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Axé Bahia: the power of art in an Afro-Brazilian metropolis


[26 de abril de 2018]



Também parte da série de exposições patrocinada pela Getty Foundation, o Fowler Museum, em Los Angeles, organizou e recebeu a exposição “Axé Bahia: the power of art in an Afro-Brazilian metropolis”. Situado dentro do campus da UCLA (University of California, Los Angeles), o museu foi criado em 1963 como um espaço para abrigar coleções e realizar exposições de artefatos não-ocidentais. No decorrer de sua história, o espaço inicialmente visto como museu de antropologia e etnografia ampliou o seu escopo curatorial e passou também a abrigar exposições de artistas visuais contemporâneos advindos da América Latina, África, Ásia e Oceania, além de organizar exposições coletivas que friccionam obras com diferentes estatutos e geografias. A referida exposição, portanto, responde a esta história recente do Fowler Museum.

Com curadoria de Patrick A. Polk – curador de arte latino-americana e caribenha no museu –, Roberto Conduru, Sabrina Gledhill e Randal Johnson, a mostra declara seu interesse desde seu título: as relações entre arte, Bahia e afro-brasilidade. Conduru tem refletido na última década sobre o que poderia ser a “arte afro-brasileira”, assim como Gledhill pesquisa a afro-brasilidade especificamente na Bahia. Já Johnson é um respeitado estudioso da cultura brasileira que dedicou parte de suas pesquisas à história da negritude no Brasil. Há, então, uma variedade quanto aos pontos de partida dos quatro curadores, o que certamente contribuía com o caráter multifacetado da exposição – literatura, história da arte, antropologia e cinema. O fato de, por exemplo, Roberto Conduru ser um pesquisador nascido no Brasil, ao passo de Sabrina Gledhill ser uma curadora britânica criada em Porto Rico e residente na Bahia por décadas, contribui com a sobreposição de diferentes pontos de vista que insiders e outsiders – aspectos que são bem-vindos em uma exposição que pretende ser um panorama da região.



Após adentar a longa sala onde se realiza a exposição e circular por seus núcleos que sugerem diálogos entre obras específicas, volta à nossa mente o primeiro título da mostra: “Axé Bahia”. Trata-se de uma curadoria que frisa especialmente os aspectos religiosos e sagrados da produção de imagens na Bahia em um percurso que vai desde a invasão portuguesa no século XVI até a multiplicidade de vozes possíveis na produção de arte hoje. A palavra “axé”, advinda do ioruba, é associada a noções de força e energia não apenas nas práticas religiosas afro-brasileiras, mas também no convívio diário entre seus praticantes – as duas esferas não se encontram existencialmente separadas. “Axé” quer dizer tanto a energia sagrada dos orixás, quanto também um conjunto de objetos encontrados em um terreiro de candomblé que emanam essa força. Pode ser também um cumprimento ou um desejo de que algo dê certo, assim como percebido de modo análogo na expressão árabe “oxalá”.

Os diferentes tipos de axé estão disseminados pela vivência cotidiana na Bahia – da mesma maneira que estão potencializados em diferentes obras e aspectos da exposição. Logo na entrada da sala, o diálogo entre dois artistas era exemplar quando ao modo como a curadoria estabelecia conversas na exposição. De um lado, o público era recebido por “Divisor”, obra de Ayrson Heráclito montada pela primeira vez em 2000. Do outro lado, uma série de peças têxteis da designer Goya Lopes chamava a atenção por suas cores e leveza. Os dois artistas, residentes em Salvador, capital da Bahia, trazem com suas obras maneiras muito diferentes de lidar com a afro-brasilidade e sua dimensão espiritual.

Heráclito, um dos artistas visuais vivos que há mais tempo investiga essas questões – cerca de três décadas –, se utiliza, assim como em outros trabalhos, de materiais dos rituais do candomblé. Dentro de uma caixa de acrílico, ele cria uma linha divisora feita com azeite de dendê que se destaca de seu entorno composto por água e sal. Interessa mais ao artista o mistério dessa imagem do que qualquer leitura rápida – vemos o contraste de cores entre o amarelo do dendê e transparência da água, além da forma como essa matéria gordurosa se solidifica e sugere a divisão entre dois espaços. Esses elementos podem ser acionados de diferentes maneiras para se pensar, por exemplo, tanto sobre a história da escravidão negra na Bahia, quanto também sobre os usos culinários e rituais do dendê. Enquanto isso, os tecidos de Goya Lopes lidam com a representação da negritude, as iconografias religiosas e com a possibilidade de serem transformados em estampas. A relação das práticas religiosas-culturais com o vestuário e a moda são essenciais para a designer que há décadas também realiza uma sólida pesquisa na área. A cor é um elemento central em suas peças e a maneira como sugere narrativas a partir de figuras humanas e símbolos faz com que seus tecidos se transformem em padrões geométricos baseados na tensão entre decoração e representação de elementos centrais da cultura afro-brasileira.



Para além de suas diferenças ao lidar com a imagem, a dupla formada entre Heráclito e Lopes é interessante na medida que propõe um cruzamento entre agentes atuantes em esferas dialógicas, mas diferentes. Ao passo que o primeiro é um artista visual com crescente reconhecimento no circuito das artes visuais – tendo participado inclusive da última edição da Bienal de Veneza -, Goya Lopes tem uma atuação também internacional, mas no campo do design e da moda. Parece essencial, portanto, o modo como a curadoria da exposição não apenas reuniu (de modo não hierarquizado) pessoas já institucionalizadas nas artes visuais, mas sim criadores de diferentes linguagens e lugares. Se a intenção era de trazer ao público um panorama da afro-brasilidade na Bahia, melhor opção não poderia haver quanto às presenças no projeto.

O diálogo transhistórico também era um dos pilares da exposição; como falar de modo panorâmico da produção de arte na Bahia sem se valer de encontros entre Pierre Verger, Carybé, Mário Cravo Neto, Rubem Valentim e Mestre Didi com artistas mais jovens como Tiago Sant’Ana, Thaís Muniz, Eder Muniz, Àlex Ìgbó, Helen Salomão e Tauan Carmo? Felizmente, as obras escolhidas também foram uma aposta em gerações mais jovens de artistas. Isto não apenas traz frescor à mostra, mas também demonstra como os nomes mais históricos e conhecidos da Bahia seguem a produzir diferentes sentidos no presente. Era relevante também se deparar com nomes que tem reconhecimento no estado da Bahia, mas que infelizmente ainda não são tão conhecidos em outras regiões do Brasil – ou ao menos eram desconhecidos a mim; J. Cunha, Marco Aurélio Damaceno e Oscar Dourado são artistas com pesquisas certamente interessantes e que urgem por uma maior circulação dentro do Brasil.




Por fim, foi interessante constatar que por mais que o título da exposição traga a expressão “the power of art” (“o poder da arte”), diversas vezes estávamos perante uma reunião de imagens que não necessariamente partilham do estatuto de arte. Cartazes, gravuras e objetos feitos para rituais são apenas alguns exemplos da seleção de imagens que criavam contrastes justamente com as obras institucionalizadas enquanto artes visuais. Essa opção por não separar de um lado a “arte” e de outro a famigerada “cultura visual” também parecia um acerto curatorial e apenas acrescentava mais ingredientes para o caldeirão cultural apresentado em forma de exposição. Possivelmente as capas de álbuns, capas de livros, postais e joias mostrados na exposição tiveram uma circulação maior (massificada) quando comparados com as obras feitas para galerias e museus dos artistas reunidos no projeto. Essa informação não faz com que sejam melhores ou piores entre si; apenas que possuam um acesso diferente que fica claro para o espectador no decorrer do percurso expositivo e que contribui com a constante problematização das relações entre “axé” e “Bahia”.

Ao final da visita, saíamos com a certeza de que as pesquisas em torno da arte, da cultura visual e da construção da identidade imagética de regiões específicas do Brasil são mais do que bem-vindas. Uma exposição como essa – assim como a terceira edição da Bienal da Bahia, realizada em 2014 ou as exposições organizadas por Paulo Herkenhoff em torno das imagens feitas sobre a Amazônia – apresenta ao público a relação entre imagem e geografia cultural de maneira crítica e caleidoscópica. A “Bahia” – sempre entre aspas – é a terra de escritores como Jorge Amado, mas também é a terra de artista visuais ainda sem metade de seu reconhecimento. É um lugar de encontros, afetos, conflitos e disputas por poder. É o ponto de partida para o nascimento da futura nação brasileira e um dos berços do candomblé, mas também, recentemente, um estado em que os ataques por intolerância religiosa contra a afro-brasilidade mais crescem em ondas de preconceito e ódio à alteridade.



Mais exposições como essas são essenciais de serem realizadas não apenas fora do Brasil, mas especialmente dentro do país. Dessa maneira contribuímos com o crescente processo de desconstrução histórica da visão de que o sudeste brasileiro é o grande coração cultural do país e também aprendemos que todo regionalismo cultural – qualquer ideia de “cultura baiana” ou de “arte baiana” – é sempre uma construção e, por consequência, uma invenção.

Que os processos não lineares de invenções da Bahia nos levem a aprender mais sobre a invenção do Brasil enquanto nação, enquanto cultura e enquanto identidade artística.


(publicado originalmente na edição de março-maio da revista ArtNexus)
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