Abraçar o capeta
[03 de julho de 2012]
“Every single night’s alright, every single night’s a fight and every single fight’s alright with my brain” (“Toda noite está tudo bem, toda noite é uma luta e em cada luta está tudo bem com o meu cérebro”) – com estas palavras, Fiona Apple segue rumo ao fim da música “Every single night”, primeiro single do seu novo álbum de grande título e abreviado por “The idler wheel...”. Após estes três versos, a cantora repete em tom de um sussurro intenso que “I just want to feel everything” (“Eu só quero sentir tudo”). Como transformar uma canção que gira em torno dos demônios que habitam a nossa mente e existência, não apenas durante a noite, mas talvez mais presentes nesse momento em que supostamente deveríamos nos encontrar nos braços de Morfeu, em um videoclipe?
A primeira imagem dos três minutos e meio de videoclipe já se coloca como o dedo que dá o primeiro empurrão numa longa fileira de dominós: a cantora aparece de olhos fechados, ao passo que uma mão arruma um polvo cenográfico sobre sua cabeça. Essa espécie de barreira transparente entre “ficção” e “realidade” é central à narrativa aqui proposta já que a todo o momento a direção de Joseph Cahill coloca em primeiro plano os artifícios da linguagem audiovisual – seja através de efeitos digitais pixelados, seja através da presença da equipe de iluminação que se transforma em um discreto grupo de dançarinos. Nenhum ato se dá de modo falsamente espontâneo e o valor de palavras como “consciente” e “inconsciente” é questionado.
Assim como a sinuosidade dos tentáculos de um polvo, os movimentos de câmera em sequência soam estranhos, assimétricos, bruscos talvez. Mas poderíamos dizer algo diferente sobre as dúvidas que pairam sobre as nossas mentes no momento anterior às decisões que tomamos? Essa instabilidade da imagem não seria proporcional ao nosso desejado e diário encontro com o sono, este momento em que entregamos nosso corpo ao encontro do inesperado e a caixa craniana se torna um palco onde sonhos e pesadelos são encenados?
Nosso cérebro é como o labirinto do Minotauro: sua matéria é arenosa e está prestes a se dissolver, assim como qualquer peça sabidamente ficcional e/ou mitológica. De todo modo, porém, não é de nosso desejo nos desfazer do lugar onírico e mais confortável em que este nos coloca, uma espécie de fuga do real. Neste sentido, o fato da cantora aparecer ao lado de um Minotauro e mesmo abraça-lo ao final desta sucessão de imagens pode vir a ganhar uma outra leitura: entremos nos labirintos e façamos a substituição da batalha contra os demônios por um abraço - abracemos o capeta.
Esse extenso número de amarras dos polvos também pode ser comparado metaforicamente às cordas que sustentam uma marionete. Não à toa, em diversos momentos do clipe, luzes, tal qual lasers, saem do corpo de Fiona Apple. No lugar de controlar seus movimentos, estas cordas se projetam pelo espaço como um asterisco deixando suas pontas soltas para que o espectador as una de algum modo ou creia em uma espécie de aleatoriedade “surreal” quanto à captura e edição de imagens.
Estas retas são as mesmas que protagonizam o relógio presente no videoclipe e também em outro tic-tac nem tão distante, no curta-metragem “O cão andaluz”, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, de 1928. Estes ponteiros são os que aparecem de modo literal através do título do filme de Stephen Daldry, “As horas”, de 2002. Como não se lembrar da sequência em que a personagem de Julianne Moore, Laura Brown, vê seu quarto ser inundado por dúvidas?
A estrutura mecânica que possibilita o funcionamento de um relógio à semelhante àquela que torna possível uma caixinha de música. “Every single night” tem sua estrutura melódica baseada nestas composições feitas para pequenos objetos. Através de seu canto somado à profusão de imagens de seu videoclipe, mais fechaduras do que chaves, nos colocamos ao seu lado e bailamos em torno de nosso próprio eixo. Em círculos, iludimos nossos cérebros e dizemos que “está tudo bem”.
(texto publicado originalmente na Revista Contemporartes, 03 de julho de 2012)