Greenaway, através da linguagem cinematográfica e de sua abordagem enciclopédica, cria todo um universo de pecadores, punindo das mais diversas formas seus personagens em seu filme. Frans Hals, se não pune objetivamente seus integrantes da Milícia de São Jorge, ao optar por retratá-los felizes em um banquete, os aprisiona à eternidade e permite que vejamos nesses novos burgueses e em sua organização um reflexo da mera ostentação. Hieronymus Bosch, perante a possibilidade de fazer uma obra meramente ilustrativa da gula – já que é o único que inclui sua representação dentro de um esquema maior, claramente católico e de reprovação – segue por outro caminho, detalhando o espaço cênico de seu glutão e, assim como as outras obras, legando a nós mais perguntas do que respostas.

Escrever sobre a gula pede uma escrita igualmente gulosa? Se fazer história da arte através de exemplos recortados de diferentes contextos culturais e da tentativa de relacioná-los a outras mídias, como literatura, música ou até mesmo teatro, é sinônimo de gulodice por parte daquele que escreve, podem me chamar de glutão. Com esta pesquisa espero ter exemplificado uma forma que considero mais flexível e menos evolucionista (historicista) de história da arte. De nenhuma forma se pretende estabelecer uma linha evolutiva das representações da gula. Muito pelo contrário, pretende-se demonstrar como artistas que aparentemente nada tem em comum, podem ser lidos em conjunto, cabendo a nós a missão de ressaltar suas semelhanças e discrepâncias.

Por fim, acho válido citar aqui as frases escritas pelo padre José de Siguenza, em 1605, quanto ao “Jardim das delícias” de Bosch, e estendê-las não apenas às três principais obras aqui abordadas, mas também à boa produção artística como um todo: “Yo confiesso que leo más cosas em esta tabla, em un breve mirar de ojos, que en otros libros en muchos días” [xi].


(texto apresentado e publicado nos anais do 17º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, em agosto de 2008, em Florianópolis)
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