Atravesar a rua
Abdias do Nascimento
[25 de outubro de 2021]
Orixás: os deuses vivos da África (1995) é ainda o único livro que reúne perspectivas multifacetadas sobre a produção pictórica de Abdias Nascimento.[i] Organizado por Elisa Larkin Nascimento, traz tanto um artigo do artista, quanto alguns de seus poemas dedicados aos orixás. Além disso, textos de diversos momentos históricos foram incluídos, em um arco temporal que vai de 1971 a escritos comissionados para a publicação. A intenção era a divulgação da produção de Abdias não apenas em solo brasileiro, mas também no exterior, em especial nos Estados Unidos. Sua edição bilíngue e ricamente ilustrada em cores — algo não exatamente comum naquele momento da história nacional das publicações sobre artes visuais — são atestados desse interesse.[ii] No texto de Abdias feito especialmente para o livro, ele argumenta a respeito da importância dos “deuses vivos”: “O culto dos orixás constitui a mais legítima fonte dos valores dessa espiritualidade africana desenvolvida no contexto brasileiro. [...] Tem sido sempre perseguido pela estrutura repressiva da sociedade dominante: a polícia, as igrejas cristãs, e a cultura dominante em geral”.[iii] Na sequência, o autor destaca como o aprendizado a respeito dos orixás se encontra além de um interesse meramente plástico: “Os orixás deste volume resultam das minhas próprias reflexões e aventuras do espírito no rastro de um problema que, para mim, mais do que uma questão artística ou acadêmica, é uma exigência vital. [...] De primeiríssima importância é a peripécia espiritual e cultural do afro-brasileiro: a história e os deuses da religião exilada com meus antepassados”.[iv]
Voltemos algumas décadas e observemos a trajetória de Abdias Nascimento como pintor. Em 1968, ele organiza sua exposição do acervo do Museu de Arte Negra, no Museu de Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em maio de 1968. Provocado pelos amigos Efrain Tomas Bó e Sebastião Januário, Abdias começa a pintar. No final do mesmo ano, recebe uma bolsa da Fairfield Foundation, nos Estados Unidos. Ao viajar, o artista leva não apenas estas primeiras telas para os Estados Unidos, mas também obras da coleção do museu que havia planejado. Sua bolsa terminava em dezembro de 1968 e, consciente da asfixia da democracia no Brasil devido ao Ato Institucional Nº 5 — promulgado no mesmo mês —, Abdias é convidado a residir temporariamente com a pintora Ann Bagley e seu marido, Henry W. Bagley (1910-1995), em um apartamento em Manhattan. Foi ali que ele deu prosseguimento ao que vinha experimentando em pintura no Rio de Janeiro.
Conforme citado por Dária Jaremtchuk, no ano de 1975, quando realizou sua exposição individual na Galeria da Caderneta de Poupança Morada, no Rio de Janeiro, o artista diz ao Jornal do Brasil:
Foi em 1968 poucos meses antes de viajar que pintei alguns quadros que nem sei se poderia classificar de pintura. Levei tudo comigo e nos Estados Unidos, ao mostrá-los, revelaram-me que meu trabalho apresentava um aspecto completamente esmagado no processo da história do negro americano: as raízes africanas. [...] Sou apenas um pintor de arte negra. Não quero me relacionar com os cânones da arte formal.[v]
Mesmo que afirmasse não desejar ter relações com os “cânones da arte formal” no seu artigo incluído na publicação de 1995, é o próprio Abdias que lembra o leitor como foi importante discutir no 1º Congresso do Negro Brasileiro a respeito de um texto escrito pelo historiador da arte Mário Barata (1921-2007) sobre a “escultura de origem africana no Brasil”. [vi] Por mais que sua produção tenha se realizado de forma autodidata e, talvez, em sua própria perspectiva, “fora” da “arte formal”, seu trânsito, interlocutores e sua recepção dentro do sistema das artes visuais no Brasil e no exterior sempre foram institucionalizados.
Com essas pinturas, que dialogavam com o universo formal e espiritual dos orixás, Abdias Nascimento recebeu espaço em um circuito estadunidense composto majoritariamente por galerias universitárias para mostrar o seu recente percurso como um “pintor de arte negra”. [vii] Na biografia escrita por Elisa Larkin Nascimento, ele se refere à pintura como uma forma de comunicação com o público local: “Uma coisa sensacional aconteceu comigo. Bloqueado pelo inglês, desenvolvi uma nova forma de comunicação. Descobri que possuía outra forma de linguagem dentro de mim mesmo: descobri que podia pintar; e pintando eu seria capaz de mostrar o que palavreado nenhum diria”. [viii]
Sua primeira exposição individual nos Estados Unidos foi logo em 1969, no The Harlem Art Gallery, em Nova York. Segundo bilhete enviado na véspera da abertura a uma amiga chamada Virgininha, “Como você vê pelo catálogo, me embrenho nos abismos da pintura. Amanhã será meu batismo. Preciso que você e Jarbas me desejem boa sorte, ainda que minha pintura não seja boa”. [ix] Em maio do mesmo ano, a profundidade deste salto nos “abismos da pintura” é constatada por um documento também resguardado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros a respeito da lista de obras que Abdias mostrou na sua terceira exposição individual, agora na Yale Art Center, em New Haven, onde ele lecionou como Visiting Lecturer da Yale School of Drama.
Nessa exposição organizada em comemoração ao aniversário de Malcolm X (1925-1965), 50 pinturas em acrílica foram mostradas — tão expressivo número já é digno de nota para um artista que possuía cerca de um ano de produção. A pintura, portanto, não se tratava de um passatempo, mas de uma linguagem a ser experimentada repetidamente, tal qual ele já havia feito com a dramaturgia, com a atuação e com a literatura. Quando lemos os títulos das obras mostradas, fica clara, novamente, a dedicação de Abdias aos orixás e à divulgação de sua sabedoria nos Estados Unidos pelo viés da pintura e do texto, visto que o programa da mostra trazia uma espécie de glossário relativo aos orixás e a termos usados na prática do candomblé no Brasil. [x]
Das 50 obras mostradas, poucas não fazem referência direta aos orixás e/ou a episódios relativos à história do movimento negro nos Estados Unidos — como a célebre pintura Xangô crucificado ou O martírio de Malcolm X (1969), onde vemos o ativista crucificado. Algumas das pinturas listadas curiosamente se referem a episódios das narrativas cristãs — como “Juízo final”, “Santa Maria do Egito”, “Santíssima Trindade”, “Eva”, “Anjo negro” e “A missa”. Poucos desses trabalhos — sempre de acordo com seus títulos, já que muitas das imagens se perderam — anunciam algo que não se refere a imagens que articulam narrativas religiosas ou associadas a episódios e figuras históricas específicas. Poderíamos relacionar esse interesse de Abdias à sua larga experiência como dramaturgo? Seria possível observar sua maneira de se aproximar da pintura a partir de seu interesse pela contação de histórias?
Gostaria de voltar o meu olhar para uma pequena série de pinturas produzidas nos Estados Unidos e que não costumam receber a mesma atenção das obras de Abdias Nascimento acerca dos orixás. Três delas participaram de sua exposição na Yale Art Center e estão dentro do grupo das primeiras obras produzidas pelo artista em Nova York. 306 West 81st Street (1969), é uma dessas telas concluídas por Abdias quando residia justamente nesse endereço com o casal Bragley. [xi] O endereço se trata da mesma quadra que dá para a esquina da 81st Street com a Riverside Drive, avenida que permite que os motoristas e pedestres vejam o Riverside Park, o rio Hudson e, do outro lado, os prédios gigantes de New Jersey. Caminhando, o endereço não é muito distante da Columbia University, [xii] do Metropolitan Museum of Art, sendo aproximadamente 40 minutos do Museum of Modern Art de Nova York e cerca de 10 minutos do American Museum of Natural History. Em outras palavras, Abdias Nascimento estava vivendo temporariamente em um dos vários corações cosmopolitas, culturais e intelectuais de Nova York.
Quando comparamos 306 West 81st Streetcom a aparência atual da rua via Google Maps, curiosamente notamos como o posicionamento dos postes de luz feito por Abdias é bem fidedigno à sua posição perpetuada nessa distância de mais de 50 anos. Duas placas trazem o nome “Riverside” e o pintor parecia estar especialmente preocupado em jogar com a luz — os semáforos apontam para cores totalmente diferentes e trazem algo do frenesi de Nova York; não há sincronias temporais e cada pessoa/carro está em uma velocidade diferente. Falando nos automóveis, Abdias resume seus diferentes tipos, tecnologias e cores a partir de três formas da parte inferior da composição. É interessante constatar como o artista, com pouquíssimos elementos formais e se valendo especialmente de seu uso inteligente da cor, traz ao espectador algo de sua impressão sobre seu contato ainda recente não apenas com Manhattan, também com os Estados Unidos.
O Riverside Park, enquanto isso, é o espaço onde Abdias experimenta com algo que percorre toda a sua trajetória: as muitas direções, espessuras e ritmos dos galhos de árvores. Se essa pintura foi efetivamente concluída em janeiro de 1969, o artista experimentou um dos meses mais frios de Nova York e, portanto, a secura delas é um reflexo do inverno. O clima certamente contribuiu com o caráter monstruoso dessas árvores que apontam rumo ao céu e nos impedem de ver inteiramente as cores sedutoras de New Jersey ao fundo. Aqui, novamente, podemos chamar a atenção para a forma como Abdias usa a cor: não há nenhum receio de sua parte em colocar lado a lado uma grande quantidade de cores contrastantes. [xiii] Como escreveu o crítico de arte estadunidense Roger M. Isaacs, “Abdias não acredita que a linha seja a fusão íntima de duas cores: pelo contrário, ele acredita que linhas bem definidas devem necessariamente separar as cores, uma vez que cada uma delas tem seu valor independentemente luminoso e sensorialmente válido”. [xiv]
Se há um elemento visual que certamente salta aos olhos na composição e que nos intriga nessa visão de Nova York é esse enorme céu azulado onde um pássaro está em pleno movimento ascensional. Se há engarrafamento nas ruas e se New Jersey brilha ofuscada pelas árvores, esse pássaro se torna protagonista de uma quase lembrança da liberdade. Perante o caos de um dos maiores centros financeiros do mundo, ainda há espaço para os pássaros e — por que não? — para o sagrado. O animal também vai de encontro às pinturas produzidas por Abdias durante o ano de 1968, antes de sua viagem para os Estados Unidos, onde vemos continuamente seu interesse por formas que propõem a ausência de um binarismo entre “humano” e “animal” e nos convidam a admirar a capacidade de metamorfose dos corpos, como em suas pinturas dedicadas a Iemanjá, a Exu e, especialmente, em uma pintura sem título onde o encontro entre uma serpente e um pássaro parece ser uma citação às pinturas de Chico da Silva (1910-1985).
Riverside 1 (1969) e Riverside 2 (1969), pinturas também mostradas na Yale Art Center, trazem outras visões sobre a mesma paisagem. De orientações diferentes, ambas concordam na ausência do pássaro e na atenção dada à fumaça que é lançada por um prédio do outro lado do rio Hudson. Em Riverside 2, também em formato vertical, as manchas de cor são semelhantes à 306 West 81st Street, mas o preenchimento que Abdias dá a cada espaço deixa visíveis suas pinceladas mais soltas. Já Riverside 1 traz o desafio de pensar a verticalidade da paisagem nova-iorquina em um formato mais horizontal. Ambos os trabalhos são feitos em papel cartão; sua aplicação mais rala das cores, sua escala diminuta, a forma como foram assinadas e suas pinceladas rápidas nos levam a suspeitar que sejam imagens anteriores à 306 West 81st Street. [xv]
Há elementos que as unem e trazem algo da maneira como Abdias Nascimento encarava a pintura. A repetição é certamente um deles. Nas três imagens temos esse constante interesse do artista em repetir o ritmo dos três carros que se encontram na parte de baixo da imagem, sempre em cores diferentes e servindo como uma lembrança do movimento da região. Se observarmos outros momentos de sua produção, é muito comum notar que ele intitula diversos quadros com números, como se fossem parte de uma mesma série onde elementos formais se remetem — Exú Dambalah (1973) e Mediação (1973), existem enquanto duplas, ao passo que Onipotente e imortal: Adrinka Asante(1992), possui quatro versões. Repetir é experimentar, repetir é não permitir que essas imagens e suas interpretações espirituais e vivas sejam enquadradas de forma estanque. Tudo está inserido em um desejo de presentificação.
Outro elemento sutil que surge nas três pinturas é a sinalização dos semáforos. Abdias Nascimento optou por, nessas suas três primeiras paisagens, escrever sempre a frase “Don’t Walk” [Não atravesse] em cada uma de suas placas para pedestres. Longe de querer psicologizar essas opções, é interessante prestar atenção em seu campo semântico e estabelecer aqui um exercício de imaginação — como se sentir autorizado a atravessar a rua quando se é um artista recém-chegado aos Estados Unidos, consciente da solidificação da ditadura civil-militar em seu país de origem? Como se sentir autorizado a cruzar quando não se domina a língua de um país? Como se sentir autorizado a caminhar quando se é um dos intelectuais negros mais respeitados de seu país e está vivendo em um apartamento devido à solidariedade de amigos?
Parece-me que é nessa pequena série de pinturas de paisagem produzidas durante os Estados Unidos que Abdias Nascimento traz algo mais melancólico a respeito de um país visto como o outro, ao mesmo tempo em que se firma como um pintor a experimentar em plena ebulição. Nessas imagens não veremos explicitamente suas preocupações narrativas quanto a ser um “pintor de arte negra”, mas nessas mesmas imagens perceberemos alguns aspectos que tanto contribuem com uma complexificação dessa autonomeação, quanto trazem elementos para se refletir sobre o seu lugar de imigrante nos Estados Unidos.
Em 1970, o artista havia se mudado de Nova York e trabalhava como Visiting Fellow na Wesleyan University, em Middletown, no estado de Connecticut. No ano anterior, logo após sua exposição na Yale Art Center, Abdias também mostrou seu trabalho na Malcolm X House, na Wesleyan. [xvi] Nesse período, Abdias pintou o quadro A casa do pôr-do-sol (1970) e indicou que foi produzido em Middletown. É interessante comparar as buzinas que poderíamos imaginar nos quadros anteriores com a serenidade romântica dessa pintura. O momento escolhido é justamente o do lusco-fusco, aquele onde o sol se põe e a noite cai. O pôr-do-sol é consequência do movimento rotacional da Terra e tem durações variadas de acordo com o lado do hemisfério onde estamos. Independentemente de sua duração, esse é o momento em que aquilo que poderia ser visto a olho nu se esconde e apenas será enxergado com luz artificial. É um momento de transformação — assim como aquela árvore que um dia foi seca e em outro momento pode estar repleta de folhas. O contraste entre as duas árvores imaginadas por Abdias nos leva a espelhar na pintura uma passagem do tempo que está para além dos ponteiros de um relógio e que dialoga com a sazonalidade das estações do ano e dos calendários.
Ali, no topo dessa espécie de monte com base listrada em formato piramidal, vemos uma casa banhada por tons de rosa vindos do sol e do que seria o céu, o trecho superior do quadro. A imponência dessa arquitetura em formato de um grande bloco chama a atenção. Sendo Middletown uma cidade universitária, poderíamos entender essa pintura como um estranhamento do artista quanto a um tipo arquitetônico comumente encontrado em campi universitários nos Estados Unidos? Seria o prédio uma referência a alguns dos prédios semelhantes encontrados na própria Wesleyan University? Poderíamos enxergar nessa imagem uma espécie de monumento aos dias e noites de conversas e debates entre Abdias Nascimento e outros intelectuais presentes naquele mesmo seminário organizado em 1970, como Buckminster Fuller (1895-1983), Herbert Marcuse (1898-1979), Norman O. Brown (1913-2002), Leslie Fiedler (1917-2003) e John Cage (1912-1992)?
Essa presença arquitetônica sólida, mas ao mesmo tempo solitária, também se faz presente na forma como Abdias Nascimento explora um topos recorrente na pintura e cultura visual estadunidenses durante o século 20: a paisagem de Cape Cod, no estado de Massachussetts. [xvii] Tendo visitado a região possivelmente também em 1970, [xviii] Abdias parece ter se impressionado com o costumeiro destino de verão da população estadunidense. Famosa por ser uma península, a região tem como umas de suas imagens mais populares a presença de grandes casas próximas da areia e distantes de outras habitações. Essa mistura de destino para se aproveitar o verão, mas também lugar onde se pode observar a natureza como se estivesse em um farol, deve ter intrigado Abdias, alguém que dois anos antes estava rodeado pelo hedonismo caótico de uma Copacabana ainda em expansão.
Dois desenhos trazem a atenção do artista para o formato insular da área. Cape Cod mapa (sem data) tem os limites geográficos da região como uma base para que Abdias explore muitas configurações de casa. Essa amálgama de paredes e telhados coloridos — nunca se esquecendo de projetar ainda uma cor sempre diferente para as janelas — cria uma vizinhança fictícia, uma pequena aglomeração sobre a abstração que todo mapa é. Já em Cape Cod com pássaro, borboleta e peixe (sem data), o artista tenta representar o que parece ser uma casa específica de forma mais fidedigna.
Quando observamos a tela Evocação de Cape Cod percebemos como sua estrutura vem de Cape Cod mapa, mas já misturada com os peixes e borboleta do outro desenho. Estrelas de cinco pontas percorrem a composição e, junto a animais esquemáticos, dialogam com o universo iconográfico pelo qual Abdias é mais conhecido. Nessa imagem são fundidos elementos observados nas suas pinturas de orixás com uma paisagem fresca aos olhos do pintor. Como diz seu artigo de 1995: “Meus orixás estão longe de configurar deuses arcaicos, petrificados no tempo e no espaço do folclore ou perdidos nas estratosferas da especulação teórica de cunho acadêmico. São presenças vivas e viventes. Habitam tanto a África como o Brasil e todas as Américas, no presente e não nos séculos mortos”. [xix] Nessa perspectiva, Cape Cod é mais um lugar onde os deuses vivos podem ser, como diria o título da pintura, evocados.
Já Cape Cod House (n. 1) (1970) traz uma única casa composta por diferentes partes, assim como também rascunhado em um de seus desenhos. Ao centro da composição, a casa é rodeada por diversos tons sutis de verde que se alastram rumo ao fundo, até o seu contato com as montanhas e com o céu. Assim como na outra pintura dedicada à região, animais marinhos também parecem nadar/flutuar sobre a superfície da tela — uma arraia, peixes e um cavalo-marinho. É inusitado aproximar mais uma imagem de Abdias Nascimento onde notamos sua capacidade de jogar com a cor de forma não-realista com as pinturas de um artista estadunidense que por toda a sua vida foi obcecado com Cape Cod — Edward Hopper (1882-1967). Tendo uma casa na região, Hopper pintou insistentemente os casarios e sua relação de magnitude e solidão com aquilo que os rodeavam. Com grande parte dessas pinturas datadas entre os anos 1930 e 1940, muitas delas podem ser vistas como uma lembrança da expansão habitacional na região devido ao turismo, mas sempre em conjunto com a sobriedade, o silêncio e a melancolia habitual de suas cores e composições.
Ao colocarmos a Cape Cod de cada um lado a lado, as diferenças históricas, compositivas, coloristas e, claro, de projetos como artistas visuais saltam aos olhos. Há algo, óbvio que os aproxima. Ambos desejaram resguardar algo de Cape Cod e recodificá-lo no formato de uma pintura. Algo nessa paisagem que causou certo fascínio a ambos. Se nas pinturas de Hopper a solidão humana e arquitetura moderna parecem ser protagonistas, ao observar a obra de Abdias temos a impressão de que seu desejo é de nos lembrar que mesmo um lugar aparentemente inabitado por humanos pode estar tomado dos deuses rememorados pela vegetação e animais que discretamente povoam sua tela.
Nova York, Middletown, Cape Cod. Há algo que muda radicalmente quando observamos outra de suas poucas pinturas de paisagem, aquela produzida em Buffalo, Primeira morada de Yemanjá (1973). Conforme duas placas indicam no canto inferior direito da pintura, trata-se de uma casa que fica na esquina entre a Bentham Parkway e a Walton Drive. Recorrendo novamente ao Google Maps, não é difícil encontrar a casa e constatar que, assim como no caso de Manhattan, Abdias se deteve atentamente a cada um desses detalhes, até mesmo as passagens laterais para o quintal. Abdias vivia em Buffalo, no estado de Nova Iorque, desde 1971, e foi responsável por criar a cadeira de Culturas Africanas no Novo Mundo, dentro do Puerto Rican Studies Center. Depois de tantos zigue-zagues pelos Estados Unidos, eis, finalmente, a cidade que se configurou como um porto seguro para o artista, local onde lecionou, pesquisou, se enamorou, ampliou sua rede de contatos e, de onde, em 1981, zarpou de volta para o Rio de Janeiro e o Brasil.
Essa casa, portanto, é uma fortaleza; diferente das outras residências pintadas por Abdias, essa fachada ritmada pelos vermelhos de seus tijolos faz com que ela se pareça mais com um muro e nos sugira a ideia de proteção. Não estamos diante de uma casa qualquer, mas da casa e cidade onde Abdias se assentou. Como ele diz em seu título, trata-se da “morada de Yemanjá”, orixá do qual Abdias Nascimento era filho. Nesse lugar sagrado, nesse templo dedicado à sua mãe, há e sobra espaço para que a vegetação cresça para todos os lados, direções e tons de verde.
Ao observar essa pequena série de pinturas feitas por Abdias Nascimento em quatro anos, entre 1969 e 1973, ou seja, aproximadamente entre sua chegada aos Estados Unidos e sua entrada no edifício que enxergou como casa, me parece que ampliamos sua recepção para além das pinturas dedicadas aos orixás. Como ele próprio nos ensina, essas imagens estão embebidas de seu interesse pela sabedoria afro-brasileira e africana, porém, diferente das imagens que compõem sua publicação de 1995, essas obras também nos informam sobre suas impressões sobre os Estados Unidos, sua arquitetura, sua relação com a educação, com o lazer e, claro, com a calmaria que Buffalo o proporcionava.
As sutilezas dessas pinturas contribuem com um alargamento da compreensão do que poderia ser este “pintor de arte negra” que ele almejava ser e o era. Compondo essa persona, acompanhado pelos deuses vivos, essa existência foi permeada por solidão, insegurança, frustração, alteridade e, como mostram suas pinturas, muitas observações e estudos. Seu interesse pelo tema da casa — em sentido amplo, da universidade à habitação — pode ser lido em diálogo com a lente de sua própria biografia.
“Olhando no espelho” (1980), poema de sua autoria escrito em Buffalo e dedicado a seus netos, diz:
Um dedo irrevogável
te apontou a porta do desemprego
assim regressaste
à casa que já não tinhas
na noite anterior morrera
tua pobre mãe que a mantinha. [xx]
Com um tom memorialista como se estivesse a se olhar no espelho e se lembrar de sua Franca natal, essas palavras de Abdias foram escritas em 1980, mais de dez anos após sua chegada aos Estados Unidos. Esses versos, como vemos aqui, podem ecoar aqueles seus primeiros meses em Manhattan e sua busca por um espaço próprio. Felizmente, Abdias Nascimento nunca seguiu as instruções das placas que ele viu em Riverside Drive. Sem medo de experimentar e protegido por Iemanjá, aquela rua que ele atravessou em Nova York foi apenas uma das muitas que ele já havia atravessado em sua vida e o continuaria fazendo até seu encantamento. [xxi]
[i] O título da publicação já havia sido utilizado para batizar uma exposição realizada pelo artista em 1988, no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro.
[ii] A apresentação do professor estadunidense Molefi Kete Asante não nos deixa dúvidas: “Abdias não é largamente conhecido nos Estados Unidos, a não ser por aqueles que leram seus livros, ouviram-no falar em congressos internacionais do mundo africano, viram e apreciaram suas telas e as adquiriram para apreciá-las mais. Embora exista uma crescente apreciação de sua estatura no mundo africano, ensejada em grande parte pelo trabalho daqueles que conhecem sua contribuição na América do Sul, na América do Norte e na África, o nome dele não constitui ainda, como deveria ser, marca registrada nos Estados Unidos. Este livro contribuirá amplamente para remediar tal situação”. Posteriormente, no mesmo texto, ele diz: “Este livro será útil aos públicos de fala inglesa, tanto o leitor leigo como o estudioso de arte avançado”. Molefi Kete Asante, “Apresentação”. In: Abdias do Nascimento, Orixás: os deuses vivos da África. Rio de Janeiro: Ipeafro, 1995, pp. 21-23.
[iii] Abdias do Nascimento, “Os afro-brasileiros e os orixás”. In: Abdias do Nascimento, 1995, op. cit., p. 41.
[iv] Ibid., p. 43.
[v] Dária Jaremtchuk, “Abdias do Nascimento nos Estados Unidos: um ‘pintor de arte negra’”. Estudos Avançados, n. 93, v. 32, 2018, p. 272.
[vi] “Minha decisão de organizar o Museu de Arte Negra ocorreu durante o 1º Congresso do Negro Brasileiro, que o [Teatro Experimental do Negro] promoveu em 1950. Houve uma discussão importante da tese do professor Mário Barata sobre escultura de origem africana no Brasil, na qual afirmava que ‘o negro na África e em algumas partes da Oceania criou a obra de arte plástica mais impressionante do mundo’ e concluía lamentando a falta de um museu no Brasil para o estudo da ‘função que as esculturas de origem negra desempenharam, na vida de um grupo social ou em toda a sociedade’”. Abdias do Nascimento, 1995, op. cit., pp. 40-41.
[vii] Parece-me que a análise de Dária Jaremtchuk a respeito da forma como Abdias Nascimento é recebido nos Estados Unidos é digna de nota: “Mesmo que essas imagens, relacionadas aos rituais afro-brasileiros, estejam desconectadas dos conflitos contemporâneos vividos pelos negros brasileiros e norte-americanos, rememoram nostalgicamente um continente africano compartilhado por todos aqueles de lá foram violentamente arrancados e escravizados. Assim, se no Brasil Abdias havia se notabilizado como defensor da causa afrodescendente, quando viveu nos Estados Unidos ele ampliou as dimensões de sua militância e associou suas imagens à diáspora negra mais geral, e não somente à luta específica dos afro-brasileiros”. Dária Jaremtchuk, 2018, op. cit., pp. 276-77.
[viii] Elisa Larkin Nascimento, Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o senado. Brasília: Senado Federal/Coordenação de Edições Técnicas, 2014, p. 208.
[ix] Dária Jaremtchuk, 2018, op. cit., p. 273.
[x] “Mesmo que Abdias considerasse a universalidade dos códigos que pintava, foram constantes textos e legendas como elementos intermediários para acompanhar suas imagens”. Ibid., p. 276.
[xi] Ambos viveram no Rio de Janeiro quando ele trabalhava como jornalista correspondente de um escritório de notícias e puderam conhecer Abdias em torno de 1957, ano em que foi encenado Sortilégio: mistério negro no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
[xii] Interessante lembrar que a primeira venda de um quadro feita por Abdias Nascimento nos Estados Unidos foi, supostamente, para um professor da Columbia. Em 1969, o artista também realiza uma exposição lá, a sua segunda na carreira, na Crypt Gallery. Como diz Elisa Larkin Nascimento, “A solidariedade lhe ajudou em mais de uma ocasião, a começar com o gesto do ‘brasilianista’ Charles Wagley, professor da Universidade Columbia, ao comprar um de seus quadros, um trítico que ainda se encontra no Instituto de Estudos Latino-Americanos daquela prestigiosa instituição”. Elisa Larkin Nascimento, 2014, op. cit., p. 208.
[xiii] A forma como a cor é recebida criticamente em relação a obra de Abdias Nascimento é um tópico que mereceria um artigo específico. Quando lemos a compilação de textos presentes na sua publicação de 1995, é curioso notar como os autores confluem para uma interpretação das pinturas do artista que vai na contracorrente de qualquer olhar “demasiadamente intelectual das telas”, com diz Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) em seu próprio texto. Calor, ausência de escola, pureza, não intectualidade, sensorialidade e verdade são algumas das palavras-chaves usadas para se referir ao artista. Estas leituras da cor tendem a entendê-la enquanto elemento não ocidental de resistência àquilo que o próprio artista chamou de “cânones da arte formal”. Por mais que, como vimos, esse desejo vá de encontro a alguns anseios intelectuais de Abdias, é difícil concordar com leituras que parecem eliminar muitas das complexidades que as imagens do artista trazem para o público. Se ele próprio disse que foi através da pintura que conseguiu se comunicar nos Estados Unidos, como seguir em uma esteira interpretativa que parece lê-lo de forma um tanto quanto acachapante como um artista capaz de transformar em imagem a sua “ancestralidade” africana de forma quase “instintiva”?
[xiv] Roger M. Isaacs, “A ética da liberdade”. In: Abdias do Nascimento, 1995, op. cit., pp. 119-20.
[xv] Tenho a impressão, devido às diferentes formas como Abdias Nascimento assina essas três pinturas, de que 306 West 81st Street seja posterior à Riverside 1 e à Riverside 2. Se prestarmos atenção nas suas obras assinadas de 1968, a forma como Abdias as assina é semelhante àquela encontrada nas duas últimas pinturas. Enquanto isso, no decorrer de sua carreira, é comum ver sua assinatura surgir apenas pela presença do sobrenome “Nascimento” escrito em letra cursiva, tal qual vemos nesta pintura onde o pássaro se faz presente.
[xvi] A respeito dessa passagem de sua vida, Elisa Larkin Nascimento diz na biografia do artista: “A exposição teve um catálogo ilustrado e foi acompanhada de conferência sobre o racismo e a luta negra no Brasil, no bojo de um convite do Instituto das Humanidades para que Abdias Nascimento participasse do seminário interdisciplinar ‘A humanidade em revolta’”. Elisa Larkin Nascimento, 2014, op. cit., p. 209.
[xvii] Desde o final do século 19, artistas tão diferentes como Charles Webster Hawthorne (1872-1930), Helen Frankenthaler (1928-2011), Walker Evans (1903-1975), Ethel Mars (1876-1959), Hans Hofmann (1880-1966), Lee Krasner (1908-1984) e Robert Motherwell (1915-1991) experimentaram artisticamente na região. Ver Alina Cohen, “How Provincetown Became a Radical Art Haven”. Disponível em https://www.artsy.net/article/artsy-editorial-cape-cod-town-inclusive-haven-artists. Acesso em 4.10.2021.
[xviii] Após consulta realizada com Elisa Larkin Nascimento, não se sabe exatamente quando, com quem e em qual casa exatamente da região de Cape Cod esteve o artista. Possivelmente sua visita se deu em 1970. Importante frisar que Cape Cod, em Massachussetts, fica aproximadamente a duas horas e meia de carro de Middletown.
[xix] Abdias Nascimento, 1995, op. cit., pp. 49-50.
[xx] Abdias Nascimento, Axés do sangue e da esperança: Orikis. Rio de Janeiro: Achiamé/RioArte, 1983, p. 71.
[xxi] Napoleão Lopes Filho, seu amigo íntimo, tem uma bela definição sobre sua obra: “Sua pintura é como um semáforo. A gente vê, se contém, se assombra ou passa, mas nunca se fica indiferente”. Napoleão Lopes Filho, “Abdias, pintor”. In: Abdias Nascimento, 1995, op. cit., p. 91.
(texto publicado no catálogo de “Abdias Nascimento: um artista panamerfricano”, organizado por Amanda Carneiro e Tomás Toledo, relativo à sua exposição de mesmo título no Museu de Arte de São Paulo, em 2022)