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Black and gold


Élle de Bernardini
[05 de março de 2020]



Black and gold (preto e dourado): duas palavras, duas cores, dois campos semânticos. É a partir da interseção entre esses elementos que esta exposição de Élle de Bernardini inicialmente nos recebe.

A artista, na sua recente trajetória nas artes visuais, se utiliza de diversas mídias – do desenho ao vídeo. Constante nas suas experimentações e recebendo notória atenção nos últimos dois anos é o interesse em explorar a produção de objetos de diversas formas, materiais, cores e modos de serem mostrados perante o corpo do público. Dentro dessa diversidade, um vocabulário próprio foi criado: sua escala transita entre o pequeno e o mediano, e os materiais costumam vir do universo têxtil e daquilo que é destinado ao toque – silicone, pelúcia, argolas, feltro e lycra são apenas alguns exemplos de uma poética em construção que deseja lembrar a diversidade corporal e a infindável possibilidade de experiências sensoriais da existência humana, mas sem apelar para a representação explícita do corpo humano.

“Black and gold”, portanto, é uma exposição que prossegue com a expansão do vocabulário de Élle de Bernardini como artista visual e onde uma série concisa de materiais e mídias foras eleitas: couro, ouro e ferro; escrita, objeto e instalação.





Como principal material de parte dos trabalhos aqui reunidos, o couro traz em si uma proximidade inevitável com a pele humana; mole, dobrável, tensionado na parede, transformado em tela ou repousando sobre estruturas de ferro, ele pode ser visto como uma lembrança da fragilidade do próprio corpo, de seus vincos e poros. Independentemente da maneira como será visto pelo público, é interessante notar como a artista dialoga de forma próxima com a larga tradição da utilização de materiais moles na história da arte no Brasil. Sai de cena a verticalidade e o anseio por uma solidez eterna da escultura clássica e se elogia a assimetria e um certo caráter volúvel desses trabalhos.

Se o couro traz esta relação com a fisicalidade, o ouro nos remete a um imaginário em torno do poder e da ostentação; essa é a mesma tonalidade que foi utilizada por tantas religiões a fim de trazer as noções de ascese e transcendência e rapidamente transitar de seu valor econômico para a esfera espiritual. Diferentemente do couro que retém a luz, as formas folhadas em ouro brilham e refletem discretamente pelo espaço. O uso desses materiais cria um contraste que joga com o olhar do público para um lugar intermediário entre a luz e a sombra, entre a artificialidade do luxo e organicidade da pele, entre, por fim, o fundo e a figura.

Esse efeito ganha outra proporção na instalação pensada para a segunda sala da exposição, onde a parede ao fundo é forrada integralmente com ouro e a iluminação é feita com luz negra. Nas paredes laterais, outros trabalhos feitos com couro são mostrados. Nessa transformação do cubo branco, a lembrança da arquitetura religiosa é inevitável e, não à toa, a artista apelidou essa sala de “tumba” e intitulou o trabalho ao centro da sala de “As três pirâmides”; eis uma série de referências importantes para essa exposição: o Egito antigo, seus mistérios dourados e, especialmente, sua escrita.





A artista dá prosseguimento à sua pesquisa em torno das “formas contrassexuais”, uma série de elementos gráficos pensados a partir da leitura do “Manifesto contrassexual” (2000), de Paul B. Preciado. Como alguns de seus trabalhos aqui ensinam ao público, cada uma dessas formas é relacionada a uma zona erógena do corpo e à sua associação com identidades de gênero: ânus, escroto, pênis, seio e vagina. A partir dessas formas-desenhos-símbolos-letras, a artista cria continuamente sistemas que são não apenas projetos de corpos, mas também novas formas de se pensar a escrita hoje.

Essa pesquisa sobre os limites das palavras quanto às formas de se escrever/descrever a respeito do corpo humano, gênero e sexualidade – escrita essa que foi e segue sendo opressora– a levou ao complexo universo dos hieróglifos, com seus contornos e mistérios. Sua escrita se expande, portanto, das telas aos objetos-peles, chegando também às paredes de sua delicada tumba. As formas contrassexuais não estão presas às folhas de papel e desejam tomar os corpos que compõem o público. Mostrá-las se trata cada vez mais de uma experiência física e um convite para que possamos articular nossas próprias escritas a partir desse novo idioma criado pela artista.



E se fossemos capazes de perpetuar uma escrita que deixasse de ser pautada na flexão definida dos gêneros e convidasse a fantasiar sobre os traços perante os nossos olhos? E se estivéssemos em um mundo onde as fobias em torno de todas as alteridades não existissem? E se a maleabilidade de couro de nossas peles não fosse vista como fragilidade, mas sim como potência?

Essas são algumas das questões centrais desta exposição de Élle de Bernardini que nos lembra que a revolução pode começar a partir da criação de novas formas de escrita e novas maneiras de recodificar as histórias das imagens. Utopia e arte caminham juntas desde o Egito Antigo.


(texto curatorial da exposição "Black and gold", de Élle de Bernardini, realizada na Luciana Caravello Arte Contemporânea entre 05 de março e 11 de abril de 2020)
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