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A nobreza do canibalismo


[21 de agosto de 2012]

O que seria uma “carne nobre”? Pela perspectiva de um churrasco, o termo diz respeito às partes mais suculentas da carne do boi. As partes assim coroadas são aqueles encontradas na parte traseira do animal e que se caracterizam por serem mais macias do que o restante do seu corpo. Se, por um lado, ao mastigar nossos dentes tem menos atrito, por outro, devido ao seu status diferenciado, somos socialmente convidados a saborear esta nobreza de modo mais detido.

Os filmes neste módulo se caracterizam, ironicamente, por lidar com um dos maiores tabus da cultura: a ingestão de carne humana por humanos. A palavra “canibalismo” deriva do espanhol, de “caríbales”, um termo que designava uma tribo situada nas Pequenas Antilhas, os caraíbas. Um dos traços culturais deles notados pelos “descobridores” de suas terras era a prática da antropofagia. No olhar do conquistador, canibalismo se tornou sinônimo de primitivismo; os índios se enquadrariam em um estágio mental semelhante ao dos animais e, por consequência, teriam uma disposição a estes atos de selvageria. Porém, como estudado pela antropologia, tal prática é comum a diversas culturas indígenas, mas sempre inserida em um contexto ritual; se come a carne do outro a fim de se apossar sobre o que há de mais sagrado, por exemplo, em um inimigo – seu coração. Ingerir o outro é explicitar seu poder sobre outra pessoa e, mais do que isso, sobre outra identidade de grupo.



Com essa proposição de tomar posse daquilo que nos ameaça, é possível destacar dois filmes desta mostra. Em “O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante” (1989, de Peter Greenaway), o dono do restaurante em que a maior parte das ações se sucede, Albert Spica, é também o líder de um grupo de ladrões. Expansivo e opressor, o personagem atordoa a silenciosa figura de sua esposa que se demonstra incapaz de se colocar contra sua verborragia. Ao surgir a figura de um amante, Spica brada repetidas vezes: “Vou matá-lo e comê-lo” Garfo e faca são portados e sua vontade de canibalismo é teatralizada.

O modo utilizado para cometer o assassinato do pivô deste adultério também engloba a alimentação: sendo o amante um personagem rodeado por livros, nada mais justo que ele seja torturado engolindo páginas de sua própria biblioteca. Revoltada e em parceria com toda a equipe do restaurante, a amante tem uma solução para se vingar: por que não cozinhar o corpo de seu amante e servi-lo ao próprio Spica? Tendo um corpo humano assado à sua frente, o personagem reage de modo contrário a todo o seu comportamento na narrativa – o silêncio o arrebata e a boca que tantos alimentos engoliu, vomita. Antes de disparar, o incrimina ao pronunciar uma simples palavra: “canibal”.



Com um mote diferente, mas chegando a um caminho talvez mais perverso do que o exemplo anterior, temos também “Escravas da vaidade” (2004, de Fruit Chan). Uma mulher com uma obscura biografia trabalha fazendo bolinhos em sua casa. Uma atriz de televisão, um dia popular, mas a enfrentar a passagem do tempo, a procura em busca destes petiscos que seriam um elixir da juventude. O que começa em um misto de humor e suspense dá corpo a um cinema do absurdo. O conteúdo vermelho presente nos quitutes é revelado após uma passagem da cozinheira em um hospital. Se suspeitávamos que se tratava de carne humana, nos surpreendemos com a dimensão de sua nobreza: é matéria advinda de abortos, ou seja, fetos. Em dado momento, a cozinheira descreve para sua cliente que os fetos ideais são aqueles do segundo trimestre, pois já começam a apresentar parte da estrutura óssea, algo nutritivo e importante para o rejuvenescimento. O estômago do espectador embrulha.

Ao detectar uma traição da parte de seu marido ausente, ela cria um plano inesperado: e se o feto que se desenvolve no corpo da amante fosse cozinhado e ingerido por ela? Nesse sentido, é inevitável lembrar que a personagem era incapaz de engravidar, ou seja, engolir o projeto do filho de seu marido é, de certo modo, tentar reparar uma ausência.

Dialogando com certo tom de fantasia deste filme, temos “Delicatessen” (1991, de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet). Sem uma vontade de convencer o espectador de modo realista, toda a narrativa aqui é centrada em um prédio que possui no seu térreo uma delicatessen, ou seja, uma loja de finas iguarias. Nos primeiros minutos já compreendemos que, na verdade, o seu dono, um açougueiro, a abastece com carne humana de seus novatos assistentes e nutre os moradores do edifício. O canibalismo aqui é às claras; as únicas desavisadas são as vítimas. Quando um aéreo e agradável artista de circo chega para servi-lo, esse sistema é desestabilizado. Sua competência artesanal e criatividade encanta a todos e seu assassinato é postergado ao ponto da filha do açougueiro se apaixonar. Confusão, um grande número de personagens, diálogos rápidos e uma edição de som primorosa dão os tons a esse canibalismo com tom de fábula.



Por fim, temos um filme mais próximo da ficção científica e de certo tom de teoria da conspiração: “No mundo de 2020” (1973, de Richard Fleischer). Em um momento da História em que a comida é escassa e artigo de luxo, são vendidos produtos nutritivos no formato de wafer. Desse contexto dado pelo filme, há um lançamento no mercado: “Soylent green” (que dá o título original em inglês) e que seria produzido com algas. Devido ao assassinato de um dos presidentes executivos da marca, um detetive se coloca a investigar sobre o processo de fabricação do produto. Não à toa, fazendo coro a estas “Carnes nobres” aqui comentadas, vem à tona que o verde desse pequenos biscoitos é apenas um modo de descolorir o seu vermelho originário da nossa própria carne. Em uma construção de linguagem que bebe diretamente do cinema policial, uma pergunta fica: é possível confiar nas indústrias alimentícias que nos circundam e cada vez mais nos entupirão de produtos artificiais?

Do micro para o macrocosmos; do desequilíbrio de uma família para o caos de uma fábrica com dimensão internacional. Um ato canibal é sempre sinônimo de perversão em qualquer um dos quatro filmes comentados. A nobreza aqui é apenas suposta: considerar a carne humana como “nobre” é inversamente proporcional quando se pensa que o homem se transforma em “plebe” para ingeri-la.




(texto produzido originalmente para o catálogo da mostra de cinema "Filmes à mesa", realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro entre 21 de agosto e 2 de setembro)
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