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Compromisso


Leila Danziger
[14 de outubro de 2012]



Nunca li um texto de Scholem Aleichem. Depois de ir à exposição de Leila Danziger, além de tomar conhecimento sobre o autor, pude descobrir que uma de suas obras mais famosas é intitulada “Tevye e suas filhas” (também conhecida por “Tevye, o leiteiro”), uma série de contos enfocada na figura de um pai de família judeu que habita na Rússia. Estas narrativas foram finalizadas em formato de peça teatral em 1917.

Escrito por este autor nascido em Pereiaslav, no então chamado Império Russo, mas atualmente inserida no país que tem o nome de Ucrânia, foi adaptado para o cinema pela primeira vez em 1939, nos Estados Unidos. Levada para o formato de um musical da Broadway sob o título de “Um violinista no telhado”, em 1964, a peça foi a primeira a ter mais de três mil apresentações neste teatro. Impulsionada por este sucesso, a obra foi novamente apropriada para o cinema, em 1971, mas tendo como base seu texto musicado. Estes quase cem anos de intervalo até a presente publicação não separaram o texto original do espectador, mas, sob outra perspectiva, fizeram uma aproximação com diferentes contornos.

Brasil, 2012. “Souvenir Jerusalém” é o título da série fotográfica de Leila Danziger inserida em sua mais recente exposição, “Felicidade-em-abismo”. Na parede em frente à entrada da Capela do Parque Lage, três destas imagens apresentam uma pequena narrativa que gira em torno de dois objetos a interagir com o espaço geralmente transformado em postal quando se fala da cidade do Rio de Janeiro – a praia e as montanhas. Silenciado pela fotografia, lá está o nosso violinista sobre o telhado de uma casinha de madeira pintada de branco. Se o percorremos da esquerda para a direita, a lente se distancia dos objetos e acentua sua pequeneza em comparação com o entorno. Se fizermos o caminho inverso, o pequeno instrumentista ganha matéria escultórica e confronta a perspectiva da imagem.



O músico, porém, antes de estar sobre este teto, se encontra apoiado sobre uma base cuja estrutura imita uma série de tijolos. Uma palavra se faz presente: Jerusalém. A cultura judia do autor e da família do personagem Tevye é evocada pelo nome da cidade santa. Mais do que isso, ao sabermos que se trata de um pequeno bibelô que foi comprado na própria cidade, se percebe a dimensão da recepção dos textos de Aleichem, ou seja, o personagem literário cuja vida foi escrita na Rússia se transformou num símbolo do judaísmo e é vendido como ícone de Jerusalém. O violinista se verteu em um pequeno monumento capaz de fazer lembrar Israel toda vez que um viajante observar sua imagem e nome próprio acima do móvel de sua casa.

Há um dado dissonante que não passa despercebido nessas fotografias: um assimétrico pedaço de vidro circunda o musicista. A partir desse vestígio, concluímos que havia um globo que protegia o objeto e que o inseria numa bolha de existência paralela ao ambiente que nos circunda. Nesse sentido, a pequena figura humana tinha um tom de sacralidade da qual foi destituída. Quebrado, em duas destas fotografias o violinista tem seu corpo aproximado da linha do horizonte. Na imagem central desta parede, num rápido olhar poderíamos vê-lo como que colocado sobre esta extensão. E se a cidade do Rio de Janeiro, no lugar do Cristo Redentor, tivesse um monumento cujo aspecto religioso não se dá de modo tão óbvio? E se uma escultura pública fosse também incompleta como esta lembrança de Jerusalém e, mais do que isso, pequenina e proporcional à palma da mão?

Parece possível dizer que Leila Danziger faz uma ficção anti-monumental em torno do Rio de Janeiro. Isso se dá, seja pelas características formais comentadas anteriormente, seja pela ausência de qualquer certeza de que estamos a fruir a cidade brasileira – algo colocado em dúvida precisa quando lemos a palavra “Jerusalém”. Neste sentido, também podemos interpretar o título “Souvenir Jerusalém” como uma frase escrita em francês, ou seja, “lembrar Jerusalém”. Um dos princípios do judaísmo, lembrar a História e importância da cidade que abrigou o Templo de Salomão, é dado a partir do violinista. Colocando em outras palavras, poderíamos interpretar estas imagens como um duplo anti-postal. Não se trata de uma imagem paisagística tradicional de Jerusalém (visto a ausência de praias em sua localização geográfica em Israel), do mesmo modo que não a enquadraríamos rapidamente nas fronteiras do Rio de Janeiro por um ruído de informação. Com isso, Brasil e Israel se chocam, deixam suas denominações historicamente construídas de lado e se tornam objetos de fruição artística e construção de poesia.



Esse encontro era acentuado, no que diz respeito à visitação à exposição, devido a um jogo de reflexos. Quando me colocava em frente a estas fotografias emolduradas, via espelhada em seus vidros a imagem em movimento de uma praia em Tel Aviv, uma das videoinstalações da exposição. As montanhas cariocas eram brevemente habitadas por mulheres que se banham com seu corpo integralmente coberto. Nesse jogo de espelhos, todos somos um e o mundo enquanto tabuleiro de xadrez se torna espaço de convivência, não de batalha. Seguindo com o meu olhar para estas imagens, outro rebatimento se fazia essencial: o meu próprio. Via um rosto sobreposto pelas paisagens do Rio de Janeiro e Tel Aviv. Esta tênue superfície produzia uma imagem minha tão imprecisa e fantasmática quanto aquele pedaço de vidro ao lado do violinista. Penso: qual seria a minha Jerusalém? Que lugar e quais narrativas perpassam a minha biografia e mereceriam ser alçados ao lugar de monumento provisório – fabuloso e fotográfico – sobre a “cidade maravilhosa”?

Através da breve lembrança e interpretação da circulação das palavras de Aleichem, poderíamos montar um interessante mapa imaginário que ladearia Rússia, Ucrânia, Estados Unidos, Brasil e Israel. Creio que a pesquisa artística de Leila Danziger opere nessa apropriação e recodificação de imagens e textos de modo tão movediço como a areia da praia que cobriu, com o passar do tempo, a estrutura da casa branca que suportava o musicista nesta série fotográfica.

Esta arquitetura de brinquedo, por sua vez, não se trata de uma moradia qualquer, mas da casa de bonecas que acompanhou a artista durante sua infância. Esta informação endossa outra característica que me atrai na sua produção: a confluência entre História e vida privada, entre documento e anedota. Lembrar-se de Jerusalém é construir um monumento à história de sua família e à História de Israel e do judaísmo. Neste sentido, é possível afirmar que essa série de trabalhos traz à tona uma palavra-chave em sua produção artística: compromisso. Há aqui um compromisso com a História e uma vontade de tornar visível ao espectador a fragilidade das fronteiras geográficas e religiosas, prestes a serem desmontadas como um papel pontilhado; talvez seu maior compromisso seja, então, com o próprio fenômeno artístico.

Coloco-me ao lado da artista no que diz respeito ao compromisso em relação à História (e, precisamente, às narrativas sobre a arte). Mais do que isso, no que diz respeito a estes trabalhos comentados, um compromisso urge; meus olhos coçam pela vontade de ler as palavras de Scholem Aleichem. Num caminho inverso à linearidade historicista, trilha que possivelmente agradaria a Aby Warburg, desejo saber quais os outros sons que saem das cordas de seu violino além, claro, do bater das ondas do mar.


(texto escrito para a publicação “Todos os nomes da melancolia”, a respeito e organizada por Leila Danziger e editada pela Apicuri, em 2012)
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