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Campo de dispersão


[27 de julho de 2016]



Ao se observar a trajetória de Juliana Kase, é notável o importante lugar ocupado pelo desenho e suas possibilidades de articulação. Se em algumas vezes a técnica foi exercida através de uma perspectiva mais tradicional, ou seja, a partir do contato entre lápis e papel, em outras oportunidades a artista pensou a linguagem através de seus diálogos com o espaço público, a arquitetura e a instalação. Parte da pesquisa que a artista desenvolve nos últimos anos gira em torno da utilização da fotografia e da materialização de fotogramas que geram narrativas sequenciais a partir da apropriação de objetos.

“Campo de dispersão” dá prosseguimento a esta investigação e tem como elemento central a luz que é essencial para a produção de fotogramas. Já neste título se faz presente de modo ligeiramente irônico uma noção que é contrária à concentração de luz necessária para a concretização das imagens – eis uma exposição que afirma ser a respeito da “dispersão”. O uso desta palavra, porém, se refere ao campo semântico dos objetos que nesta exposição foram pesquisados pela artista: aparelhos digitais de visualização de imagens.




Conforme já estudado por diversos teóricos da imagem como, por exemplo, Jonathan Crary e seu “Capitalismo tardio e os fins do sono”, passamos uma enorme quantidade de tempo conectados virtualmente em nossos pequenos computadores – celulares, tablets, monitores em LCD e notebooks. Do mesmo modo que esses retângulos são utilizados para agir no cotidiano, também se tratam de grandes ferramentas de procrastinação. Após ligarmos nossas pequenas telas e sermos bombardeados por uma publicidade sonora da própria empresa responsável pela sua fabricação, o tempo parece passar mais rápido e é comum que nos esqueçamos do que exatamente desejávamos fazer nessas superfícies de luz.

Os fotogramas reunidos pela artista na presente exposição são todos advindos, portanto, dessas superfícies de luz. Nesse sentido, o espaço da galeria se torna efetivamente em um “campo” onde a dispersão temporal típica desses aparelhos cede lugar para o convite a uma contemplação estética que também se configura como ato dispersivo. O que se faz interessante constatar é que são vertidos em fotogramas os mesmos objetos que contemporaneamente são os maiores produtores de imagens fotográficas, porém através da sua perda de identidade de marca. O público tem perante os seus olhos índices da emanação de luzes que, quando vertidas para a fotografia, geram uma cor preta que possibilita diálogos tanto com a história da fotografia, quanto com a história da pintura abstrata. Poderíamos estabelecer uma relação formal explícita com o pai do quadrado preto sobre fundo branco, Kazimir Malevich, porém todo o seu desejo revolucionário foi esvaziado e cedeu espaço a uma reflexão silenciosa sobre o vazio consumista mais dialógica às repetições de imagens produzidas por Andy Warhol.




Já no segundo espaço da Galeria Pilar, o convite à dispersão do olhar se faz de outro modo. Fora do espaço da parede, a artista projetou uma grande peça feita em papel que preenche um vão arquitetônico e convida o corpo do espectador a uma diferente experiência de contemplação. Se no primeiro espaço temos objetos frutos da reprodutibilidade técnica, nessa outra sala há um delicado trabalho de dobradura e construção. Além dessas diferenças tecnológicas, é importante nos lembrarmos dos contrastes cromáticos – se o primeiro espaço era o da relação entre figura e fundo a partir do preto, nessa intervenção da arquitetura nosso olhar passeia por diferentes tons de branco que se movimentam de acordo com a luz.

A mistura entre as cores preto e branca cria o cinza e essa parece ser a tonalidade da exposição. Esses tons de preto-e-branco ainda se fazem presentes em muitas das publicações que lidam com o nosso passado e, uma vez que norteiam as imagens reunidas na exposição, ecoam uma espécie de arqueologia do presente. Tal leitura é complementada pelo lançamento posterior à abertura de uma publicação preto-e-branca baseada nos folhetos publicitários distribuídos em jornais - no lugar da diagramação asséptica de eletrodomésticos retocados digitalmente, a artista trabalhará com fotografias desses objetos sem funcionamento dentro de diferentes espaços.



Ao folhear a publicação, as perguntas serão lançadas não mais para o passado, mas para o futuro – o que podemos esperar desses retângulos dos quais nos tornamos dependentes nas últimas décadas? Quais os limites de sua funcionalidade? Como a própria reprodutibilidade técnica poderá continuar a proporcionar uma reflexão crítica a seu respeito? Essas respostas só se farão possíveis com a dispersão que está para além de qualquer campo, ou seja, o próprio tempo.

Enquanto esperamos por sua passagem, aceitemos o convite de Juliana Kase e nos entreguemos à observação de seus polígonos. Talvez a resposta para a nossa ansiedade atual esteja mais em um retorno para o artesanal do que em um salto para o virtual.


(texto relativo à exposição "Campo de dispersão", de Juliana Kase, realizada na Galeria Pilar, em São Paulo, entre 04 de junho e 06 de agosto)
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