De Akehnaton a Duchamp: arte, transexualidade e androginia
[04 de outubro de 2011]
Poucas vezes o tema da transexualidade foi abordado de forma tão delicada, e ao mesmo tempo tão potente, como no filme “Traídos pelo desejo” (“The crying game”, 1992), dirigido pelo britânico Neil Jordan. Fergus (Stephen Rea), um terrorista irlandês vinculado ao IRA, é o responsável por vigiar Jody (Forest Whitaker), um soldado inglês negro que havia sido seqüestrado pelo grupo e pelo qual a célula terrorista esperava obter a liberação de prisioneiro.
Durante o cativeiro, Fergus e Jody tornam-se amigos, malgrado os intentos do primeiro no sentido de manter-se emocionalmente distanciado do refém ao qual, muito provavelmente, precisaria executar. Durante suas conversas, Jody conta-lhe sobre Dil (Jaye Davidson), o amor de sua vida, e pede a Fergus que prometa cuidar dela caso ocorra o pior. As negociações fracassam e o chefe da célula ordena a Fergus a execução do soldado. Tem início uma das seqüencias mais dramáticas do filme: Jody comunica abertamente a Fergus que irá fugir, e que ele não irá matá-lo, já que – ambos o sabem - a violência não faz parte da sua verdadeira natureza (para isso, Jody recorda a antiga fábula do sapo e o escorpião). Catatônico, por alguns segundos Fergus não parece saber como agir, dividido entre o que quer e o que deve fazer, entre o que é e a imagem que tem de si mesmo. Tem início uma perseguição através de um bosque durante a qual Fergus quer e não quer assassinar Jody, até que este é acidentalmente atingido por um caminhão e falece instantaneamente. Após sua morte, Fergus, discordando dos setores mais extremistas e violentos do grupo, e amargado pelo remorso, procura a belíssima Dil, uma cantora em Londres.
A empatia entre ambos é imediata, e, apesar do enorme sentimento de culpa, Fergus sobe, uma noite, ao apartamento de Dil, que, a essa altura, parece retribuir inteiramente ao seu forte sentimento de atração. Durante o crescente envolvimento sexual dos personagens, Dil desnuda-se; a câmera passeia rápida e despretensiosamente por seu corpo revelando, subitamente, sua “verdadeira” sexualidade. Fergus, atordoado, empurra-a. Corre ao banheiro, onde vomita. A revelação é quase tão forte para o espectador como o é para o personagem, uma vez que em nenhum momento anterior da narrativa, nem o roteiro nem a extrema feminilidade de Dil permitem quaisquer suspeitas nesse sentido.
A temática central do filme é a ambigüidade: ambigüidade política, moral, afetiva, estética, e, finalmente, sexual, a qual acaba por encerrar Fergus em um limbo do qual, talvez, somente o amor incondicional de Dil pode salvá-lo. O filme de Neil Jordan é certamente não apenas um dos mais belos exemplos de aparição deste tema na arte da segunda metade do século XX, mas também revela uma compreensão profunda da sensibilidade contemporânea relativa à transexualidade.
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Embora o termo “transexual” seja, do ponto de vista histórico, relativamente recente [1], a androginia, concebida genericamente enquanto ambivalência sexual, é representada visualmente nas mais variadas culturas artísticas de todos os tempos.[2] No presente artigo – sem nenhuma pretensão de exaurir o tema ou mesmo de apresentar uma visão totalizante das suas manifestações visuais - examinaremos representações artísticas da transexualidade, hermafroditismo e androginia em distintos contextos e momentos históricos.
Como há raríssimas manifestações fisiológicas do hermafroditismo, através dos séculos o conceito de uma entidade hermafrodita tem se originado, sobretudo, na imaginação. Conseqüentemente, o hermaftroditismo e a androginia aparecem, nas artes visuais, de distintas maneiras, as quais por sua vez dependem diretamente da cultura na qual são concebidos. No passado remoto, a androginia era freqüentemente compreendida – e representada - como uma expressão da divindade. Posteriormente, ela serviu como modelo da perfeição humana – seja física ou espiritual – na medida em que incorpora, harmonicamente, a totalidade das possibilidades ontológicas do homem. Mitos ontogênicos provenientes das mais distintas partes do globo referem-se ao nascimento do mundo como sucessivo a uma divisão, quase sempre traumática, de dois princípios opostos: o dia e a noite, a luz e as trevas, o céu e a terra, o homem e a mulher. As imperfeições do mundo, nesses contextos, com freqüência referem-se à tensão que se origina com essa separação – e ao conseqüente desejo de reunião destes pólos. O hermafroditismo e a androginia, em coordenadas religiosas e culturais tão distantes como a persa, egípcia ou hindú, incorporam a realização do anseio pela divindade primordial, a qual se perdeu em algum momento do passado mítico [3]. Hermafroditas, nesses contextos, são seres arquetípicos. Não foi incomum, ainda, que aos deuses, enquanto criadores de todas as coisas, fossem atribuídos os dois sexos. A representação de deidades andróginas, conseqüentemente, é amplamente difundida, tanto no oriente quanto no ocidente [4].
Talvez um dos primeiros personagens históricos representados de forma deliberadamente andrógina seja Akhenaton (Amenófis IV), faraó egípcio da 18a Dinastia, cujo reinado foi caracterizado por profundas transformações tanto no campo político e religioso quanto artístico. Logo após sua ascensão ao trono, Amenófis IV – como era inicialmente conhecido – iniciou a construção de um complexo religioso, em Tebas, dedicado a Aton, a manifestação esférica do tradicional deus-sol Rá. No quinto ano de seu reinado, o rei transferiu a capital do Egito para a cidade atualmente conhecida por El-Amarna (o período correspondente ao reinado de Akhenaton é usualmente conhecido como “período Amarna”), e transformou seu nome para Akhenaton, ou “servidor de Aton”. Contemporaneamente, instituiu mudanças radicais no âmbito político, religioso e artístico. A arte egípcia, extremamente conservadora, conheceu durante o período amarna uma fase extremamente característica e própria, diferente tanto do que se havia produzido antes como do que se produziria após a morte do faraó. O próprio Akhenaton, sua mulher, Nefertiti, e as seis filhas do casal, assim como a representação de Aton, tornam-se o objeto principal das representações artísticas do período; Aton deixa de ser representado antropomorficamente, como era comum, e assume plenamente a forma do disco solar, elevado sozinho à amplidão celeste e banhando com seus raios a família real.
O ponto que mais interessa ao presente artigo, no entanto, é a fisionomia de Akenathon, cuja evidente androginia jamais deixou de desconcertar não só egiptólogos, mas a todos aqueles que se interessam pela arte egípcia. A face alongada, o busto quase feminino, a amplidão das cadeiras, a saliência do abdômen, são elementos que levaram alguns pesquisadores a supor que Akenathon sofresse de alguma enfermidade que lhe causasse deformações físicas [5]; investigações mais recentes, contudo, vem demonstrando que a representação de Akhenaton se conforma a novos padrões estilísticos firmemente determinados pela ideologia do período Amarna e pela imagem que o faraó pretendia fabricar de si mesmo. Como o deus Aton, identificado por sua vez com o disco solar, é considerado “o pai e a mãe de todas as coisas”, Akhenaton, que, enquanto faraó, encarnava a divindade, teria sido propositalmente concebido como uma figura andrógina. Assim como Aton se constituíra, no pantheon amarniano, em uma divindade total e única, também Akhenaton era representado, ao partilhar características tanto masculinas quanto femininas, como um ser absoluto.
Na tradição literária ocidental, o tema do hermafroditismo – concebido enquanto um “terceiro sexo” – aparece pela primeira vez no Banquete, de Platão (ca. 385 a.C.). Aristófanes, um dos comensais, refere que, no princípio do mundo, havia três sexos, e não dois: masculino, feminino, e um terceiro, o qual possuía características tanto do homem quanto da mulher. Arrogantes e orgulhosos da sua completude, essas criaturas desafiaram os deuses, os quais responderam dividindo-os em dois e condenando-os a uma vida de procura pela sua metade perdida.
Na mitologia grega, um dos mais célebres exemplos de representação da androginia vincula-se ao deus Dionísio (Baco, no panteão romano). Os rituais dionisíacos, fortemente associados à sexualidade, caracterizavam-se pela presença de uma forte tensão entre o masculino e o feminino. Como informa Delia Morgan [6], alguns autores indicam a peça “Os edônios”, de Ésquilo, como um dos primeiros documentos a frisarem a feminilidade de Dionísio. Outros lembram algumas referências ao deus como caçador e guerreiro, o que enfatiza, por outro lado, aspectos masculinos da sua personalidade. Iconograficamente, Dionísio é quase sempre representado de forma andrógina, como por exemplo no mosaico do século IV a.C. na assim chamada “Casa de Dionísio”, em Pella, Macedônia.
Na imagem temos presente tanto a figura do caçador, dada através do deus sobre uma feroz pantera que salta, quanto os traços femininos e leves que compõem de forma sinuosa o seu corpo musculoso. Trata-se, sem dúvida, da representação de um homem, porém suas coxas e suas pernas que se entrecruzam, somados à delicadeza de seu rosto em perfil e de suas mãos, apontam, assim como na tradição literária, para a tensão entre os gêneros. A ambiguidade sexual de Dionísio atravessa os séculos, reaparecendo, por exemplo, no Baco de Caravaggio, artista ao qual retornaremos mais adiante.
Possivelmente, a representação mais célebre de um hermafrodita na história da arte ocidental sejam as esculturas em mármore atualmente conservadas no Museu do Louvre, no Museo Nazionale Romano e na Galeria Borghese (Roma), diversas versões de um original brônzeo perdido que foi atribuído por Plínio ao famoso escultor grego Policleto. A obra representa um hermafrodita jovem, de extrema beleza, adormecido. Visto de costas, a forma do corpo e o penteado parecem representar inequivocamente uma mulher; àquele que passeie ao redor da obra, portanto, a visão do pênis funciona quase como um desconcertante elemento-surpresa. Essa é talvez uma das primeiras representações do hermafroditismo na qual a ambivalência sexual parece estar exclusivamente relacionada ao erotismo, compreendido enquanto expressão sexual intranscendente; o hermafrodita, abandonado a um estado intermediário entre o sono e a vigília, languidesce em uma posição torcida, a qual propõe um jogo de revelações e segredos, luzes e sombras. Assim como no caso do filme de Neil Jordan, o tema central da obra é a ambigüidade – e justamente nela, no limbo entre o dia e a noite, o claro e o escuro, o masculino e o feminino, descansa o seu poder erótico [7].
Assim como nessa obra, em outras representações greco-romanas da androginia o hermafrodita é invariavelmente representado como um personagem fundamentalmente feminino – busto, cabelos longos, curvas – com pênis. O assim chamado Hermafrodita Chablais, atualmente conservado nos Museus Capitolinos (Roma), leva uma criança em seus braços, como que reforçando a própria fertilidade e feminilidade. Com freqüência, ainda, o hermafrodita era representado muito jovem, como, por exemplo, o Hermafrodita de Berlim, ou então na tradição de Vênus, como a estatueta de Hermafrodita da coleção Tozzi. Sobretudo no período helenístico, e, posteriormente, no período imperial romano, deuses são representados de forma crescentemente afeminada.
Por outro lado, a imagem clássica do hermafroditismo, ou, mais geralmente, da ambigüidade sexual, nem sempre é positiva. Para o escritor romano Tito Lívio, por exemplo, o hermafrodita é algo mais horrível que um rio de sangue ou uma chuva de meteoros. No livro 27 de sua “Historia Naturalis”, ele narra o nascimento espantoso de um bebê “tão grande quanto uma criança de quatro anos”, cuja sexualidade – masculina ou feminina – era impossível determinar. Adivinhos foram trazidos da Etrúria, os quais prognosticaram que o terrível portento precisava ser o quanto antes removido do território romano, o mais longe possível do contato com a terra, e afogado no oceano. Lívio prossegue contando como a criança foi depositada, viva, em um baú, o qual foi lançado por um navio em alto-mar. Sacerdotes decretaram que, por três vezes consecutivas, nove virgens atravessassem a cidade cantando hinos. Como observa Kathleen Long, as fronteiras do gênero humano eram restabelecidas em rituais purificadores por virgens, as quais, em sua feminilidade extrema, seriam capazes de re-traçar e manter essas fronteiras [8].
Na história ocidental moderna, a androginia é quase sempre considerada repulsiva e monstruosa. Um célebre caso de (construção do) hermafroditismo é o episódio do “monstro de Ravenna”, uma criatura híbrida que nasce na cidade italiana em 1512. Segundo as sucessivas lendas já escritas ao seu respeito, trata-se de uma criatura a meio caminho entre o feminino e o masculino, o humano e o animal. De acordo com uma ilustração do livro “Quatorze histoires prodigieuses”, de Pierre Boaistuau (Paris: Jean de Bordeaux, 1567), o “monstro de Ravenna” é representado – e descrito, no texto que acompanha a imagem – como uma criatura com um chifre, asas, uma única pata como a de uma ave, um olho em seu joelho, ausência de braços, e duplo sexo [9]. O hermafroditismo, assim, é representando em conjunção com uma série de anomalias fantásticas que geram uma criatura à margem de quaisquer definições.
Nos primeiros tratados médicos e anatômicos renascentistas, o hermafroditismo é, invariavelmente, considerado uma anomalia. Exemplo disso é outro tratado francês, o “Des monstres et des prodiges” (Paris, 1579), escrito pelo cirurgião Ambroise Paré. Após dizer que “... monstros são coisas que aparecem fora do curso da natureza...”, o autor lista suas possíveis características físicas:
...os mutilados, há os cegos, sem-olhos, corcundas, os mancos, ou aqueles que têm seis dedos em cada mão ou cada pé, ou menos de cinco, os que têm juntas atrofiadas ou braças curtos demais, ou o nariz afundado no rosto, como os animais que têm o focinho achatado ou ter os lábios grossos demais e invertidos ou as partes genitais femininas fechadas pelo hímen ou carne em excesso, ou ainda aqueles que são hermafroditas, ou que têm manchas, ou verrugas, ou bexigas, ou qualquer outra coisa contrária à Natureza. [10]
O hermafroditismo ganhará um tratado médico e imagens apenas para si com Caspar Bauhin e seu “De hermaphroditorum monstrosorumque partuum naturae...” (Oppenheim: Galleri, 1614).
Outro dado, citado por Mary del Priore [11], é o texto de Conrado Wolffhart, “Prodigiorum ad ostentaorum chronicon”, cujo subtítulo é “Impenetráveis maravilhas que Deus criou e dotou de significação particular: as estranhas criaturas, monstros e horrendos fenômenos que desde o início do mundo nos advertem como signos da cólera divina”. No lugar da ciência aqui temos o discurso religioso. De qualquer forma, segundo o autor, uma das provas da ira do Senhor em relação à humanidade era justamente a existência desse tipo de “monstro”: o hermafrodita.
Com freqüência, o medo ao hermafrodita ou à ambigüidade sexual se relaciona ao medo do outro. Nesse sentido, nos séculos XVI e XVII não foi incomum que imagens do novo mundo representassem seus habitantes como hermafroditas [12]. Merece atenção, também nesse sentido, o caso da família de Petrus Gonzalve, exportada das Ilhas Canárias para o gabinete de curiosidades do arquiduque Fernando de Tirol. Mais profundo do que ir (ou ouvir) lendas sobre o novo mundo e transformá-lo em imagens de fácil circulação (gravuras), aqui temos o incentivo à presença física dos “monstros”, integrados ao habitual acervo de um gabinete de um nobre, pequenos ensaios de taxonomia. Fernando, obviamente, não fez por menos e também encomendou um célebre retrato do patriarca da família, além de imagens de seus outros integrantes. Merece atenção aqui a figura de uma de suas filhas, tão peluda quanto o pai e que tangencia diretamente a relação entre androginia, artes visuais e alteridade cultural/estética. Não é à toa que esta e outras imagens fazem parte da “Monstrorum historia”, organizada por Ulisse Aldobrandi (Paris, 1543) – o qual, por sinal, também inclui um hermafrodita em seu livro.
Em outros momentos há um movimento inverso, ou seja, busca-se o “bizarro” dentro da Europa conhecida. No contexto espanhol chamam a atenção, por exemplo, as pinturas de Diego Velásquez, conhecido por realizar tanto a inclusão de anões dentro de retratos da família imperial (o célebre caso de “Las meninas”), quanto (curiosamente) pela opção de retratar anões da corte individuais. No mesmo chamado “século de ouro da pintura espanhola” temos alguns exemplos de busca pelo exótico via androginia: o pintor José de Ribera, em 1631, retrata a família de Magdalena Ventura, nobre napolitana em quem teria nascido, aos 37 anos, uma copiosa barba. Ainda segundo a lenda, ela teria, quinze anos mais tarde, dado à luz um menino.
O que chama atenção aqui, analogamente ao caso da família canária, mas de forma ainda mais desconcertante, é o contraste entre a barba (recorde-se as famosas “mulheres barbadas” dos circos ainda ativos atualmente) e a amamentação, entre o vestido e as mãos grandes e fortes como as que comumente são atribuídas às pessoas do sexo masculino. Enquanto Magdalena provoca-nos um intenso estranhamento, tocando de forma pungente na dualidade masculino/feminino, seu marido, em segundo plano, quase se apaga na penumbra.
Das mulheres que parecem com homens aos homens que dialogam com a visualidades das mulheres: Luis XIV, o “rococó” e o feminino. De forma semelhante à Akhenaton, o regente da França entre 1643 e 1715, possuía o sol como emblema, sendo conhecido como o “rei-sol”. Olhar para os seus “retratos de Estado” é entrar em contato com uma outra iconografia da androginia. Se em Akhenaton temos uma maior sinuosidade da forma do homem (assim como no Dionísio), com Luis XIV temos a apropriação de elementos materiais comumente tidos como femininos, ou seja, a maquiagem, as perucas (relatos afirmam que ele era careca), os saltos e as estampas que cascateiam de seus corpos pintados. Sendo filho daquele que “tudo ilumina”, nada mais justo também do que tentar representar ambos os sexos e lançar uma visualidade presente em grande parte da chamado “estilo rococó”.
O termo rococó advém de “rocaille”, do francês, e significa “concha”. Geralmente é associado às curvas, aos tons pastéis e à representação da aristocracia em seus momentos de efemeridade através dos pincéis de Boucher, Fragonard e Watteau. A tensão aqui pode ser encontrada no limite entre estas imagens que comumente representam mulheres e dão destaque primordial à paisagem e aos detalhes de seus vestidos decoradíssimos e este homem, Luis XIV, que pode ser considerado um dos semeadores deste gosto artístico na França.
No século XIX, o hermafroditismo e a androginia despertam um renovado interesse. A reprodução litográfica de imagens greco-romanas representando hermafroditas populariza-os, enquanto a difusão de correntes espirituais e religiosas como o gnosticismo, a cabala, rosa-cruz, a filosofia de Boehme, e mesmo o renascimento do interesse pela alquimia, conferiram uma vez mais ao hermafrodita uma conotação de divindade. No final do século, o advento da psicanálise e da moderna psicologia lançariam nova luz sobre a antiga questão do hermafroditismo e androginia. Ressurge o interesse pelo límbico, pela fronteira entre o dia e a noite, a vida e a morte, o bem e o mal. Na literatura, criaturas híbridas, como o Conde Drácula, ou divididas entre o mundo humano e o animal, como Lobisomem, povoam a imaginação ocidental, assim como Jeckyll & Hyde ou Frankestein, a aberração que, arrancada da morte, torna-se o duplo monstruoso de seu criador. É nesse contexto que o hermafrodita e o andrógino voltam a ganhar protagonismo.
Após dissertar brevemente sobre alguns exemplos de esculturas, pinturas e gravuras, cabe fazermos o caminho de volta ao início deste artigo (o cinema) e lidarmos com sua técnica fundadora: a fotografia. Um dos primeiros exemplos da relação entre fotografia e androginia nos é dado pelo paradigmático artista francês Marcel Duchamp. Referimo-nos à sua “Rose Sélavy”, de 1921. Man Ray foi o responsável pelo clique desta imagem e o próprio Duchamp é o modelo travestido e incorporado como uma de suas várias interfaces, chegando mesmo a assinar (e intitular) obras como tal. Maquiagem, o vestuário adequado e a pose de uma modelo; este é Duchamp enquanto sra. Sélavy. Não se trata de uma tentativa de apagar ou maquiar sua masculinidade, já que são notáveis na imagem seus traços próprios e as camadas de artificialidade colocados por cima. Temos aqui mais um exemplo de como o francês conseguia circular de forma confortável entre os suportes artísticos e mesmo entre as identidades que poderia atribuir a si mesmo.
Outra famosa obra sua que tangencia a questão da androginia, mas em relação à tradição da história da arte, é a reprodução da “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci (que em si já gerou muito debate sobre androginia e retratística) somada a rápidos traços de bigode e barba rascunhados em seu rosto. Chama-se “L. H. O. O. Q.” (1919) e ao ler seu título rapidamente em francês, “Elle a chaud au cul”, pode ser traduzido como “Ela tem o rabo quente”. Um “ela” que poderia ser lido como ele e que leva-nos a repensar os limites entre o masculino e o feminino pelo viés das recodificações da longa tradição daquilo que recebeu o estatuto de arte.
Esta, aliás, é uma tendência deveras presente na arte contemporânea: reler a tradição artística ocidental e fazer críticas, especialmente, assim como Duchamp e sua senhora, pelo viés da fotografia. Com Yasumasa Morimura e Cindy Sherman temos poéticas inversas. O primeiro, um oriental, insere-se na reprodução imagética ocidental de icônicas mulheres, causando um impacto que incentiva nossa reflexão sobre machismo, feminismo e cultura gay. Mais do que isso, com suas obras repensamos o lugar das tradições orientais dentro de nossa construção da história da imagem que geralmente coloca o ocidente em primeiro e único plano. Preconceitos geográficos e preconceitos sexistas. Ele transforma-se em Marilyn Monroe e na cortesã “Olympia” (1863), polêmico quadro de Édouard Manet.
Com Sherman temos a mulher que se coloca nos lugar das representações de homens, como no caso do “Baco doente” (1593-94), de Caravaggio, andrógino em si mesmo e que recebe o seu rosto feminino na sua releitura fotográfica da obra. O enfoque da visão do homem sobre a mulher ou sobre outro homem é invertido pelos olhos da mulher que vêem um homem, um deus, um Baco, ainda doente e ainda mais andrógino.
Ainda no campo da criação fotográfica, temos Andy Warhol e sua série de auto-retratos em Polaroid enquanto travesti. Sem sinal de seios, em algumas fotos mesmo portando uma gravata, Warhol representa-se a si mesmo com um vermelho nos lábios que contrasta tanto com sua pele, quanto com seu cabelo já senil, e o próprio branco que dá a base efêmera de uma fotografia Polaroid. Ele fita o espectador como se estivesse a esperar uma reação imediata, um choque talvez, e tem os lábios entreabertos como se as palavras de resposta já estivessem ali, na “ponta de sua língua”.
Do pai da pop art para os videoclipes, um dos elementos-chave da cultura de massa e da indústria fonográfica atuais. Em de 1998 a banda norte-americana Marilyn Manson (cujo vocalista dá o próprio nome ao grupo) lança o álbum “Mechanical animals” que portava na capa a efígie de seu líder enquanto ser híbrido – homem, mulher, andróide?
No videoclipe da primeira música lançada, “The dope show”, um elogio crítico ao ambiente glamouroso do show business, o personagem faz-se presente novamente, como que caído de uma espaçonave e chocando a sociedade norte-americana que se manifestou publicamente pela censura de tais imagens. Não é à toa que o CD possui uma capa alternativa, sem os seios artificiais e o volume peniano em sua pélvis. A loira Marilyn, a Marilyn Morimura, o Warhol Monroe e estas imagens que vêm de uma banda cujo nome também contém a celebridade; diferentes formatos, mas um tópico constante.
No campo das imagens, tanto daquelas solidamente instituídas enquanto arte, quanto das advindas da chamada “cultura de massa”, a presença da androginia e do hermafroditismo, como se viu, é constante. Com frequência, algumas das obras mais celebradas pela história da arte representam, deliberadamente ou não, a ambiguidade sexual; com elas, por sua vez, a arte contemporânea vem estabelecendo um diálogo ativo, não apenas em bienais e museus, mas também no contexto da assim chamada “cultura de massa”. Um bottom, vendido atualmente na Galeria Ouro Fino, em São Paulo, estampa a imagem do rei-sol Luis XIV: no lugar da famosa pinta, uma estrela; no lugar da pele maquiada por blush, o fundo rosa. Em uma época na qual, medicamente, a sexualidade genital pode, pela primeira vez na história, ser efetivamente alterada, a cultura visual contemporânea parece apropriar-se com ainda maior vigor da longa e variada representação do hermafroditismo e da androginia na história da arte.
[1]O termo começa a ser utilizado pela literatura científica na primeira metade do século XX.
[2]Precisamente devido ao fato de o termo “transexual” ter sido cunhado apenas no século XX, no presente capítulo preferiremos os termos “andrógino” e ‘hermafrodita”, ressaltando porém as diferenças entre ambos: o termo “androginia” do grego “andros”, homem, e “guiné”, mulher, significa a união entre homem e mulher em um único ser. Hermafrodita, por sua vez, deriva dos nomes dos deuses Hermes e Afrodite, cujo filho, segundo Ovídio (Metamorfoses, IV), portaria tanto o sexo masculino quanto feminino. Na literatura, ambos os termos são, quase sempre, utilizados de forma intercambiável, embora com frequência, conotativamente, “andrógino” signifique assexual, e “hermafrodita”, bissexual (atualmente, ainda, o termo “bissexual” se refere àqueles que mantém relações sexuais com pessoas dos dois sexos; na antiguidade, porém, “bissexual” era aquele que possuia, simultânea ou sucessivamente, os dois sexos). No presente artigo – respeitando sempre as variações que a compreensão desses termos sofre ao longo dos séculos – empregaremos o termo “hermafrodita” para designar o hermaphroditismus genitalis, e “androginia” para o hermaphroditismus somaticus.
[3]No Taoismo, por exemplo, Tao, a força suprema, é composto por Yang – princípio masculino vinculado à vida e à luz – e Yin, princípio feminino vinculado à morte e à escuridão. A relação entre Taoismo e androginia é discutida por J. Singer em Androginy: Towards a new theory of sexuality (Garden City, Nova York: Anchor / Doubleday, 1976, pp. 192-207.
[4] Cfr. A. Raehs, Zur Ikonographie des Hermaphroditen. Begriff und Problem von Hermaphroditismus und Androgynie in der Kunst. Frankfurt / Berna / Nova Yorque / Paris: Peter Lang, 1990, p. 20 e seg. para exemplos.
[5]A síndrome de Froelich foi particularmente considerada. Essa possibilidade, no entanto, parece especialmente improvável em vista da semelhança entre Akhenaton e sua família (esposa e filhas), as quais, convencionalmente, assumem algumas das idiossincrasias físicas do faraó.
[6] MORGAN, Delia. “The ivied rod: gender and the phallus in Dionysian religion”. Maio de 2000. Em http://home.earthlink.net/~delia5/pagan/dio/tp99s-dnys-donnr.htm. Acessado em 4 de maio de 2009.
[7]Ao menos oito cópias em tamanho natural e uma miniatura chegaram aos nossos dias.
[8] In Hermaphrodites in Renaissance Europe. Ashgate, 2006, p. 15.
[9]“Il estoit double quanto aux sexe, participant de l’homme et de la femme” (p. 172).
[10]PARÉ, Ambroise. “Des monstres et des prodiges” apud LANEYRIE-DAGEN, Nadeije. “L’invention du corps – la représentation de l’homme du Moyen Age à la fin du XIXe siècle”. Paris: Flammarion, 1997, p.170. Tradução de Ana Resende.
[11]PRIORE, Mary del. “Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e íbero-americano (séculos XVI-XVIII)”. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 42-43.
[12]Todas as criaturas monstruosas, de resto, foram com frequência situadas, geograficamente, nos confins do mundo conhecido, como, por exemplo, as Amazonas e os Centauros no mundo grego.
(texto apresentado e publicado nos anais do 20º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas em setembro de 2011. Realizado em co-autoria com Maria Berbara)