Coisas
Regina Silveira
[09 de novembro de 2019]
Esta exposição de Regina Silveira reúne obras produzidas aproximadamente entre 1998 e 2019. Um elemento central aproxima quase todo o conjunto: a utilização da porcelana. Alguns desses trabalhos são realizados em vidro, mas isso não altera a percepção de que, uma vez em queda, todos esses trabalhos seriam suscetíveis à quebra.
Parte da produção aqui reunida diz respeito a objetos tridimensionais dispostos em bases e móveis. Idênticas àquelas utilizadas em nosso cotidiano, são peças ausentes de seu caráter utilitário. Tigelas, pratos, xícaras, pires, jarras, vasilhas, terrinas e bules – o nosso vocabulário em torno da cerâmica precisa ser revisto para descrever as diversas formas utilizadas pela artista. Notória pela sua pesquisa com o desenho desde os anos 1960 – das gravuras sobre papel às dimensões monumentais da ocupação da arquitetura -, percebemos como a sobreposição de imagens é experimentada a fim de chegar em resultados precisos quanto à forma e ricos quanto à sua recepção por parte do público.
Parte das imagens sobrepostas aos objetos sugerem a tensão entre toque e precaução devido ao seu caráter frágil. Pegadas e marcas de mão invocam a relação entre corpo humano e cerâmica de maneira análoga às marcas de pneu que trazem o choque entre veículo e objeto. Uma série de trabalhos busca outra relação com o tempo: um grupo de porcelanas tem o seu estilhaçar congelado pela artista e somos convidados a observar o momento que sugere o atravessamento de uma bala em cada uma das peças. Eis uma dualidade que dialoga com parte da exposição: a relação entre beleza e violência.
Faz-se importante também notar os trabalhos que nos colocam em outras camadas narrativas: quando vemos a disseminação de imagens como a de um alfinete, um botão, um conjunto de garfo e faca, um grampo e um pente rapidamente percebemos o caráter doméstico desses objetos utilizados pela artista - que domesticidade é essa? O que aproxima o designdessas peças e a ergonomia de outros objetos utilizados pelas nossas mãos? Entra em cena o mistério e a capacidade da artista de criar imagens com distintas camadas.
A maioria desses trabalhos responde a intervenções arquitetônicas feitas pela artista no percurso de sua careira. Quando vemos esses objetos reunidos na mesma sala, temos um pequeno inventário de suas próprias instalações e a impressão de que essas peças foram transladadas de um ambiente para outro; tal qual frutos colhidos de diferentes estações, a exposição nos permite o privilégio de refletir sobre um processo de criação e composição que pode se configurar do macro para o micro e vice-versa.
Por fim, em uma série de trabalhos onde a artista se utiliza de três pias e em outro trabalho com um carrinho de chá, a forma é pensada para além da base; se nas peças menores a projeção de sombras é vista geralmente de cima devido à posição mais alta do nosso corpo, nessas outras séries o público observa sua forma de maneira mais ativa, estranhando o seu tamanho e a montagem desses objetos supostamente utilitários. A utilização que a artista faz da noção de ready-made ganha, portanto, outra dimensão.
Esse é um dos momentos onde entendemos claramente como estes “objetos” – palavra que nos levaria a seu caráter utilitário - se transformam em “coisas”: algo que foi deslocado de sua concepção inicial e jogado na esfera da dúvida e do exercício imaginativo por parte do público. Esta é a esfera da arte e é nela que, sob a batuta de Regina Silveira, somos instigados constantemente.
(texto relativo à exposição "Coisas", de Regina Silveira, na Luciana Brito Galeria, em São Paulo, entre 09 de novembro de 2019 e 24 de janeiro de 2020)