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Daniel Lannes


[14 de outubro de 2015]


“Colônia” era o título da exposição individual do artista carioca Daniel Lannes apresentada nos dois espaços da Baró Galeria, em São Paulo, entre os meses de maio e junho. Essa palavra é capaz de ativar a memória do público de diversos modos, mas se este se trata de alguém que acompanha há algum tempo a trajetória do artista, possivelmente deveria associá-la a um dos seus interesses rotineiros: a História das imagens relativas ao Brasil.

Com um percurso institucional de quase dez anos, Lannes segue a experimentar a linguagem da pintura e suas possibilidades de correlação com iconografias que, no percurso histórico da construção da brasilidade, foram alçadas ao patamar de símbolos. Em meados dos anos 2000, o artista parecia mais interessado em um caráter imitativo e mesmo realista da pintura, se utilizando de frutos alavancados à tropicalidade, como melancias e bananas, além de citações a grandes nomes da história da arte e da cultura de massa ocidentais – de Manet a Zé Carioca. Pin ups e flamingos rosas aparecem no seu percurso pictórico posterior através de imagens onde a pincelada se mostra mais solta e a aplicação da cor ganha um caráter mais expressivo e livre na composição de narrativas em que, geralmente, a figura humana tem importante papel.



Seu interesse pela ainda vigente dicotomia intelectual entre imagens da “alta cultura” e da “baixa cultura” é claro e capaz de proporcionar obras que mesclam culturas visuais; através de seu olhar, os bailes funks cariocas poderiam ter sido pintados pelos grandes mestres da “pintura brasileira” do século XIX, assim como fotografias machistas que monumentalizam o corpo - precisamente as bundas femininas – podem se tornar motivo para o ainda nobre ofício do pintor. É esta espécie de olhar liquidificador que impulsiona a pesquisa artística de Daniel Lannes e, do mesmo modo que o aparelho eletrodoméstico, as relações entre figura e fundo, tradição e apropriação, se tornam pastosas, misturadas e mesmo literalmente escorridas através de experimentações cromáticas que cada vez mais pedem ao artista um lugar de exploração específico.

De qual modo, portanto, “Colônia” dialoga com essa trajetória do pintor? Certamente seria necessário um maior distanciamento histórico para responder a essa dúvida com mais clareza, mas, no que diz respeito à ansiedade de uma resposta momentânea, basta olhar para algumas das obras selecionadas para a exposição. Na entrada de um dos espaços da galeria, o público já tinha à sua frente duas obras distintas quanto ao formato e tratamento da imagem, mas dialógicas quanto à relação com a fotografia.


À direita, “Cadeirinha”, uma obra de pequena escala em que se via uma mulher de tom de pele branca, sentada em uma típica cadeirinha de arruar, muito comum no Rio de Janeiro do século XIX. Ao seu lado, dois homens negros circundam a figura central – se um olha para baixo, o outro encara o espectador. Essa composição tem sua origem em fotografia da década de 1860 que documentava as claras desigualdades sociais que assolavam a capital de um império que não mais era português, mas já se proclamava como Brasil desde 1822. A tal colônia já era um fantasma de cerca de quarenta anos, mas as condições de trabalho e vida no Brasil seguiam sendo assoladas pela escravidão da população negra.

De frente para essa obra, à esquerda da entrada, “Os modernistas” era uma pintura composta a partir de uma fotografia de 1922, cem anos após a Independência do Brasil. Eis aí, já com três décadas da república brasileira, alguns dos artistas pintores e intelectuais que contribuíram com o rascunho de uma “modernidade brasileira” seja nas artes visuais, seja na reflexão sobre a nossa História. É intrigante notar que a figura ajoelhada e mais visível pela fatura da pintura de Lannes seja Mário de Andrade, um dos intelectuais mais definidores de muito do que cerceia certas de ideias de brasilidade e, além disso, um estudioso da mesma colônia (brasileira) que dá o título para a exposição.


As relações entre pintura e fotografia, retrato e pose, parecem ser um dos dados que unem as imagens pós-coloniais do artista. Ao percorrer ambos os espaços em que suas pinturas estavam ladeadas, é notória a apropriação de imagens onde o modo de fotografar requeria estúdio, um corpo inerte e a relação direta com a câmera, tal qual no século XIX. Essas documentações do Brasil, assim como em “Cadeirinha”, seguem a demonstrar os distintos modos de catalogação dos extratos sociais do Brasil – um grupo de indígenas, a família real brasileira de então e outra imagem em que uma figura de pele branca repousa num mobiliário e uma mulher negra senta sobre o chão.

Longe, porém, de se configurar como uma mostra de imagens panfletárias que preguem uma revisão explícita da História do Brasil, estas mais são estopins para que Lannes possa recodificar esses corpos fotografados em campos de cor que saltam aos olhos e que assombram essas distintas biografias célebres ou anônimas que compõem o caldeirão de nossa cultura. O rosto de Pedro II, último imperador do Brasil e um dos responsáveis pela disseminação da fotografia, nada mais é do que um vulto assombrado por uma larga superfície de amarelo e de vermelho. É nesse jogo de cores que o Império desaparece e dá lugar à República e a outros corpos humanos capturados entre momentos de ação não teatralizada para o olhar do espectador de hoje e do fotógrafo de ontem.


Uma das obras reunidas mostrava um autorretrato do artista à frente de uma pintura de largas dimensões dentro do que parecia ser um museu. Esta imagem pode ser interpretada como uma espécie de alegoria para seu modus operandi de criação: se há a figura do artista em primeiro plano, sempre haverá a pintura como ícone logo atrás e maior que seu corpo. É nesse fluxo entre o fascínio, o estudo e o embate com as imagens que me parece se construir quadro a quadro a singularidade do olhar de Daniel Lannes.


(texto publicado originalmente na ArtNexus de setembro-novembro/2015)
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