Atlântico e Mediterrâneo
Leila Danziger
[30 de outubro de 2018]
O Oceano Atlântico e o Mar Mediterrâneo são os dois corpos de água nos quais as recentes pesquisas de Leila Danziger estão baseadas. O interesse da artista por esses ambientes poéticos e trágicos está declarado no título escolhido para esta exposição: “Navio de emigrantes”.
Trata-se de uma citação a uma das mais importantes obras da arte moderna no Brasil (pintada entre 1939 e 1941) de autoria do artista lituano-brasileiro Lasar Segall (1891–1957). Imigrante judeu que se muda definitivamente para São Paulo em 1923, Segall é um artista que vivenciou e criou imagens da diáspora; desde cenas de emigrantes cansados em navios com rumo desconhecido até as representações de comunidades vistas até então como marginais na sociedade brasileira — como os afro-brasileiros e os judeus. Os corpos em seus desenhos, gravuras e pinturas tendem a se apresentar ensimesmados, melancólicos e inertes; parecem sentir o peso dos deslocamentos, do tempo, das saudades e do preconceito.
Um dos eixos da exposição dialoga frontalmente com a produção de Lasar Segall. Não apenas devido à incorporação de nove de suas gravuras que fazem parte de uma série maior que se relaciona com sua pintura sobre os navios de emigrantes, mas também devido à vasta pesquisa realizada pela artista no Arquivo Nacional acerca de documentos sobre embarcações que cruzavam o Atlântico e faziam trajetos entre a Europa e o Brasil. Advinda de uma família de judeus alemães que teve de emigrar em razão do crescente nazismo, a narrativa autobiográfica da artista se cruza com a biografia de Segall.
Parte dos trabalhos fotográficos aqui mostrados baseia-se nas listas de passageiros desses navios. A artista explora tanto a fragmentação de nomes próprios em montes de papel, quanto o aparente silêncio proporcionado pelo vazio em vários documentos. Outros trabalhos foram realizados fundamentados na apropriação de fotografias encontradas no acervo digital do Yad Vashem, memorial das vítimas do Holocausto sediado em Jerusalém, Israel. Trata-se de uma instituição com um dos maiores arquivos fotográficos do Holocausto no mundo e, com essas imagens, a artista propõe apagamentos e justaposições com carimbos. A palavra “celestes” é vista em uma das fotografias e foi extraída de um verso do poeta — sobrevivente do Holocausto — Paul Celan: “seguem os destroços celestes”.
Como o tempo verbal da frase, a pesquisa de Leila Danziger versa sobre o presente dessas imagens, ou seja, fatos e documentos históricos são recodificados como destroços que seguem agindo no mundo contemporâneo. Se o Holocausto chegou ao fim, o antissemitismo não, e basta pesquisar suas estatísticas ainda latentes em um momento histórico em que o ódio impulsiona tantas ações.
Os fluxos migratórios, muitas vezes motivados pela necessidade da fuga, viram, nesse arco histórico de quase um século, os mastros de navios serem substituídos pelas asas de aviões. Recentemente, porém, como disseminado e explorado cruelmente pelos meios de comunicação de massa, no Mar Mediterrâneo vive-se uma nova onda de diáspora das regiões da África e Ásia rumo à Europa Ocidental.
Esses episódios recentes orientam o segundo eixo da exposição que é baseado nesses materiais da mídia impressa e dos audiovisuais compartilhados via internet. É interessante constatar as diferentes materialidades com que a artista trabalha — dos arquivos públicos aos arquivos digitais, interessa a possibilidade de abrir ao público as muitas camadas que as imagens contêm. Fotografias e jornais têm suas superfícies rasgadas e nos lembram da fisicalidade das imagens, ao passo que os pixels dos frames de vídeos nos trazem algo latente dos arquivos digitais.
Jornais têm suas informações textuais apagadas e nosso olhar paira sobre suas fotografias. Abrigos, botes cheios de pessoas, incêndios e ruínas são ladeados nessa espécie de livros de histórias que não são orientados exclusivamente pelas palavras. Já em outra série de trabalhos, as fotografias utilizadas são frames (imagens estáticas) oriundos de audiovisuais amadores que registram imagens de pessoas sendo resgatadas no Mediterrâneo. Divididas em outras imagens em formato de uma grade, a artista cria uma legenda fictícia para cada peça desse quebra-cabeça que compõe o frame. Esses textos trazem hiperlinks, colados e sequenciados, em diversas línguas. E se a avalanche de informações textuais que rodeiam nossa experiência na internet fosse um poema? Como mensurar a maneira como essas tragédias nos direitos humanos e todas as discussões que elas trazem sobre fobias contemporâneas são transformadas em códigos? Como estabelecer um cruzamento entre aquelas listas de passageiros do começo do século XX e essas listas quase randômicas de palavras que compõem o acesso a um artigo jornalístico?
Com vasta experiência como artista visual, poeta e professora, parece que Leila Danziger nos indica com esta exposição que não existe apenas um cruzamento, mas várias encruzilhadas. As histórias ainda são, em certa medida, as mestras da vivência cotidiana e, por outro lado, qualquer ação inscrita no presente tem seu espaço reservado em um templo da memória. Independentemente do caminho que se escolha, o fascínio pelas imagens sempre deve vir embebido de uma postura ética quanto ao uso delas.
O tempo e o espaço podem separar os botes e os navios, mas o medo de fugir e de chegar, além da dúvida sobre a vitalidade do corpo nessa trajetória, é latente – e, não, não pode ser esquecido.
(texto curatorial publicado no catálogo da exposição “Navio de emigrantes”, de Leila Danziger, realizada na Caixa Cultural Brasília [30 de outubro a 23 de dezembro de 2018] e na Caixa Cultural São Paulo [15 de janeiro a 31 de março de 2019]