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"A reencarnação de Santa Orlan" e o martírio do corpo feminino


[02 de maio de 2012]



Uma sala de cirurgias. Paredes coloridas. Mesmo parecendo ter um considerável tamanho interno, este parece pequeno devido ao grande número de pessoas que se aglomeram. Os habitantes naturais do ambiente, cirurgiões, contrastam com as figuras dos repórteres que realizam incessantes entrevistas. Relógios decoram o fundo da composição do vídeo. Diferentes horários, diferentes referências geográficas: Paris, Nova Iorque, Toronto e Tóquio. O que está a acontecer? No centro de toda a baderna, uma mulher de meia idade, com roupas estranhas, tão coloridas quanto o seu cabelo, se movimenta de forma agitada: pula, dança, rodopia, ergue os braços. Lê poesia e deita à mesa de operações. Começa a ser marcada com canetas pelos cirurgiões. Alguns televisores ao seu lado mostram pessoas em diferentes partes do mundo. Elas fazem perguntas e a senhora exótica responde em francês, sendo imediatamente traduzida por outra mulher, também estranhamente vestida, para o inglês. A anestesia lhe é aplicada, mas ela não fica em estado inconsciente. Os médicos começam a fazer incisões em sua pele, os televisores continuam ligados, as perguntas das figuras por trás das telas pululam, assim como as dos repórteres. A mulher responsável por todo esta performance os responde, calmamente, enquanto sua orelha é retrabalhada por um cirurgião e sangue escorre pelo seu rosto. Três blocos de silicone são inseridos em seu rosto: um em seu queixo e um ao lado de cada sobrancelha. Seus lábios e suas bochechas são reerguidos. Após o término do processo seu rosto é enfaixado e ela deixa calmamente o ambiente, sendo perseguida pela imprensa. Quantas não são as perguntas que poderiam provir da simples observação desse evento midíatico? Quem é essa mulher, qual a razão da cirurgia e o por quê desse contato tão direto com a imprensa seriam apenas algumas das muitas que surgem numa primeira “apreciação” do vídeo (aspas pela dificuldade de se apreciar a planaridade do açougue registrado).

“A reencarnação de Santa Orlan” é um projeto contemporâneo de arte que, como o próprio título diz, foca na figura duma mulher, artista nascida no ano de 1947 em Saint Etienne. Sua carreira vem se desdobrando desde os anos 60. Inicialmente seu trabalho era em fotografia e, através de seu corpo esguio e nu, Orlan posava de forma acrobática, sendo registrada em preto-e-branco. A partir dos anos 70 ela começa a questionar de forma incisiva os processos de legitimação do circuito de arte através do trabalho “Le baiser de l´artiste” (“O beijo da artista”). Na década de 80 ela reapresenta algumas composições do barroco italiano através de vídeo-performance, tendo como principal modelo o “Êxtase de Santa Tereza”, de Gian Lorenzo Bernini (1647/52). Na década de 90, reunindo elementos de cada trabalho anterior e os elevando a enésima potência, ela inicia esta série de cirurgias plásticas, criando uma nova classificação para seu trabalho; do repetidamente utilizado pela crítica Body Art para Carnal Art, justificando que:

Contrary to Body Art, which is a different matter altogether, Carnal Art does not long for pain, does not seek pain as a source of purification, does not conceive it as a redemption. Carnal Art takes no interest in the result of plastic surgery, but in the process of the surgical-operation performance and the modified body having become the subject of public debate.[1]

Carnal Art é um projeto que está diretamente relacionado com a tradição do auto-retrato, como a própria artista também afirma. Dialoga com obras de diferentes pintoras, numa faixa que pode incluir de Sofonisba Anguissola até Cindy Sherman. Séculos de preconceito contra a produção artística das mulheres devem ser revistos quando uma artista como Orlan retira o seu corpo, o corpo feminino, do silêncio da preconceituosa sociedade artística e o coloca como objeto central de suas performances, o violando, o cortando, o repaginando.



Ao observar o trabalho penso nas origens na construção mística e social da mulher. Na mitologia grega a mulher surge como Pandora, na religião cristã surge em Eva. O poeta grego Hesíodo relata em sua “Teogonia” que a mulher teria aparecido como uma forma de vingança de Zeus em resposta a um roubo realizado por Prometeu. Pandora não surge por razões naturais, ela é artificialmente criada, à vontade de Zeus, e jogada sobre o mundo como uma maldição. Na bíblia, no Gênesis, Eva surge da costela de Adão. “Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: ‘Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem!’”[2]. Mais do que isso, Eva é a responsável pelo pecado original, por ter aceitado e ingerido a maçã oferecida pela Serpente que se encontrava na árvore do paraíso. Ambos as versões se caracterizam pela aparente passividade das suas figuras centrais, inclusive o comer da maçã de Eva, que apenas o faz após ser seduzida pela Serpente.

As representações do corpo feminino, tal como as desenvolve a filosofia grega por exemplo, assimilam-no a uma terra fria, seca, a uma zona passiva, que se submete, reproduz, mas não cria; que não produz nem acontecimento nem história e do qual, conseqüentemente, nada há a dizer. O princípio da vida, da ação, é o corpo masculino, o falo, o esperma que gera, o pneuma, o corpo criador.[3]

Para além das histórias da criação, o trabalho de Orlan pode ser relacionado diretamente com a questão do corpo feminino na própria França, seu país de origem. Devido ao lento crescimento demográfico da nação durante a primeira metade do século XX, o governo francês instaura uma política que pressiona as mulheres a ficarem grávidas, pelo menos de três filhos. A prática do aborto e a vontade de não ter filhos, é considerada um crime, levando a prisões que variavam de seis meses a dois anos. Mais uma vez, em plena “modernidade”, uma mulher submissa aos interesses alheios, especificamente do Estado. A Aliança Nacional pelo Crescimento da População Francesa cria “folhetos educativos”, explicando as causas para o não-crescimento do país, ditando diretrizes e comportamentos ideais para sua resolução.

Orlan quebra o silêncio. Indo contra os mitos da criação e inclusive contra a submissão da mulher na França, contrata cirurgiões e viola seu corpo. Torna questões públicas em privadas e vice-versa: tem o poder da ação, se coloca no lugar tradicionalmente dado a Adão, a quem Deus mandou que desse nome a todas as coisas. Ao trabalhar com o corpo, a artista toca em um dos pontos-chave do cristianismo. O corpo para Orlan não é sagrado, devendo ser violado. É um corpo reciclável, tenso, em aberto, em devir, sendo cada cirurgia uma nova reencarnação, rodeada de rituais que dialogam com o efeito barroco das igrejas seiscentistas, colocando a artista numa posição demiúrgica, a elevando ao status de santa. Não Maria, mãe de Cristo – seria mais adequado associá-la à Maria Madalena. A polêmica santa é tida por muitos como a prostituta citada na bíblia, e durante o século XVII era constantemente representada associada à idéia de vanitas: vaidade, vaidade, para quê tanta vaidade? De nada vale a vaidade, o tempo passa, o mundo se transforma, a morte chega e os prazeres do corpo não devem ser colocados em primeira instância. A glorificação da alma, o controle interno (decorum), deve sempre vir à frente. Orlan diz em uma de suas performances:

Skin is deceiving... in life, one only has one´s skin… there is a bad exchange in human relations because one never is what one has… I have the skin of an angel, but I am a jackal… the skin of a crocodile, but I am a puppy, the skin of a black person, but I am white, the skin of a woman, but I am a man. I never have the skin of what I am. There is no exception to this rule because I never am what I have[4]

Para poder agir sobre seu corpo através da cirurgia plástica é necessário capital. É possível mais uma vez relacionar esta obra às leis francesas, no que dizem respeito ao trabalho. A legislação funciona diferentemente para os indivíduos do sexo masculino e feminino, sendo a mulher colocada em segundo nível, impossibilitada de realizar diversas funções exclusivas aos homens. Ao reafirmar a todo o tempo o caráter comercial de seu trabalho, inclusive cobrando altos valores ao dar entrevistas, além de transmiti-lo ao vivo para galerias e museus de todo mundo, ela assume ser uma trabalhadora cujo próprio corpo é a fonte de renda. A cada vez que é observada, a obra é reapresentada, a transformando em uma obra-de-arte ambulante, criando uma tensão com as leis francesas que proíbem o trabalho de mulheres nos períodos noturnos, por exemplo. Dialoga com Andy Warhol, vai contra a (pseudo)-ingenuidade e hipocrisia existente na relação de alguns artistas com o sistema de arte. Trata-se do exemplo duma relação de resistência proposta por Hal Foster, já que provoca a “... luta imanente dentro delas [linhas sociais e culturais] ou por trás delas”[5].

Orlan lida também com a memória. Memória visual da mulher. Assim como Zêuxis e Rafael Sanzio[6] diziam se utilizar das mais belas formas das mais belas mulheres, a artista se apropria[7]. Só que as alterações realizadas em seu corpo não se adequam aos padrões estéticos contemporâneos, já que são todas referências a conhecidas obras da tradição da arte: a “Mona Lisa” de Leonardo da Vinci, a Vênus de Sandro Botticelli, as esculturas gregas de Diana, a “Europa” de François Boucher, a “Psyché” de Jean-Léan Gerome[8]. Desta forma, além de estabelecer interessantes referências, Orlan as faz renascer em seu próprio corpo, como um museu, as apresentando todas ao mesmo tempo. Ela é fruto de uma construção cultural de mais de cinco séculos que é impossível de ser rejeitada. A artista é um monumento vivo às mulheres e suas representações, geralmente realizadas por homens, inseridas numa estrutura patriarcal da arte. Os objetos cirúrgicos utilizados também são apresentados em suas exposições, podendo ser metaforicamente lidos como chagas da memória sócio-cultural da mulher – assim como o seu processo de recuperação dos cortes, todos registrados através de fotografias e também expostos. Ela diz que se doou à arte. Pretende após sua morte que seu corpo fique dentro de um museu e vire uma instalação definitiva e interativa, se tornando também uma forma datada de beleza feminina, possibilitando que futuros artistas também a revisitem.



Em uma entrevista dada a Stephan Oriach, presente no documentário “Orlan: Carnal Art”, a artista afirma que não acredita em uma história da arte que se baseia em alternativas. Seria mais adequado utilizarmos continuidades, presenças conjuntas – em vez de “ou”, colocarmos um “e”, assim como ela faz em seu corpo monumental. Reencarnando um pouco da tão idealizada imagem da mulher, possibilita um link, uma identificação e provocação para com a mulher na contemporaneidade, a mulher real, pública, que pode ver em seu trabalho uma forma de protesto. “Política” – esta é a palavra que repete ao final do vídeo, a intercalando com uma pausa preenchida pelo silêncio que reina(va) na relação entre arte, mulher e sociedade [9].


[1] Website oficial de Orlan: http://www.orlan.net
[2] SCHMITT-PANTEL, Pauline. “A criação da mulher”: um ardil para a história das mulheres? In: MATOS, Maria Izilda S. de e SOIHET, Rachel (Org.). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora da UNESP, 2003, pág. 135.
[3] PERROT, Michelle. Os silêncios do corpo da mulher. In: __________________. op. cit. , pág. 20-21.
[4] Orlan: Carnal Art. Documentário dirigido por Stephen Oriach.
[5] FOSTER, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, pág. 199.
[6] “Para pintar uma beldade, preciso ver várias beldades, mas, já que há uma escassez de mulheres belas, eu uso uma certa idéia que me vem à mente”. In: BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália 1450-1600. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, pág. 90.
[7] O termo apropriação aqui pode ler lido como na forma proposta por Foster: reinscrição dum signo num “sistema contramítico”, reorientando o mesmo dentro deste, construindo uma nova relação significado/significante. In: FOSTER, Hal. idem, pág. 223.
[8] “She chose Diana because the goddess was an aggressive adventuress and did not submit to men; Psyche because of her need for love and spiritual beauty; Europa because she looked to another continent, permitting herself to be carried away into an unknown future. Venus is part of the Orlan myth because of her connection to fertility and creativity, and the Mona Lisa because of her androgyny – the legend being that the painting actually represents a man, perhaps Leonardo himself”. In: ROSE, Barbara. Is it art? Orlan and the transgressive act – French performance artist Orlan. In: Art in America. Nova Iorque: 1993.
[9] “Our bodies are alienated by religion, by work, by sport, alienated by the dictated of the dominant ideology. So, as soon as you put the body on a stage and work artistically with the body you affect politics”. Orlan: Carnal Art.


(texto publicado originalmente na Revue Ganymède em maio de 2012)
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