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Desliguem a televisão


Sonia Andrade
[31 de outubro de 2022]


Em 1977, a artista visual carioca Sonia Andrade (1935-2022) gravou um vídeo que dava prosseguimento à sua pesquisa recente, começada em 1974, em torno da linguagem audiovisual. Após vermos quatro televisores de diferentes marcas ligados e transmitindo diversos programas, seu corpo entra em cena e desliga cada uma dessas telas. Centralizada na imagem, a artista olha para a lente da câmera (e para os espectadores) e repete cento e noventa e seis vezes a mesma frase, lentamente: “Desliguem a televisão”.

Esse trabalho compõe uma série de experiências em vídeo feitas em preto-e-branco que são icônicas na produção da artista, fazendo parte, por exemplo, da coleção do Centro Pompidou, em Paris. Comuns a esses trabalhos estava o seu interesse não apenas em explorar o uso da câmera de vídeo – algo que, naquele momento, era recente nas artes visuais –, mas pensá-la em relação ao seu corpo, à paisagem e, de maneira insistente, refletir sobre às mudanças trazidas pela popularização do audiovisual. Sendo a televisão um equipamento tecnológico que se popularizava no Brasil e no mundo durante a década de 1970, a artista parecia interessada em problematizar o seu estado de fetiche. A capacidade que os televisores tinham – e ainda tem por meio dos celulares, por exemplo – de seduzir, informar, distorcer e manipular aparecem nestes trabalhos. Não esqueçamos que esses vídeos foram realizados no auge da violência da ditadura militar que abatia o Brasil e grande parte da América Latina.



Engana-se quem, porém, acredita que a carreira de Sonia Andrade girava em torno exclusivamente do vídeo. Antes de suas experiências com o audiovisual, ela estudou com a pintora Maria Thereza Vieira entre 1971 e 1972, além de frequentar o curso de Anna Bella Geiger, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, entre 1974 e 1975. Como alguém que começou sua carreira depois dos seus trinta e cinco anos – nos ensinando que o mito do frescor do “artista jovem” pode ser uma falácia mercadológica -, ela experimentava em linguagens como fotografia, desenho, gravura, instalação e até mesmo o neon.

Em 1977, ela participa da XIV Bienal de São Paulo com um trabalho em que, por meio de cartões postais de diferentes localidades do Brasil, se vale da chamada arte postal para refletir não apenas sobre as relações entre arte e imagem massificada, mas também sobre a participação de pessoas diversas na autoria de uma obra. No ano seguinte, a artista apresenta no MAM Rio o trabalho “A caça”, censurado pelo governo militar. Duzentas ratoeiras foram espalhadas pelos espaços do museu e, no lugar do esperado queijo, são colocadas medalhas católicas e imagens de santinhos. Até que ponto esse trabalho não causaria convulsão semelhante no Brasil de hoje?



Nos cerca de cinquenta anos que separam estas primeiras exposições até seu triste falecimento recente, Sonia Andrade se manteve fiel ao seu apego à experimentação. Em um oceano de artistas que se atém a fórmulas, chama a atenção o zigue-zague de sua produção, por mais que seja possível notar um interesse constante na relação entre apropriação de materiais e a virtualidade da imagem – cristais são a base para a projeção de um colorbar (sem título, 2005); sapatos banhados em bronze são mostrados em diálogo com suas próprias fotografias semelhantes àquelas vistas em lápides (“O veículo”, 1976-1984); na sua icônica instalação “Hydragrammas” (1993), incluída na XXXII Bienal de São Paulo, em 2016, objetos são feitos pela associação de elementos banais associados entre si pela artista, nomeados e apresentados próximos de suas reproduções em slide. Quais os limites entre as palavras e as coisas, entre um objeto físico e as narrativas feitas com luz pela fotografia e pelo vídeo?

Nos últimos anos, o interesse da artista pela passagem do tempo, outro tópico transversal à sua pesquisa, ficou mais explícito. Em sua última exposição institucional, “... às contas”, no MAM Rio, em 2019, a artista mostrou cinco décadas de todas as contas de seu espaço doméstico. Içados, estes documentos nos fazem refletir sobre os aspectos econômicos e burocráticos de uma vida. Indo por outro caminho, em uma de suas últimas instalações, “Naufrágio”, do mesmo ano, a artista cria uma situação dramática com um aquário cheio de estilhaços de vidro e uma coleção de cerâmica acidentalmente quebrada por sua mãe. Cá estamos perante as ruínas de uma família que também comentam tanto sobre as fraturas de um país em crise, quanto uma sensação do tempo sentida fisicamente pela artista.


Em uma das últimas mensagens que troquei por whatsapp com Sonia Andrade, ela me citou uma frase de Nietzsche: “A arte e só a arte, resta-nos a arte para não morrermos de verdade”. Na sequência ela disse: “Durante anos eu não soube dizer o que é arte até me deparar com esta citação”. Querida Sonia, peço desculpas, mas não desligaremos a televisão. Queremos te ter por perto e fazer jus à sua memória e lugar essencial para se pensar muitas narrativas vindouras sobre as artes visuais no Brasil e no mundo.
 

(texto feito para a Folha de São Paulo em decorrência do falecimento da artista Sonia Andrade, em outubro de 2022)
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