Araucária no chão
[06 de dezembro de 2013]
Escrever sobre a experiência de visitação em uma bienal é, por si só, já assumir ao leitor a parcialidade da argumentação. Toda escrita crítica, em primeiro lugar, está permeada pela bagagem cultural e formação daquele que analisa a curadoria, os espaços e artistas a expor. Parece-me importante também assumir que percorrer salas e mais salas com poéticas que geralmente apontam para distintos lados, sem falar no deslocamento entre diferentes instituições que abrigam o evento e que são somadas ao estranhamento cultural que qualquer cidade imprime a um forasteiro, são alguns dos dados que afetam aquele que se encontra a escrever.
Colocado esse ponto, enfrentemos esse desafio de se comentar a Bienal de Curitiba. A edição de 2013 é responsável por fazer o evento chegar aos seus vinte anos e lembrar ao espectador uma trajetória que se iniciava em 1993 com o nome de Mostra VentoSul de Artes Visuais. Nas edições futuras, houve esforço por parte das curadorias a fim de reunir artistas do chamado Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai) somados à representação de artistas do Brasil e Paraguai. Desde 2009 o evento ganhou o nome “bienal” agregado ao seu título, se tornando, em 2011, oficialmente na Bienal Internacional de Curitiba. A América Latina, portanto, deixa de ser um enfoque explícito e atinge um nível de participações internacionais, tal qual se sucedeu à Bienal do Mercosul, realizada quase que durante o mesmo período em uma cidade próxima, Porto Alegre.
Não podemos deixar que se passe despercebido um olhar sobre Curitiba, a cidade-sede do evento. Capital do estado do Paraná, localizado na região sul do Brasil, se trata uma cidade com uma composição étnica rica no que diz respeito às diversas imigrações ocorridas durante os séculos XIX e XX. Alemães, poloneses, ucranianos, italianos e japoneses migraram para o estado do Paraná, trabalharam nas lavouras, criaram pequenas cidades com forte memória de suas culturas expatriadas e, ao mesmo tempo, se integraram a uma sociedade brasileira que, como já é sabido, tem a miscigenação como regra.
Curitiba, nesse sentido – e inegavelmente falando sob a perspectiva de uma pessoa nascida e criada no Rio de Janeiro que, para o bem e para o mal, se constituiu como cartão postal do Brasil por todo o período em que foi capital até a contemporaneidade – não vai de encontro a uma imagem esperada e exotizada do que poderia vir a ser um paraíso tropical. Chega-se ao aeroporto e se escuta o som de habitantes da cidade a conversar em alemão; ao se percorrer a malha urbana se percebe um senso de organização espacial, sem falar na limpeza das ruas, da qual a população nitidamente se orgulha – onde está aquela paisagem cultural do caos, da informalidade e do dejeto condecorados pelo mar somado à mata atlântica? Definitivamente, essa iconografia brasiliana, tal qual instaurada no século XIX por artistas viajantes e exportada para solo europeu, não se encaixa na apresentação por vezes asséptica do urbanismo de Curitiba. Isso faz concluir que, felizmente, existem muitos brasis dentro do mesmo Brasil – em outras palavras, nem só de Rio de Janeiro e São Paulo é feita a terra brasilis.
Dadas essas considerações sobre Curitiba, às quais gostaria de voltar no final desse texto, fica a pergunta: retirado do holofote da exposição seu caráter “latino-americano”, alavancando-a ao nível de uma bienal internacional, quais respostas os curadores podem dar ao desafio de se realizar um evento de grande porte em uma metrópole que foge do estereótipo historicamente construído sobre o Brasil? Teixeira Coelho e Ticio Escobar optam por pensar a exposição através de uma ausência de nome próprio. No catálogo, o primeiro texto é de autoria de Teixeira Coelho e intitulado “Bienal, as palavras e arte”. Após realizar uma interessante arqueologia da ideia de exposição na arte ocidental, dos gabinetes de curiosidade às feiras de arte contemporânea, Teixeira Coelho comenta sua proposta curatorial: “... justifica-se a Bienal por inteiro e não cada uma das obras individualmente, com a esperança ou a crença de que a justificativa universal, por assim dizer, sirva para justificar o particular. A justificativa da Bienal por inteiro se faz pela adoção do que virou um hábito cultural: um título e um tema, se não uma hipótese de trabalho”.
Em outras palavras, se critica a instauração de temas estanques e se afirma não haver algo semelhante nesta bienal – ou, como alguns leitores poderão articular, a falta de tema é o tema deste evento. Coelho afirma, na sequência, que “... a Bienal virou, antes, uma questão de palavras. Primeiro, é a palavra; depois a arte – uma escolha talvez derivada de má interpretação dos textos sagrados, nos quais se diz que ‘no início era o verbo’: no início, verbo significava ação, não palavra. E a ação é a arte, não a palavra sobre a arte. A arte em primeiro lugar”. Basta contrapor essa edição da bienal à anterior, com curadoria do mesmo Ticio Escobar e Alfons Hug, intitulada “Além da crise”, para se constatar que, sim, é mais bem-vinda a suposta ausência de um nome próprio do que um recorte curatorial um tanto quanto vago como o proposto anteriormente.
O que me pareceu interessante constatar pessoalmente na bienal, porém, foi como esse discurso é muito claro e praticado na exposição nuclear do evento, uma espécie de “pavilhão central” (pensando em um modelo à la Bienal de Veneza) que estava sediado no Museu Oscar Niemeyer, ao passo que outros espaços careciam de uma unidade quanto a esse todo. Como Teixeira Coelho coloca no final de seu texto, “Não quer dizer que não existe aqui uma proposta, como será fácil de observar. Mas ela não é especulativa ou propositiva de uma tese; se couber dizê-lo, é empiricista”.
Esse tópico aparece no texto relativo à maior série de salas da bienal encontradas no Museu Oscar Niemeyer, de autoria de Ticio Escobar e de Adriana Almada, curadora-geral adjunta. Batizado por “Após o título”, ambos se colocam contrários tanto a certa tendência formalista da arte contemporânea, quanto às suas possibilidades conteudistas. Trazendo para seus termos, se busca um lugar entre o “esteticismo light” e a “longa ditatura do significativo”. O evento, segundo eles, deveria privilegiar um caráter transdisciplinar e que colocasse em jogo a obra aberta, tal qual colocada por Umberto Eco em livro homônimo de 1972. Curiosamente, porém, numa espécie de pequena contradição a essa proposta, os mesmos autores terminam por afirmar que “a exposição trabalha certas questões da arte contemporânea que, segundo o conceito da curadoria-geral, não se encontram apresentadas de forma temática, mas, somente para efeitos editorais, são agrupadas sob cabeçalhos que ajudam na sua leitura”.
Justo esses supostos cabeçalhos se configuram como um contrassenso à organização dos trabalhos. Logo de entrada somos recebidos por uma interessante sala (talvez nem tanto pela potência das imagens, mas pela relevância do tópico) de trabalhos realizados por artistas indígenas participantes da I Bienal de Arte Indígena Contemporânea, realizada no México, em 2012. Até que ponto era necessário criar uma sala única para reunir esses trabalhos, além de batizá-la de “Outros olhares” e, mais do que isso, coloca-los expograficamente tão próximos, quase como que uma pequena exposição coletiva dentro do grande caráter coletivo e bienal? Por mais que entenda uma vontade didática e mesmo de aproximação do público leigo da arte (anseio esse também explicitado pelos curadores e que me parece louvável), era necessário recorrer a uma espacialidade tão óbvia? Não seria possível se manter uma ambiência de constelação (outro termo usado por eles e que nos recorda também da última de Bienal de São Paulo) com abismos e trajetórias claras, assim como percebido de modo mais eficiente na mostra de vídeos?
Em contrapartida, me parece que a decisão da curadoria geral de ter um grupo de jovens curadores que, segundo Stephanie Dahn Batista, esteve presente nos acervos públicos de Curitiba a fim de garimpar obras que poderiam dialogar com artistas brasileiros e estrangeiros, foi bem produtiva. O caráter não linear das exposições pensadas em cinco dos outros museus presentes na cidade, com destaque para o Museu de Fotografia e o Museu de Gravura, vai de encontro ao que pude apreender dos anseios curatoriais e esbarra em tópicos que estavam presentes, por exemplo, no Museu Oscar Niemeyer. Tudo isso sem apelar para escudos conceituais, mas elencando imagens que por sua potência dão margem ao raciocínio do espectador sempre através de uma espacialização, tal qual a montagem no cinema, que instiga.
E quais seriam, portanto, alguns dos tópicos que flutuavam pelas exposições da Bienal de Curitiba? Voltando à arte indígena contemporânea já aqui comentada, me parece que os limites entre categorias complicadas como as de “arte popular” e “arte erudita” perpassam alguns dos artistas pinçados. Sejam estes premiados no México ou mesmo, também no Museu Oscar Niemeyer, a pungência de uma figura local e a mim então desconhecida, a artista Efigênia Rolim, que apresentava objetos, uma entrevista e fazia um reprocessamento de uma cultura material outra – não aquela da cerâmica e das tradições muitas vezes vistas por chave primitivista, mas sim daquilo que sobra da cultura industrial. Nesse mesmo sentido, era possível aproximar seu trabalho ao de um nome que está a ganhar cada vez mais destaque na recepção internacional da “arte brasileira”, o de Adriano Costa, que também agrupa e reconfigura objetos precários, mas tendendo a reafirmar a planaridade do chão e convidar o espectador a frui-los através de relações de cor e geometria.
Como Stephanie Dahn Batista também comenta no seu texto para o catálogo e concordo plenamente, foi importante a opção de se mostrar as imagens do etnógrafo, fotógrafo e desenhista tcheco Vladimir Kozak, residente em Curitiba entre 1938 e 1979. Com isso, além de expandir os limites das artes visuais e trazer para a reflexão imagens que talvez se aproximem mais do conceito de uma cultura visual da época, colocando a curadoria numa postura mais próxima do olhar de um artista contemporâneo que se apropria de uma cultura imagética, contribui com o alargamento e conhecimento por parte do público de um nome não muito conhecido ou estudado dentro da história da imagem no Brasil. Somando a essa perspectiva, exibir parte da coleção Poty Lazzarotto, artista também radicado em Curitiba e colecionador de artefatos em cerâmica de diversas culturas indígenas, também possibilita que façamos cruzamentos formais e de sentido para além dos limites do temido caráter conceitual da arte contemporânea; nesses momentos lembramos que qualquer produção de imagens necessita de conceitos para existir.
Outro dado que me chama a atenção é a presença significativa de artistas latino-americanos, em especial dos países que tem o espanhol como língua principal. Se por um lado eles correspondem a certa expectativa internacional do ato de se mostrar “arte latino-americana”, ou seja, muitos desses trabalhos versam sobre violência e representações de questões identitárias locais, por outro lado, mesmo assim, alguns deles apresentam respostas interessantes à problematização da política na arte contemporânea. Refiro-me aqui a um vídeo de Carlos Trilnick, “1978-2003”, em que a violência ditatorial na Argentina durante uma Copa do Mundo é lembrada através do singelo, mas doloroso ato de se pendurar um pano preto dentro da região de um gol. O vento faz com que esse pano de luto balance, do mesmo modo que os corpos dos torcedores de uma partida se caracterizam. Já Edwin Sánchez, da Colômbia, com “Desapariciones”, conjuga depoimentos de testemunhas do narcotráfico em Bogotá com desenhos que transformam texto em crueldade explícita. Entre o cartoon, a caricatura e o peso da História, essas vozes anônimas não cessam de falar.
Para finalizar e retornar ao lugar central da cidade de Curitiba nessa bienal, cito, novamente, palavras de Teixeira Coelho: “Não só duas Bienais em cidades distantes e anos diversos podem ter o mesmo título ou tema, como um mesmo conjunto de obras pode receber e aceitar títulos e temas diferentes”. Mesmo que a vontade inicial dessa curadoria mereça atenção pelo suposto apagamento de um tema específico, é inevitável termos em mente que, assim como o próprio curador aponta para outras exposições, poderíamos acusá-lo, em contrapartida, de realizar uma série de escolhas que também poderiam ser mostradas em qualquer lugar do mundo e mesmo mais de uma vez. Nesse sentido, tendo em mente a riqueza cultural de Curitiba e seu caráter fugidio de uma imagem estereotipada de brasilidade, me parece que um ato curatorial possível de ser mais explorado futuramente seja o pertencimento e diálogo direto entre exposição e cultura local.
Como anedota, me recordo do trabalho de Katharina Grosse exposto no Centro Cultural Sistema FIEP. Trata-se de uma araucária, árvore-símbolo da identidade cultural do Paraná e, mais do que isso, que batiza a cidade de Curitiba. Arrancada de seu solo, estava com suas raízes expostas ao olhar do público. Como é esperado de sua pesquisa artística, Grosse realizou, segundo texto do catálogo, “... uma obra nova, explorando a vitalidade de seu traço expansivo, as cores e formas em combinações únicas, inseridas em materiais do contexto local, formando, assim, um diálogo entre sua prática artística e a ‘brasilidade’ de seu ponto de vista”.
Inseguro sobre qual árvore eu mirava no encontro com a obra, perguntei ao monitor presente se estávamos diante de uma araucária. Para minha surpresa, o rapaz não tinha certeza quanto à sua resposta e, mais do que isso, sequer parecia haver refletido sobre a origem daquela árvore até então. Creio que, metaforicamente, a Bienal de Curitiba tende a ganhar muito mais quando não tiver esse caráter de ser uma araucária esquecida sobre o chão.
Não se trata de escolher obras que ilustrem Curitiba, mas que, assim como o Coletivo E/OU propõe em suas experiências artísticas, mapeiem as muitas histórias públicas, privadas e ficcionais que uma cidade cheia de camadas como essa pode oferecer. A partir daí, talvez, pensaremos Curitiba e a arte para além da ideia de local, mas em diálogo com certa cena global da arte contemporânea e, sempre, espero, em busca de questões existenciais que aparecem nas imagens.
(texto publicado originalmente na ArtNexus de dezembro-fevereiro de 2013-2014)