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Arte e transexualidade


[26 de agosto de 2009]

Embora a palavra “transexual” tenha sido cunhada recentemente, o mesmo não pode ser dito de “andrógino” e “hermafrodita” que, mutatis mutandis, podem ser incluídas em seu mesmo campo semântico: trata-se de pessoas que “apresentam características, traços, órgãos ou comportamento imprecisos, entre masculino e feminino”.

No campo das artes visuais, a tensão entre os sexos em um mesmo corpo foi representada das mais variadas formas. O faraó egípcio Akhenaton, servidor de Aton (a manifestação esférica do deus-sol Rá), é representado em uma série de esculturas como uma figura andrógina, com o corpo construído por curvas sinuosas. Tal opção parece justificável devido à compreensão de Aton como “pai e a mãe de todas as coisas”, ou seja, uma relação entre divindade e ambivalência sexual, absolutismo no poder político e religioso. Aqui, androginia se associa a poder.

Na história ocidental moderna, porém, esta tensão é frequentemente compreendida como algo monstruoso. Nos primeiros tratados médicos renascentistas, o hermafroditismo é considerado uma anomalia. No tratado de Ambroise Paré, “Dos monstros e dos prodígios” (1579), os hermafroditas estão listados como aqueles que “são coisas que aparecem fora do curso da natureza”. Temer o hermafrodita é temer o outro e, portanto, tais imagens e definições podem dialogar com a alteridade cultural. Exemplo disso é um retrato pintado por José de Ribera (1591-1652), da família de Magdalena Ventura, uma nobre napolitana em quem teria nascido, aos 37 anos, uma longa barba. O olhar é lançado para aqueles que se encontram à margem. Androginia e exotismo cultural caminham juntos.

Luis XIV (1638-1715), também conhecido como “rei-sol”, dialoga com Akhenaton e incentiva em seus “retratos de Estado” a tensão entre sua posição política e seus cabelos e vestimentas femininos. Neles vemos a utilização de maquiagem, perucas, saltos e estampas que saltam de seus trajes, lançando moda e sendo considerado como um dos grandes incentivadores do dito “estilo rococó” e, nos dias atuais, um protótipo do travestismo.

Através da fotografia, temos a “Rose Sélavy” de Marcel Duchamp (1887-1968), mais uma faceta para o conjunto de identidades que forma a figura do artista francês. Duchamp enquanto modelo feminino. Andy Warhol (1928-1987), por outro lado, fotografa e também é modelo; retratos e auto-retratos de travestis, já em outro recorte histórico, o da tomada de consciência de uma cultura gay. Travestir-se também pode ser uma forma de realizar críticas culturais, como no caso de Yasumasa Morimura (1951-), artista japonês que se traveste, por exemplo, de Olympia, célebre mulher pintada por Édouard Manet (1832-1883) e, para além de questões de gênero, nos faz pensar sobre geografia e os lugares das culturas ocidental e oriental.

A transexualidade se faz presente na história das artes visuais e contemporaneamente marca sua presença nas mais diversas esferas da cultura visual, sendo constante na música pop, na televisão, no cinema e na publicidade.


(texto publicado como verbete no livro “História da arte: ensaios contemporâneos”, editado pela Eduerj, em 2011)
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