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Benvenuto Chavajay


[05 de novembro de 2015]



Diamantes ocupam um lugar privilegiado dentro da cultura moderna e contemporânea mundo afora. Alavancados ao estatuto de mito através de vozes como as de Marilyn Monroe em “Diamonds are a girl’s best friend” – capazes de levar gerações a crerem que sim, os “homens preferem as loiras” –, recentemente foram vistos com perspectiva mais crítica, mas não menos ostensiva, por um Kanye West e seu “Diamonds from Sierra Leone”. De todo modo, essas pedras preciosas seguem na sua sólida trajetória do capital sempre rodeada por seguranças e seus ternos à prova de balas.

Quando o artista Benvenuto Chavajay intitulou sua primeira exposição individual na Galeria Pilar, em São Paulo, por “Diamante típico”, trazia à nossa memória toda essa carga de significados que a pedra preciosa evoca. Ao circularmos no espaço expositivo e contemplarmos as imagens ali compartilhadas com o público, ficava claro que se tratava de um uso mais sarcástico das palavras e, no lugar da ostentação, éramos confrontados com a precariedade dos materiais utilizados na composição das obras.

Exemplar dessa articulação de significados no trabalho de Chavajay era uma obra que se encontrava logo na entrada da galeria, intitulada “4’ 33” versión 2 (John Cage)”. Um grupo de mais de uma dezena de tripés para microfone estão concentrados e muito próximos entre si de frente para uma parede vazia. No lugar dos aparatos eletrônicos na parte de cima desses objetos, o olhar do espectador percebia a presença de pequenas esculturas que emulavam microfones, mas cuja cor terrosa não deixava dúvidas para a composição feita em barro. Esse material e seu fundamento artesanal estabelecem uma relação de contraste com o caráter industrial dos tripés e com as diversas possibilidades que a tecnologia digital pode conferir à música na cultura contemporânea. Na ausência de mecanismos eletrônicos, só nos resta um silêncio dialógico àquele proposto em 1952 por John Cage.


Porém, como o próprio musicista estadunidense nos deixou como legado, o silencio per se é uma ficção, ou seja, mesmo quando seus quatro minutos e trinta e três segundos de ausência de toque em um piano foram apresentados pela primeira vez, o espaço de concerto foi tomado por sons que uma escuta atenciosa seria sensível. Na mesma medida, se os microfones de terra de Chavajay não são capazes de ampliar a voz humana ou criar uma microfonia, o contraste sugerido pelos materiais proporciona uma espécie de alegoria do tempo e das transformações tecnológicas que permeiam a experiência humana. Poder-se-ia rapidamente relacionar essa relação entre artesanal e industrial com as diversas transformações históricas e econômicas sofridas nas últimas décadas na Guatemala, o país de origem do artista. Creio, porém, que a potência das imagens apresentadas na exposição nos convida a uma fruição que, mesmo consciente do diálogo direto entre artista e contexto específico, proporcione leituras que estejam para além de uma reivindicação de pertencimento a uma região.

O barro é um material importante para se ampliar a leitura de alguns trabalhos de Chavajay devido à sua presença em culturas muito diferentes ao redor do mundo. No período comumente chamado por Antiguidade, culturas geograficamente distantes e certamente sem contato entre si já produziam vasos e escultura através da cerâmica. Nessa medida, do mesmo modo como a Guatemala sofre as consequências de um choque tecnológico observado cotidianamente por Chavajay, outros territórios como Hong Kong e a Austrália também observam a passagem do tempo e a recodificação de técnicas rotineiras em rótulos como “arte popular”.

“Bacuna”, uma escultura em barro que emula uma seringa, diz respeito a essa reflexão quando traz de volta ironicamente a dimensão artesanal que um dia atravessava toda a prática da cura (e não da medicina) em gerações anteriores às nossas. Já “Pajaro”, escultura composta por cinquenta lupas de plástico que tem seus vidros sobrepostos com argila, parece evocar a um mecanismo interpretativo semelhante à obra que referencia John Cage. Se aqueles microfones são incapazes de propagar a voz, essas lentes (as mesmas utilizadas para se estudar a terra e os pássaros pela ciência) também são destinadas à opacidade de um enterro.


O milho, um dos alimentos disseminados globalmente após a chegada dos europeus nas Américas, se torna uma metáfora do corpo humano em “Hombres de maiz”. Cada pequena semente é perfurada por um piercing e o acúmulo desses corpos de milho é fotografado desde cima. Eis nessa imagem uma espécie de visão aérea da massificação das modificações corporais possíveis através do metal – do mesmo modo que muitas dos habitantes originários da América possuíam seus corpos perfurados. Retorna-se, de certo modo, ao passado, porém com o valor simbólico de uma ostentação da transformação corporal como sinônimo de contemporâneo. Enquanto isso, em “Botones” os grãos de milhos são extraídos de espigas e substituídos por botões ou diamantes de plástico, ao passo que em “Retábulo 1” as figuras sacras dão lugar a uma aglomeração de elásticos emoldurados por madeira. Novamente, Chavajay se utiliza da repetição de objetos industriais para rever um alimento ou iconografia tidos como típicos de uma cultura.



Enquanto a busca por uma tipicidade é estraçalhada e metamorfoseada pelo progresso tecnológico, os diamantes seguem a durar “para sempre“, como diria Shirley Bassey. Essa passagem do tempo não parece ser um problema para a pesquisa artística de Benvenuto Chavajay. Através de sua exposição, o artista parece demonstrar que um dos mais preciosos diamantes da experiência humana não são esses objetos lapidados pela mão, mas sim aquelas tecnologias transmitidas de geração para geração, tanto sujeitos quanto objetos da História.


(texto publicado originalmente na ArtNexus de setembro-novembro/2015)
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