expos      txts      e-books     bio

Ciclo, alma e imagem: sobre a composteira de arte


[03 de novembro de 2013]



Para falar sobre a composteira de arte, nos encontramos eu, Leo Liz, Nadam Guerra e o curador Raphael Fonseca na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Sentamos em uma das mesas do café. Nadam pediu uma água, Leo um sanduiche, Raphael pediu um Guaraviton, e, eu, um espresso.

Juca Amélio: Como vocês sabem, estou organizando estas conversas com a nova formação do Grupo UM e acho importante termos uma reflexão sobre esta composteira de arte que Leo propôs, que consiste em recolher obras quebradas e outros restos de arte para compostá-los. Chamei Raphael porque mês passado estive na sua exposição A lua no bolso no Largo das Artes e pudemos trocar algumas ideias. Acho que ele vai poder contribuir para esta construção.

Raphael Fonseca: Primeiramente, queria agradecer pelo convite. É sempre bom sentar e conversar sobre os diferentes modos como os artistas operam... Fico muito curioso quanto a títulos de trabalhos, livros e exposições. Queria saber de você, Leo, sobre esse uso do termo “composteira”... Acho bacana porque é algo que vem da prática de se plantar, quero dizer, você poderia ter colocado outros diversos nomes comuns à arte contemporânea – como “arquivo”, “biblioteca” ou mesmo “coleção”, mas seguiu compostando. A que se deve isso?

Leo Liz: Eu acho que este trabalho é justamente uma crítica a esta obsessão da arte em conservar, imortalizar, arquivar, lembrar. Acho que hoje precisamos mais do que nunca aprender a abandonar, desapegar, esquecer, transmutar. Então acho que esta metáfora da composteira vem disso. Nos ciclos naturais as coisas nascem, crescem, morrem, se decompõem e a mesma matéria se reorganiza em novos ciclos. É o tempo cíclico. No mundo de hoje, o tempo do capitalismo é o tempo linear da acumulação. Sempre em frente, sempre para cima e cada vez mais pesado. Só que isso é ilusão. Tudo que é vivo vai morrer. Tudo que é forma será pó.

JA: Não acha que é uma visão meio apocalíptica?

LL: Temos de aprender a não atribuir negatividade à morte. Isso é ridículo. O cristianismo espalhou bom e mau por toda parte. A morte é parte da vida. Eu sou um estágio temporário da matéria. A matéria que há em mim já foi estrela, já foi pedra, já foi planta. E esta mesma matéria vai continuar seu ciclo. Vai ser terra, animal, planta, estrela...

RF: E a morte me parece um tema fulcral na arte contemporânea também; não apenas em artistas menos acessados, como também em nomes muito massificados como o Damien Hirst... Fico pensando, mesmo com o adubo como metáfora, até que ponto a “morte” é propriamente o problema central desse trabalho... E se eu comentasse que vejo o trabalho focado na ideia de descarte do artístico, o que pareceria? O que você pensa sobre esse limite entre o que o próprio artista julga ser arte e aquilo que é “jogado fora”?

LL: Isso parece interessante. Da mesma forma que o artista é que diz se é arte ou não. Para a composteira, foram os artistas que disseram o que devia ser jogado fora. Recebi desde obras perfeitas, que poderiam estar em qualquer galeria, até restos, sobras de ateliê, passando por obras mofadas ou com pequenos defeitos e ready-mades. Jogar fora é sempre um exercício. Para algumas pessoas é muito difícil; para outras, menos.

NG: E para algumas é fundamental poder estar se desapegando. Tiveram várias pessoas que me agradeciam muito por estar participando do projeto.

LL: Foi uma aventura esta primeira etapa de recolher os resíduos, as obras quebradas, falidas ou frustradas. Sorte que o Nadam topou me dar uma força, porque foram muitas pessoas participando. Deixamos dois coletores, um na UERJ e outro aqui no Parque Lage, mas a maior parte dos trabalhos foi coletada nos ateliês dos artistas.

NG: Eu fui visitar várias pessoas. É legal ver o que cada um considera compostável, conversar, ver como se relacionam com o seus resíduos: se com mais ou menos apego.

RF: Curioso você usar termos como “apego” e “desapego”... Eles acabam dando um caráter afetivo e, talvez mais do que isso, quase religioso à coisa. Quando um artista bloqueia uma doação e mantém consigo algo que ainda não é (ou já não é mais) “obra”, mas ao mesmo tempo não é possível de ser “compostado”, estaria ele numa espécie de iconofilia?

LL: Eu não quero julgar ninguém. E também não me considero uma iconoclasta, o que seria uma ingenuidade hoje em dia. Meu objetivo não é destruir a arte ou as imagens. A composteira dissolve a individualidade simbólica/energética e fragmenta a matéria física de cada obra a fim de criar um novo todo coletivo.

JA: Legal você trazer isso sobre o sentido religioso do trabalho. Justo semana passada eu estive visitando o sítio do Euclides Terra em Minas Gerais e ele falava desta diferença entre o catolicismo e o budismo e outras correntes espirituais orientais ou primitivas. Que de certa forma, antes da cultura hebraico-cristã-platônica, todos davam um estatuto mágico que colava e não distinguia representação e representado. E mesmo hoje, no budismo moderno e em outras religiões orientais, temos uma certa iconofilia, onde as imagens e relíquias de mestres são adoradas porque emanam a divindade. Mas o que mais me chama atenção é a não separação. As imagens não estão separadas da realidade, uma fotografia ou uma estátua são uma continuidade da realidade. Por este ponto de vista, noto que oscilamos, no ocidente, entre a aversão e o apego à imagem. Iconoclastia e idolatria.

LL: Eu mesma posso ser acusada deste apego. Porque fotografei e listei cada uma das peças doadas. Teve um momento que pensei em fugir com tudo e montar uma galeria em Miami. Ia ficar rica. (Risos.) Mas falando sério, acho que este trabalho nasce de um outro lugar. Vem de eu me dar conta de quanta gente está trabalhando com arte e por tantos anos, e que a maioria dessa produção não é comercializada, ou não chega nem a ser exibida, se acumula nos porões e sótãos até que estrague. E vem de um questionamento deste valor religioso que se atribui à arte. Na verdade, eu trabalho com o material, mas o que eu queria mesmo compostar eram as ideias, as emoções. Queria compostar a alma da obra de arte!

NG: Caramba, acho que estamos indo muito longe. Eu achava bom situar melhor a palavra compostagem. Não sei se todos estão familiarizados com ela, porque quando se fala de sustentabilidade, se usa os “3 Rs”: Reduzir, Reutilizar, Reciclar, que seria consumir menos sobretudo o que gera resíduo. Não sendo possível reduzir, que se possa reutilizar o mesmo objeto mais de uma vez, evitando os descartáveis, por exemplo. E, em última opção, que os resíduos que não puderam ser reutilizados, ao menos sejam reciclados e retornem ao ciclo como matéria-prima novamente. Então a reciclagem não é a primeira opção, porque acarreta também em gasto de energia, etc. Já o termo “compostagem” se usa para resíduos orgânicos que podem virar adubo ao invés de poluição, se manejados de maneira correta.

JA: E a arte reciclada?

NG: Este nome é um equívoco. O que se tem, geralmente, quando você utiliza arte reciclada, são aqueles brinquedos de garrafa PET ou outros objetos de utilidade duvidosa. Isso seria, na verdade, uma reutilização dos resíduos que adia a ida dele para o lixo ou para a reciclagem.

JA: Queria que vocês explicassem melhor o procedimento e o processo do trabalho da composteira de arte.

LL: A primeira parte foi fazer este convite para receber as doações.

NG: E só isso já foi muito interessante. Contar as pessoas, recolher o material, fazer esta coleção de dejetos de arte.

LL: É, e organizar tudo, separar por material, fotografar.

RF: E como veio a ideia de fotografar e, mais do que isso, compartilhar tudo on-line? Talvez esse caráter público das doações através da fotografia contribua com uma institucionalização dos objetos como uma coleção antes deles serem compostados…

LL: Talvez não, ele também faz parte do trabalho. Acho que é essencial aqui que todo esse processo venha à tona para o público, ou seja, do mesmo jeito nós recompostamos objetos que não eram mais tidos como “arte” (ou talvez nunca tenham sido nem pelos seus autores, eram só experimentos), também queremos desmistificar esse lugar do ato criador.

JA: Sim, certamente, pois daí o público consegue ter acesso ao antes, o durante e o depois. Talvez, com isso, a arte também se torne um organismo vivo e não aquela coisa musealizada e intocável…

RF: Mas, sem querer ser chato, mas já insistindo, fotografar não é continuar com o processo de adoração das imagens?

LL: Sim, mas não vejo problema algum nisso. Acho que no campo da arte não tem como evitar esse lado sacro. Começa tudo por esse estatuto, não é, o “ser arte”. Só isso já coloca a coisa num pedestal − e por mais que a tal arte contemporânea esteja há mais de um século jogando com isso, continua se usando do rótulo.

JA: Até mesmo essa entrevista contribui com a sacralização do trabalho!

RF: Seria ela arte também?

NG: Claro que sim! Me lembrou até o grande vidro do Duchamp que ele dizia que só poderia ser entendido a partir da leitura dos textos da caixa verde, que por sua vez não falavam nada do grande vidro. Enfim, esta conversa (e todas as outras que a obra suscitar) fazem parte da obra.

LL: Tudo faz parte: as conversas, o blog… Quando estávamos fazendo as fotos para o blog, comecei a ter a sensação de estar fazendo fotos mortuárias. Que aquela seria a última foto daquele objeto. Estavam a Aline e o Nadam me ajudando. A Aline sentiu que o clima estava pesando. Eu não entendo muito disso. Ela fez uma defumação e cantou uns pontos de umbanda.

NG: Tive a sensação que estamos tocando em outros planos espirituais. Que esta reciclagem da alma da arte, que a Leo falava, de certa forma aconteceu junto com a compostagem da matéria.

LL: É, e foi da Aline a ideia de fazermos este ritual coletivo no Espaço Sérgio Porto no dia 21 de setembro, que coincidiu também com o início da primavera. Convidamos todos que doaram coisas e compostamos tudo que era de papel. Colocamos todos os papéis na parede com fita crepe e acabou virando uma exposição, porque não conseguimos fazer tudo mo mesmo dia. Duas semanas depois aconteceu esta ação catártica em que fragmentamos tudo e colamos junto fazendo estes painéis enormes.

NG: Foi um ritual mesmo, mais que uma performance. Convidamos músicos para tocar, e a recomendação era fazer tudo em silêncio. Rasgar a obra antiga e colar no painel, criando a nova.

RF: Isso foi na ocupação do OPAVIVARÁ! no Sérgio Porto, não é?

JA: Sim. Leo, eu sinto falta de você explicar melhor o desenho desta instalação.

LL: Então. Dividimos tudo por material: papel, tecido, tesoura. Tudo que era de papel virou estes painéis que cobrem o fundo da instalação. O que eu chamei de tesoura são todos os objetos: plástico, metal, terra, etc. Esta foi a compostagem mais delicada. Com estes objetos, fizemos estas assemblagens. Três pilares: um pilar de PVC (com suportes de fotos), um pilar de madeira e tecido e um pilar de papelão e cerâmica que partiu do molde do próprio latão que recolheu doações aqui no Parque Lage.

RF: Mas por que estas escolhas?

LL: Eu tinha de dar conta do compromisso primeiro do trabalho, que era usar tudo que foi doado. A ideia do pedestal foi muito natural, já que o que estamos discutindo é este pedestal metafórico da arte. Por cima deles, coloquei alguns símbolos que sintetizam o nosso pensamento e as ideias que vieram junto com as obras para a composteira: um arquivo de fichas, uma caveira e uma bólide de vidro, fotos, terra e pigmento. Também essas escolhas foram intuitivas e estimuladas pelas próprias doações e conversas com os doadores.

JA: Com a caveira você composta toda arte desde o Renascimento; o arquivo composta o moderno e, com o bólide, composta o contemporâneo.

NG: Eu tinha pensado mais que seria o físico, o metal e o emocional, ou corpo, mente e espírito.

RF: Ou futuro, passado e presente.

NG: Terceiro mundo, terceiro milênio, terceiro sexo, terceiro travesseiro.

JA: É mesmo, é possível ver muitas trincas. Céu, terra e homem… Masculino, feminino e neutro… Natural, humano e divino…

LL: ... Huguinho, Zezinho e Luizinho. (Risos.)

LL: Eu preferia não fechar a interpretação… Quem quiser que veja o que quiser ver… Acho que morando com a Aline você começa a pegar esta obsessão pelo três. Em meu próprio nome. Todo mundo me chama de Leo, mas na minha identidade está Leopoldina Elisabeth Silva Lima. E foi a Aline que sugeriu que eu assinasse Leo Liz Lee.

NG: Que são três nomes de três letras!

LL: Pois é. Atualmente estou assinando só Leo Liz, que acho que fica mais simples.

RF: E como outros artistas do Grupo UM entraram nesse processo de pensar essa exposição coletiva?

NG: O processo é todo muito autogerido. Cada um vai fazendo o que quer. Vamos conversando e se entendendo. Mesmo os trabalhos individuais são sempre debatidos no grupo e as parcerias surgem naturalmente.

LL: No caso da composteira todo mundo deu palpite: quem é do grupo e quem não é também. Fazia parte da ideia compostar e usar as sugestões. Agregar todas estas conversas.

JA: Muito bom papo. Acho que podemos encerrar por aqui. Ou alguém quer colocar mais algum ponto?

RF: E a composteira de vida, vem quando?

LL: Mas se a vida já é compostagem. É uma autopoiesis e autocompostagem contínua. Vivemos em um criar, morrer e recriar-se a cada instante.


(entrevista realizada para a publicação relativa à exposição "Rupestre contemporâneo", realizada entre 18 de outubro e 14 de novembro, na Galeria IBEU)
© 2023, Raphael Fonseca | Todos os direitos reservados.