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Bestiário


[18 de maio de 2017]



“Bestiário” é uma experiência curatorial que aponta para o excesso. Não desejamos a frieza e o largo espaço de respiração comum aos cubos brancos para as obras aqui reunidas. Pelo contrário: é justamente a sobreposição de imagens, volumes e cores que nos interessa. Trata-se de um exercício deliberado de iconofilia e um convite ao mergulho em um campo semântico-iconográfico que lida com alguns aspectos da experiência vital: a alteridade, a incerteza e o medo dados pela apreensão de imagens que apresentam formas que fogem àquilo que convencionamos crer que é o humano.

Esses elementos não-humanos são variados e são explorados das mais diversas formas por todos nós. Se para algumas pessoas que leem esse texto a sugestão bestial poderá levar para uma imagem antropomórfica, outras leitoras irão se lembrar dos animais que mais temem. Esse pêndulo entre a forma humana e a forma animal é, certamente, um dos caldeirões mais ricos para artistas visuais e escritorxs capazes de gerar esfinges, sereias, vampiros e lobisomens. A deformação, ou seja, a presença de uma anomalia que age na superfície da anatomia, também é algo que rapidamente é enxergado como não-normativo e anotado no catálogo das bestas. Ao fim do dia, é possível afirmar que a relação entre monstruosidade e imagem quase sempre passa por alguma distorção (ou um novo desenho) das anatomias.

É tudo sobre os nossos corpos.



A palavra “bestiário” advém dos livros produzidos durante a Idade Média que reuniam coleções de monstros, animais fantásticos e selvagens temidos pela imaginação dos monastérios cristãos na Europa. A besta, como se percebeu no decorrer desta pesquisa, é sempre a “outra” ou o “outro”. Apontar para algo que alguém considera como bestial é sempre dotado de um desejo discursivo embebido de intenções. Essa leitura nos permite compreender, por exemplo, o poder cristão capaz de queimar bruxas e perseguir demônios dos bestiários medievais à contemporaneidade. Foi esse anseio pela catalogação da diferença que fez do Padre Anchieta, em 1560, ser o primeiro a escrever a respeito de um monstro supostamente encontrado no Brasil – o Curupira, antigo conhecido dos povos indígenas que aqui habitavam. Mas seria esse catequizador algo também muito distante de um monstro?

Para fazer essa e outras perguntas, foi importante ter como um dos nortes dessa investigação a Coleção Arte na Cidade, essencial acervo público de artes visuais em São Paulo. Diversxs artistas da coleção – do modernismo a obras produzidas nesta década – se interessaram pela relação visceral entre a forma humana e a animalesca, algo tão bem representado pela artista que nomeia a sala Tarsila do Amaral.



Diversxs artistas-pesquisadores ausentes da coleção foram convidadxs a contribuir com trabalhos já existentes ou feitos especialmente para a exposição e formar nosso coro. Esta curadoria precisa dessa diversidade de corpos, biografias e anseios existenciais para se manter erguida. Em 2017, os bestiários não são mais escritos pelos monges do catolicismo. Seja alguém interessadx pela deformação da escultura ou pela apropriação de imagens de monstros na pintura; seja uma ou um artista interessadx na exploração de seu corpo e biografia como matéria poética ou alguém que se utiliza do registro do real para criar fricções entre o documento e a manipulação – cada qual contribui com esse caleidoscópio.

Agora é a vez daquelxs que tentam viver diariamente com seus monstros internos – ou que são apontadxs nas ruas como corpos desviantes – de escreverem a muitas mãos e olhares uma disposição provisória de imagens que recodifica essa tradição enciclopédica. Cabe ao público do CCSP percorrer esse pequeno labirinto e cruzar as suas bestas com as nossas.

Uma coisa, porém, parece certa e merecedora de repetição: é tudo sobre os nossos corpos.


(texto curatorial da exposição coletiva “Bestiário”, realizada no Centro Cultural São Paulo, entre 16 de setembro e 26 de novembro)
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