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Anticlássico

[16 de abril de 2014]




No livro “A arte moderna”, de Giulio Carlo Argan, publicado originalmente em 1970, o autor tem no título de seu primeiro capítulo uma problemática muitas vezes colocada não só pela história da arte, mas pela própria produção de imagens no mundo ocidental: “Clássico e romântico”. Com dois subcapítulos sobre a produção artística no século XIX, um sobre o neoclassicismo e outro sobre o romantismo, esse modo de se olhar para o suposto início da arte moderna ecoa outras escritas da história da arte que problematizaram de modos diversos um certo movimento pendular entre a linguagem clássica e a anticlássica. Heinrich Wölfflin, já em 1929 com seu “Conceitos fundamentais da história da arte”, lançava um olhar crítico e com saldo positivo para a produção do “barroco europeu”, formalmente oposta à arte do Renascimento, segundo suas palavras. Antes desses dois autores, claro, a digressão indireta sobre o linear em contraposição ao curvilíneo, ou ao italiano como resposta diferente ao nórdico (apenas como exemplo) já aparecia em uma série de autores cuja origem pode referir arqueologicamente a um dos pais da história da arte, o artista e escritor Giorgio Vasari.

Escrevo essa nota introdutória historiográfica, pois, ao entrar na exposição “Pulso alterado”, realizada no Museu Universitario de Arte Contemporáneo (MUAC), na Cidade do México, me veio imediatamente a vontade anticlássica das imagens selecionadas e, porque não colocar assim, a potência de pathos da curadoria. Como os próprios textos dos curadores Miguel A. López e Sol Henaro colocam, a proposta inicial da exposição era de lançar um olhar específico para a coleção do museu; coleção essa, importante frisar, um tanto quanto impressionante para um museu universitário. Colocando-me como brasileiro e no que conheço de meu país, creio que um museu também recente e cujo acervo se assemelha em potência ao do MUAC seria o do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP). Assim como no caso brasileiro, não só de artistas nacionais a coleção mexicana se forma, e era possível ver espalhados pelo espaço expositivo obras de Mónica Mayer, Ana Mendieta e Marina Abramovic, por exemplo.




Citando os curadores, “este conjunto de obras intenta mostrar como tienen lugar las experiencias humanas de desborde o exceso (emocional y sensorial, visual y performativo) y cómo pueden ser representadas. De igual modo, nos acercamos a la idea de delirio, aunque no desde su acepción clínica tradicional”. Tratam-se de trabalhos, então, que mais do que colocarem questões da forma ou do corpo anticlássico numa perspectiva histórica, refletem sobre o lugar na contemporaneidade do desvio, do excesso, de certa fuga de um senso comum da normalidade e daquilo que é socialmente regrado e aceito. As imagens aqui mostradas foram produzidas, através de diferentes linhas de pesquisa poéticas, por artistas com seus “pulsos alterados”, ou seja, a taquicardia é a força motora desses grupos de proposições.

Mas o que são, em imagem, essas alterações do pulsar? Com Armando Cristeto, por exemplo, o público podia ver lado a lado corpos masculinos seminus, socialmente autorizados e alegorias da masculinidade latina, e borboletas. “Apolos urbanos” (1980-1989), o título da série de trabalhos, nascem daí e com um olhar mais aguçado até mesmo um corpo nada apolíneo (no sentido clássico-vasariano) como o de um anão, é elencado a esse status. Ainda dentro da zona da representação do corpo masculino idealizado está o trabalho de Maris Bustamante, “Yo Tarzán, tú América” (1992), pautado em autorepresentações. A artista se coloca no lugar primitivista e patriarcal de Tarzan e, além de refletir sobre o apagamento da mulher como força ativa nas narrativas das explorações de território selvagem, reforça a discussão sobre a construção unilateral e imperialista do conceito de América. A que esse nome se refere? Será que, numa perspectiva estadunidense, algum dia os “canibais latino-americanos” serão capazes de articular as palavras para além do jeito pueril da fala da ficção de Tarzan?

“Pulso alterado”, porém, não se caracteriza como um projeto curatorial que se apropria apenas das discussões sobre corpo, exclusão e gênero; muitos outros trabalho selecionados aqui dialogam com a recorrente leitura da arte latino-americana através de uma perspectiva política. Logo na entrada estava o trabalho de Luis Miguel Suro, “Concepto espacial” (2004). Um díptico formado por uma escultura de amianto em forma de uma cúpula semelhante à da Basílica de São Pedro, projetada por Michelangelo e um vídeo. Tiros atravessavam a mesma estrutura colocada sobre um jardim caseiro. Outro elemento clássico era convertido, então, em um antimonumento; aquele dado histórico e que remete à (assim encarada) Idade de Ouro da arte ocidental vira uma cúpula que nada protege e nada condecora. Sua forma segue apontando para o céu, mas a que Deus cristão devemos clamar quando essas mesmas balas atravessam residências nada sacras de civis em guerras com projeção midiática rapidamente internacional? Se Lucio Fontana cortava as suas telas em sua obra de mesmo nome, “Conceito espacial” (1959), numa reflexão sobre a planaridade da pintura, Luis Miguel Suro nos permite refletir, através da justaposição de linguagens proporcionadas pela arte contemporânea que a planaridade da vida está mais próxima das nossas casas do que das paredes hospitalares de um cubo branco.



Além da fotografia, do vídeo e de diversos trabalhos com instalação que ocupam as grandes salas do MUAC, o público também tem aos seus olhos linguagens mais tradicionais como o desenho, a pintura e a escultura, em pesquisas formais que geralmente beiram o grotesco, o bizarro, o feio, enfim, o estranho à pasteurizada visualidade da publicidade dos dias atuais. Sergio Zevallos se utiliza da figura de Santa Rosa de Lima, primeira santa latino-americana reconhecida pelo Vaticano. Em “Estampas, Lima” (1982), assim como um ícone medieval, a imagem composta por estampas geradas a partir de fotocópias recebe camadas de intervenções de carvão, lápis coloridos e tintas. Mais acima, uma das frases que direciona o estranhamento do público: “patrona de las maricas”. É a partir daí, da associação entre “maricas” e santidade, que nos recordarmos que aquelas imagens fortes ao lado do que agora é apenas um vulto da santa também fazem parte de uma iconografia cristão: aí estão demônios, esqueletos, o sangue e outros elementos. O sangue que escorre pela vagina da santa é o mesmo sangue feminino que por séculos escorreu pelas mãos de Maria Madalena que, abraçada a Cristo, lamentava a sua morte. Mais do que inventar uma meio de criticar o cristianismo, o artista se usa do já estabelecido para nos levar a um reencontro com a história da arte.

Essa mesma revisão sobre uma tradição de imagens coloca esse trabalho em contato com a produção de desenhos de Melecio Galván. Na série “Militarismo y represión” (1980), desenhos com traços realistas convidam a um segundo olhar. Com mais calma, o espectador percebe que aquela figura ali rabiscada não era a de um tanque, mas de um escravo que se curva aos seus olhos. Entre a fábula e a imitação, entre o retrato e o surrealismo, Galván mostra o hierático dos corpos que estão a serviço do militarismo. Trata-se de um corpo preocupado não apenas em reprimir o corpo do outro, mas que também sufoca o seu próprio movimento, confinado a uma folha de papel. As condecorações saltam do branco que é, ao mesmo tempo, figura e fundo de um homem cuja postura remete a série de retratos de poder estatal instaurada desde o Renascimento. Não interessa mais o seu nome próprio, mas apenas suas mãos, as responsáveis por levantarem as armas, e seu rosto abatido, cansado e deformado pelo frenesi por controle e domínio espacial.




Do mesmo modo que Rachel Lachowicz mostra as muitas bocas de suas figuras femininas esculpidas do material de remédios, muitos são os percursos e os discursos capazes de serem produzidos a partir dessa curadoria. Essa multiplicidade me parece ser um dos pontos altos de uma exposição que, mais do que engavetar uma série de trabalhos numa categoria, alavanca sua potência de obras abertas e inveja no público a mesma taquicardia da seleção feita. Em um momento do sistema de arte em que molduras, objetos e trabalhos fazem elogios fáceis e quase cosméticos ao amor e à vida (algumas vezes com pitadas falsamente ingênuas), é no mínimo interessante ver um projeto que lança o olhar para o lado obscuro, descontrolado e mais instintivo daquilo que é humano. Um viva ao descompasso, às fábulas trágicas e à potência que aquilo que um dia foi (e ainda é) chamado de anticlássico traz à vida.


(texto publicado na ArtNexus de março-maio de 2014)

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