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Banco Nacional

Frederick Wiseman
[11 de outubro de 2013]


Escrever um texto sobre o cinema de Frederick Wiseman é tarefa difícil. Fui apresentado à sua filmografia há pouco mais de um ano través do Bruno Carmelo, que assina a curadoria dessa retrospectiva comigo. Pouco ou quase nada sabia a seu respeito anteriormente, além da força de seu nome através do fatídico jogo de palavras de seu sobrenome (o “sábio homem”, tradução das palavras “wise” e “man” em português). Muitos filmes vistos depois, envio de projetos para editais e preparativos para a realização dessa mostra de cinema, me coloquei a ler as abordagens de sua obra pelo viés da crítica e históriado cinema.

A maior parte dos discursos feitos a partir de sua obra dizem respeito, claro, primeiramente, ao desenvolvimento do cinema documentário. Wiseman costuma ser celebrado como uma grande potência no que diz respeito a um chamado “cinema de observação”, ou seja, uma utilização da câmera em que as pessoas filmadas não falam diretamente com a lente, mas são capturadas em recortes de seus cotidianos. O olhar do diretor, portanto, não é tanto o de uma segunda pessoa do singular, mas se aproxima mais de uma terceira do plural.

Fazendo jus a esses dados e seguindo à sua recepção crítica, sempre é frisado o seu desejo por trabalhar a partir de instituições relativas às mais diversas áreas, majoritariamente nos Estados Unidos, e, em segunda instância, na França. Wiseman parece preocupado, então, em trazer ao público como as relações  interpessoais se constroem de modo hierárquico ou mesmo afetivo em lugares que pedem diferentes modos de troca verbal e visual. Locais como uma agência do imposto de renda trazem à tona relações de poder muito claras, ao passo que locais como um hospital lembram ao espectador sobre a efemeridade da existência. Lojas de departamento trazem uma interessante contribuição e busca por significados através de vivências que parecem extremamente fúteis; e ambientes de aprendizado esportivo ou artístico, como uma escola de boxe e diferentes companhias de teatro e dança, versam sobre disciplina e domesticação dos nossos corpos.



Quais seriam os seus verbos-chave? Observar, tal qual o próprio título dessa mostra, parece uma palavra de ordem. A partir dela, muitas das abordagens que pude acompanhar organizando esse livro e também a ler em outros meios, giravam em torno do vigiar, punir, dividir, selecionar, separar, assinar, autorizar e, claro, julgar. Julga-se o cinema de Wiseman como aquele possível apenas para um homem que parece imprimir em suas obras um caráter analítico que poderia vir a ser um reflexo de sua própria frieza enquanto indivíduo. Nessa perspectiva, a imagem emblemática de um relojoeiro, algo que talvez soe um tanto quanto antiquado para os tempos digitais de 2013, parece adequada como uma alegoria para as operações poéticas de Wiseman. Debruçado sobre horas e horas de material, fruto de meses de trabalho junto a uma equipe  minúscula de filmagem, insistindo até recentemente em filmar em película, essa figura do homem sentado em seu gabinete de trabalho rodeado por ponteiros e pequenas engenhocas parece mais do que conveniente.

Munido dessa pesada fortuna crítica sobre seus filmes, me veio uma espécie de vazio textual. O que ainda dizer a respeito de Frederick Wiseman? Por onde acessar a sua obra sem me utilizar, ao menos unicamente, de alguns lugares-comuns no que diz respeito à teoria do cinema? Utilizando-me de uma técnica que possivelmente ele julgaria como “narcisista”, visto seu comentário feito sobre os documentários contemporâneos em que os diretores abordam elementos de suas biografias, comecei a me perguntar sobre algum momento da minha vida em que tenha me sentido em posição semelhante ao que suas imagens parecem se interessar. Já estive em uma situação de inserção em um espaço estranho somado a um olhar aguçado em torno das relações pessoais e profissionais de um grupo de pessoas?

Eis que uma memória da infância veio à tona. Por muitos anos, na década e meia anterior ao governo Fernando Henrique Cardoso, meu pai trabalhou como tesoureiro de uma agência do Banco Nacional, em Copacabana. Nessa época ele residia com nossa família em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Lembro que poucas vezes durante o ano, quiçá duas ou três, ele me levava para “trabalhar com ele” (prática essa que ainda posso observar nos mais diversos tipos de família). Ali ficava eu, sentado em uma mesa, entediado ou me distraindo com coisas que pareciam grandes novidades, como uma calculadora científica. As pessoas vinham e voltavam, apertavam minhas bochechas e travavam aqueles diálogos geralmente exclamativos típicos com crianças. Da minha parte, tudo era estranhamento. Perguntava de tudo a meu pai e fazia um esforço tremendo para entender aquele mecanismo de trabalho.



Tesoureiro? Como assim lidar com finanças e com o cofre do banco? Onde estava o caráter artesanal e que me remeteria à efetiva profissão de minha mãe até hoje, uma costureira? E aquele interminável grupo de pessoas que conversava com ele ou pedia favores? E a série de sacos com moedas e com notas, de um lado para outro, e a velocidade com que meu pai fazia contas, contava dinheiro e organizava tabelas? O território estranho para mim era, na verdade, um espaço para o amor familiar. Estar ali era algo que eu sempre pedia muito e não se tratava apenas de ficar ali parado, mas de realizar todo o trajeto entre o subúrbio carioca e a Princesinha do Mar. Era uma oportunidade peculiar de sair da rotina, de sentir a maresia, de me sentir alguém da Zona Sul por algumas horas.

Um dia, em uma sexta-feira, meu pai foi comigo e alguns amigos a um bar em Copacabana. Lá sentados por mais de seis horas, pela meia-noite, me vi sozinho com ele, completamente embrigado e já sem ninguém ao redor. Recordo dele saindo para a rua, chamando um táxi, gaguejando nosso endereço e dormindo feito uma criança do meu lado. Esse foi um dos primeiros e mais intensos contatos que tive com uma perda de controle dada pelo álcool de alguém próximo. Pretensões à parte, penso que caso estivéssemos assistindo a um filme chamado Banco Nacional, contando com a direção do senhor Wiseman, esse momento de confraternização no bar e embriagamento poderia ter sido perfeitamente filmado e, quem sabe, mesmo mantido na edição do filme. Partindo do princípio de que havia ali uma outra teatralização das relações de trabalho, porém já em torno de uma mesa regada a cerveja, não estaria esse ambiente também ligado à estrutura de relações humanas institucionais?

Em seu interesse explícito pelo teatro, o cinema de Wiseman me parece rico no que tangencia momentos plenos de joie de vivre em contraponto a outros, tal qual esse que relato agora, de uma ausência momentânea de perspectiva de salvação. Talvez ele deixasse apenas imagens do bar na edição. Talvez ele parasse com um pai bancário bêbado, sem nome próprio, chamando por um táxi ao lado do seu filho de 9 anos. A imagem cortaria e a sequência seguinte já acompanharia um outro ânonimo.



Faço esse cruzamento autobiográfico com a sua produção de cinema com o intuito de tentar dizer que, mais do que reality  fictions, mais do que um “cinema de observação” e talvez mais do que os limites do termo “documentário” impõe, as imagens feitas por Wiseman são, antes de tudo, sobre o amor pela vida. Sim, parecerá romântico e talvez seja efetivamente, mas um homem que se coloca por mais de 40 anos a acompanhar indivíduos estranhos a ele em espaços igualmente distantes é um aficionado pela humanidade.

Muitos poderiam ser os termos aí empregados também, visto a necessidade que criamos de nomear tudo que nos rodeia – antropólogo, etnógrafo, jornalista, cineasta. Esse subtítulo tanto faz para essa argumentação. O que é inegável é que, antes de qualquer um desses termos, Frederick Wiseman é um ser humano que optou por transformar seus encontros com a alteridade em algo passível de reprodução para o público. Se a câmera não é operada por ele e, claro, mesmo que fosse, seria incapaz de mostrar o mesmo ponto de vista de um indivíduo, ela ao menos pode compartilhar sua presença física próxima e, após seu malicioso processo de edição, permitir que acompanhemos vestígios de momentos mortos.

Histórias com agá minúsculo alavancadas por pessoas que têm seus 15 minutos de fama à la Andy Warhol. Como o próprio Wiseman disse em entrevista para o Bruno e para mim, não seria possível realizar suas experiências com o documentário em lugares onde há uma linguagem muito técnica. Isso apenas denota a importância do verbo e da potência da oralidade no seu cinema. Se numa primeira visada aquele homem que estrangula uma prostituta em um de seus filmes é um “policial”, ao nos depararmos com algo ruim que sucede a algum policial de nosso círculo de contatos, veremos que ele sempre  foi, antes de tudo, um homem, um ser humano. Talvez fosse mais correto dizer que se trata de um cinema de observações, no plural. Não é apenas Wiseman que observa os “outros”, mas sua preocupação me parece justamente em permitir que o público veja como as pessoas estão todo o tempo a se observar e a travar esses diálogos visuais, porém em diferentes lugares das escadas sociais e humanas. Através de suas imagens, então, conseguimos apreender o modo como um médico contempla a fisicalidade de  um distúrbio psiquiátrico em um paciente ou, por outro lado, como pessoas ricas se divertem despretensiosamente em uma estaçãode esqui e explicitam sua felicidade para a câmera. A banalidade das situações capturadas e sua elevação ao estatuto de obra de arte nos faz ter em mente que o “banal” per se também é uma ficção, assim como o supostamente “importante” ou “erudito”. Está tudo na cabeça de cada um e nos lugares de onde os discursos são emitidos.

Para se fazer cinema como Wiseman talvez tenhamos que nos colocar no lugar de uma criança, assim como o filho do bancário que tentava compreender o seu entorno. Outra opção igualmente próxima a ele é a posição de deslocamento de um homem estrangeiro às ambiências que opta por filmar. Seus filmes, portanto, têm um eco com algo muito comum na prática artística contemporânea no que diz respeito às residências artísticas. Sophie Calle, Paulo Nazareth e Nikki S. Lee são apenas alguns poucos exemplos da possibilidade de se transformar o estranhamento e as tentativas de compreensão e organização da alteridade em imagem.


Não apenas na contemporaneidade, mas estando no Brasil, como se esquecer da longa tradição de artistas e literatos viajantes que aqui estiveram e documentaram sua experiência? De Hans Staden, o alemão que foge dos canibais, passando por Jean-Baptiste Debret, o artista francês que supostamente documenta o Brasil de modo “fidedigno” a Pierre Verger, fotógrafo praticante das religiões afrobrasileiras e responsável por extensa documentação visual, muitos foram aqueles que compartilharam suas visões com o público. Se nem  todos, claro, eram dotados da disciplina e da linguagem de Wiseman devido às suas discrepâncias históricas, ao menos são passíveis desta aproximação que, novamente, demonstra como este cinema tem algo de uma vontade da existência e uma insistência humana em observar que atravessa os séculos.

Os filmes de Frederick Wiseman, me parecem, por fim, um convite a uma apreensão dos fenômenos artísticos para além dos seus lugares seguros e por vezes já enferrujados. Em vez de nos calcarmos em conceitos, Deleuzes & Guattaris e classificações, todos eles negados com veemência cortante pelo próprio autor, talvez ele apenas tenha a ganhar quando aproximado a esse elemento inevitável para a realização desse texto e para a sua leitura nesse momento: a vida. Para isso, porém, é necessário ter um olhar sensível, aberto e que valoriza o banal das calculadoras científicas e dos copos de cerveja – elementos que, certamente, Wiseman detém.
Não esqueçamos que esse homem, esse Frederico que nunca dirigirá o Banco Nacional, é um “homem sábio” – e, claro, como o provérbio diz, sabedoria não é conhecimento.


(texto publicado originalmente no livro-catálogo da mostra de cinema "Frederick Wiseman: o documentário além da observação", realizada entre 24 de setembro e 6 de outubro)
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