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"Do tirar polo natural": relações possíveis


[15 de dezembro de 2008]



A figura de Francisco de Holanda parece mais do que adequada à proposta deste encontro, ou seja, “a arte e a história da arte entre a produção e a reflexão”. Português, criado dentro do ambiente cortesão e intelectual de D. João III e visitante do território italiano entre os anos de 1538 e 1540, é de sua autoria uma série de textos e imagens contornados pelo debate e estatuto artístico. Desta forma, os dois pólos sugeridos pelo título desta reunião científica podem ser aplicados no que diz respeito à sua obra como um todo, dando-nos subsídios para que possamos, igualmente, produzir história da arte e refletir sobre nossos atuais métodos historiográficos, através da realização de algumas relações dadas a partir de um recorte de sua produção artística.

Se aqui focarei na complicada relação entre imagens e textos, é correto pensar junto às palavras de Mieke Bal em seu livro “Reading Rembrandt”, quando afirma que “... em uma cultura em que o público está constantemente circundado por imagens, ainda encontra-se treinado para privilegiar as palavras em relação às imagens”. [1] Trata-se de não cair em alguma tentativa falha de hierarquizar a escrita e a visualidade, e sim lidar com estas de forma dialética, sem perder de vista as diferenças midiáticas entre os mesmos. Como a mesma autora propõe, talvez o termo “imagemtexto”, sem hífen, seja o mais adequado devido à ausência de preponderância por uma das partes.

Destas reflexões poderia sugerir também que Francisco de Holanda é igualmente produtor e teórico, talvez sendo mais adequada também a junção entre as palavras, já que suas imagens não deixam de ser relacionáveis às suas palavras escritas, assim como seus textos são produzidos de acordo com sua experiência para além da escrita, ou seja, dada pela visualidade. Holanda estaria para além do espaço entre a produção e a reflexão; sua via é de mão dupla.

O objeto central desta breve análise é “Do tirar polo natural”, texto concluído pelo autor em três de janeiro de 1549, em Lisboa. Trata-se, para alguns historiadores da arte como Shearer West [2], Lorne Campbell [3] e Édouard Pommier [4], a primeira obra da tratadística dedicada exclusivamente à teoria do retrato enquanto objeto artístico. Na tentativa de ampliar as relações possíveis de Francisco de Holanda com outras imagens e textos, é necessário citar um pequeno trecho de seu diálogo dado entre Braz Pereira e Fernando:

Braz Pereira – Qual é o mais eminente pintor em pintar retratos ao natural, que vós saibais em Europa, Fernando?
Fernando – O mais famoso pintor de retratos que eu estimo haver em cristãos, que são a flor deste mundo, tenho eu que é Ticiano em Veneza, posto que a mim me disse o imperador em Barcelona perante o nosso duque de Aveiro, e perante o duque de Albuquerque, e perante o duque de Alva, que melhor o tirara do natural Antonio d´Ollanda em Toledo, de iluminação, que Ticiano em Bolonha. Porém eu dou vantagem a Ticiano. [5]

Trata-se de parte do último capítulo do texto, intitulado “Finais avisos no tirar ao natural” e que consiste numa tentativa de colocar alguns pontos finais em questões desenvolvidas em seus dez capítulos anteriores, onde o autor explora diversos aspectos da arte de “tirar ao natural”. Fica clara neste fragmento a sua constante monumentalização da arte realizada na Itália, já que ele afirma que por mais que o grande Carlos V (“... o imperador em Barcelona...”) tenha preferido a imagem criada por seu próprio pai, “Antonio d’Ollanda”, este ainda opta pelo resultado dos pincéis do veneziano.

Ao escrever que prefere o retrato de Carlos V realizado por mãos italianas, além de assumir uma postura crítica para com a retratística quinhentista, Francisco de Holanda lança um problema. Devido à imprecisão de informações presentes nessas suas frases, perguntamo-nos: a qual dos retratos realizados em Bolonha ele está se referindo? Esta referência geográfica, ao menos, exclui a possibilidade deste texto estar se dirigindo aos retratos produzidos após a Batalha de Mühlberg, já que estes foram realizados em Augsburgo em 1548. Tendo Bolonha como referência, Francisco de Holanda está citando um dos dois retratos pintados por Tiziano entre 1532 e 1533.



Dois retratos foram concluídos, sendo que apenas um deles sobreviveu aos nossos tempos (Museu do Prado, Madri), ao passo que o outro é acessível através de uma xilogravura de Giovanni Brito (Graphische Sammlung Albertina, Viena). Tendo em mente as duas imagens e o texto, parece possível concluir que, no caso do português estar apontando com sua frase apenas uma das obras, esta deveria ser o retrato de corpo inteiro, visto a coerência com os pressupostos formais do “bom retrato” encontrados em sua argumentação: o rosto “treçado” (inclinado) e à direita, o decoro, a idealização, a adequação do vestuário ao corpo, a iluminação destacada da face, e também a coerência entre a construção da imagem e a posição de imperador exercida por Carlos V.

Ao lidar com esse tópico, a adequação entre o retrato e a hierarquia à qual o retratado está inserido, cabe recordar dos importantes e influentes escritos de Pietro Aretino, grande amigo e impulsionador da fama de Tiziano como um grande retratista. Das suas três mil cartas, cerca de 225 possuem referências a Tiziano. Dos 203 retratos atribuíveis a este, 115 foram realizados entre os anos de 1537 e 1553, justamente um intervalo de tempo pontuado por quatro das seis edições compostas pelas cartas de Pietro Aretino. [6]

É importante ter em mente que, dentre várias outras fontes textuais, Holanda teria levado de volta para Portugal um exemplar destas edições. Recorrendo à cronologia, esta deveria ser a edição de 1537, visto que seu retorno deu-se em 1540 e que a segunda edição apenas foi realizada em 1542. Dentre as correspondências contidas na primeira edição, uma das mais famosas e possível fonte de informações para o pensamento de Francisco de Holanda sobre retratos, é o elogio feito por Aretino para Verônica Gambara sobre os retratos dos duques de Urbino, Francesco Maria della Rovere e Eleonora Gonzaga della Rovere, em 1537 (Galleria degli Uffizi, Florença). No texto redigido antes dos poemas encontramos já um ponto constante no tratamento que Aretino dá nas suas apreciações de retratos. Ele diz:

Eu o veria [Francesco della Rovere] chamar em testemunho a natureza, fazendo-a confessar que a arte se converteu nela própria. E isto faz acreditar em cada ruga sua, cada pêlo seu, cada sinal seu. E as cores que foram pintadas não apenas demonstram a ousadia da carne, mas, sobretudo a virilidade de seu ânimo. [7]



Para este autor, um bom retrato chega a tal ponto de verossimilhança que se “converte em natureza”. De “tirado pelo natural”, ou seja, pelo embate entre retratista e retratado, ele é elevado ao nível do próprio “natural”, ao nível de um ser humano vivo mesmo. Além disso, outro ponto importante é o costume de associar aspectos plásticos das obras, a cor, por exemplo, com características daqueles indivíduos retratados. Nesse caso, ele associa a cor aplicada por Ticiano à “virilidade do ânimo” do duque de Urbino. No poema dedicado a este retrato, Aretino irá primeiramente vangloriar Ticiano, dizendo mesmo que este era superior ao grande Apeles, o retratista oficial de Alexandre, o Grande, elogiado por Plínio, o Velho.

Se o ilustre Apeles com a mão da arte
Pintou de Alexandre o rosto e o peito,
Já não traduziu de seu raro modelo
O elevado vigor que a sua alma compartilha.

Mas Tiziano, que do céu herdou maior parte,
Mostra exteriormente cada conceito invisível;
Mas o grande duque em seu aspecto pintado
Desvela as vitórias entre seu coração partido.

Ele tem o terror entre um e outro cílio,
O ânimo nos olhos, e a altivez em sua testa,
No espaço onde a honra está sediada,  e o conselho.

No busto armado, e nos braços prontos,
Arde a virtude, que protege do perigo
Itália, confiada a suas virtudes insignes. [8]

Se não encontramos uma correspondência direta entre os textos, ou seja, se Francisco de Holanda não cita de forma literal os textos de Pietro Aretino, por outro lado, ao notarmos a importância que o português dá à composição dos rostos nos retratos, tão grande a ponto dele dedicar cinco capítulos ao tema [9], nos deparamos com a possibilidade de relações não explícitas ao pensamento do escritor italiano. Além disso, os exemplos retóricos extraídos de Plínio, o Velho, como a comum comparação entre o retratista no Renascimento e as anedotas relativas à Apeles e Alexandre, o Grande, fazem presença em ambas as fontes textuais.

Os retratos elogiados por ambas as escritas também se encontram em clara relação. Se o retrato de Francesco Maria della Rovere que hoje fruímos não é de corpo inteiro, seu desenho preparatório, porém, aponta para uma outra direção através da verticalidade e do destaque dado à figura humana em contraposição à sua ambiência. Tais obras ainda fazem coro à outra afirmação presente no texto de Francisco de Holanda, quando este diz que “Louvados são em Itália os retratos tirados todos em pé ao natural, e é por mostrar mais do homem”. [10]



Na talvez única peça de Holanda dentro da pintura a óleo de retratos podemos também encontrar um diálogo tanto com estes textos, quanto com estas obras que são seus estopins. Ao inserir a família real de D. João dentro de uma obra com caráter narrativo, ou seja, uma anunciação de Nossa Senhora de Belém, o artista opta pelo modelo do “retrato de doador”, como dissertado por John Pope-Henessy. [11] Temos aqui a inserção do corpo inteiro destas célebres figuras, porém sem a mesma eficiência do que nos retratos do pintor veneziano, talvez devido à falta de clareza espacial que é conseqüência do seu amontoado de cabeças. As figuras não respiram, transformando-se num grupo de fisionomias aglomeradas em um pequeno espaço da tela, que apontam para as mais diversas direções. Parece faltar aqui justamente a característica mais marcante dentro das obras de Tiziano, deveras elogiada por Aretino: a coesão entre figura social do retrato e forma plástica, o equilíbrio verticalizante da imagem, coerente à devida estabilidade desejada da figura pública retratada.

Quando chegamos aos retratos em miniatura de Holanda, sejam os incluídos dentro do “Álbum de desenhos das antigualhas”, sejam os da coleção da Galeria Nacional de Parma, recentemente atribuídos ao artista [12], deparamo-nos com o problema inverso, o de uma possível ausência de correspondência entre suas imagens e seu “Do tirar polo natural”. Devemos ter em mente que se o texto holandiano aponta para um elogio ao formato dos grandes retratos pintados a óleo, o ambiente português encontra-se inserido na tradição dos retratos pintados em miniaturas, com os quais estes seus exemplos dialogam de forma mais direta, como quando confrontamos o seu retrato do Papa Paulo III com o retrato realizado por seu pai do imperador D. Manuel (“Genealogia de Manuel Pereira”, 1534, Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Lisboa). Como Annemarie Jordan-Gschwend aponta [13], a proeminência do retrato enquanto gênero específico da pintura em Portugal, através das obras que ilustram figuras individuais, apenas se dá em meados do século XVI, especialmente após a visita de Anthonis Mor, famoso retratista nórdico, à corte entre os anos de 1551 e 1552. Antes desse espaço temporal os retratos encontravam-se, em grande parte, assim como o exemplo aqui produzido por Holanda, inseridos nas pinturas histórico-religiosas.

Tocando nessa produção de miniaturas, e retornando às palavras iniciais desta comunicação e deste encontro, ou seja, a necessidade de produzirmos história da arte e, juntamente, refletirmos sobre nossos métodos, parece-me cabível estabelecer aqui um último cruzamento para além da “mediação histórica direta”, ou seja, inexiste qualquer documentação que comprova a ponte entre estes dois objetos. Somando a isso, trata-se também da tentativa de tentarmos estabelecer relações para além dos comuns e polêmicos pólos “centro e periferia”, ou seja, neste caso Portugal e Itália. 



Nosso outro objeto de análise é o “The art of limning”, de Nicholas Hilliard, que advém da Inglaterra. Como seu próprio título aponta, o texto de Hilliard gira em torno da realização de iluminuras. A palavra “limning” advém do verbo “to illuminate”, ou seja, grosso modo, iluminar manuscritos. [14] A experiência do autor, porém, dá-se toda no campo da retratística; Hilliard era o retratista oficial da rainha Elizabeth I e deu continuidade à certa tradição dos retratos em miniatura que vinha sendo construída por Lucas Horenbout. Como o próprio autor afirma, o gênero da miniatura:

... é uma coisa à parte de todas as outras pinturas e desenhos e tende não ao uso dos homens comuns, nem para a decoração de casas, nem para serem modelos de tapeçarias, ou de construção, ou nenhum outro tipo de trabalho, e ainda assim excede todas as outras pinturas (...) sendo mais adequado para a decoração dos livros dos príncipes (...) e é para o serviço das pessoas nobres muito conhecidas ter os seus retratos e imagens de si mesmas em pequenos volumes e de maneira privada. [15]

Enquanto Francisco de Holanda tece elogios aos retratos de grande formato admirados na Itália e na Espanha, Nicholas Hilliard concentra-se na sua própria frente artística, a miniatura. No lugar de elogiar Tiziano Vecellio, o inglês tem como seu modelo de bom retrato a produção de Hans Holbein:

... o mais excelente pintor e miniaturista Hans Holbein, o grande verdadeiro mestre em ambas estas artes tiradas pelo natural que jamais existiu, tão astucioso em ambas juntas (...) mas a maneira de iluminar de Holbein eu sempre imitei, e tomei como a melhor, pela razão que em verdade todas as raras ciências especialmente as artes do relevo, pintura, ourivesaria, bordado, juntas com a maior parte de todas as ciências liberais veio primeiro até nós por estrangeiros, e geralmente eles são os melhores, e maiores em número... [16]

Da mesma forma que Holanda critica o ambiente artístico português, Hilliard irá afirmar sempre que possível a diferença do estatuto dos artistas na Inglaterra e em outras localidades, como a Itália, por exemplo. Enquanto Holanda critica negativamente Alberti dizendo que “... aquele douto homem escreveu como artífice e matemático na pintura, e escreveu muito discretamente, mas eu escrevia por outra via diferente...” [17], Hilliard irá focar seus comentários contra Dürer, já que “... as regras de Albert são em maior parte difíceis de serem lembradas, e tediosas em serem seguidas pelos pintores, sendo tão cheias de divisões, mas muito adequadas para os produtores de relevos, pedreiros, arquitetos e fortificadores...” [18]. Aparentemente, portanto, ambos não ficam satisfeitos com o “excesso geométrico” destas outras duas peças da tratadística.

Ambos os autores afirmam que a composição dos olhos é o mais importante em um retrato. Mesmo assim, como Holanda diz e Hilliard concordaria, “... cada mão é de novo outro rosto por toda a superfície e bom ar dos dedos até o extremo das unhas; e cuidai que não vai menos nela que em fazer vivos os olhos, os quais muito encomendo com as mãos”. [19]

Por fim, mas não menos importante, faz-se necessário lançar luz nesta relação Holanda-Hilliard para além da textualidade, ou seja, através de seus retratos pintados. Primeiramente, é importante frisar que as obras realizadas por Hilliard dão-se em uma junção entre miniatura e ourivesaria, já que o mesmo também era famoso pela sua capacidade de realizar jóias. Como Linda Bradley Salamon constata, se poucas são as evidências visuais relativas à utilização destes retratos na Inglaterra de Elizabeth, muitas são percebidas no que diz respeito à produção dos poetas da rainha, para além de alguns relatos de viajantes. Como exemplo, a historiadora cita que em correspondência à Maria da Escócia, Sir James Melville comenta que adentrou o quarto da rainha e constatou “... diversos pequenos retratos presos a um papel, e com seus nomes escritos pela sua própria mão sobre estes” [20]. Além disso, é conhecido o extenso inventário elisabetano no que diz respeito a jóias, o que também acaba por incentivar a junção entre memória pintada e riqueza visual/material.



Os retratos de Hilliard são extremamente pequenos, podendo mesmo ser lidos como pequenas pedras preciosas. Neste retrato de Elizabeth, datado de 1587, temos apenas 4,5 x 3,8 cm, ou seja, a projeção desta imagem está deveras ampliada comparada ao seu original. Quando confrontamos esta com imagem com, por exemplo, o retrato de outra figura real, como D. Catarina de Áustria, possivelmente pintado por Francisco de Holanda, algumas semelhanças saltam aos olhos. Ambos têm a preocupação em destacar a luxuosidade das rainhas. Enquanto Holanda aproxima-se de sua alteza com um campo de profundidade um pouco mais aberto, o corpo de Elizabeth pintado por Hilliard toma conta de toda sua circunscrição oval. Mesmo a decoração de sua roupa também se dá de forma circular. De um lado temos a utilização de uma vestimenta negra, mas decorada com dourado e que ressoa alguns dos ditos de Baldassare Castiglione quanto ao decoro da cor preta, do outro temos a explosão de rendas e a preocupação com seus detalhes, explicitando certa “era de ouro” do reinado elisabetano.

Além disso, enquanto em Hilliard encontramos uma intimidade de fruição tal qual um camafeu, os retratos pintados por Francisco de Holanda são maiores, em torno dos quinze centímetros, além de estarem relacionados, de acordo com Annemarie Jordan-Gschwend [21], com a produção de retratos de corpo inteiro assinada por Anthonis Mor. Os retratos holandianos, para a historiadora, seriam releituras, com destaque para o rosto, das obras do pintor nórdico.

É interessante constatar a aparente ausência de retratos de perfil feitos pelo inglês, em contraposição aos dois retratos holandianos de Michelangelo e de Pietro Lando. Hilliard opta pela dita postura de três quartos em suas obras, forma esta eleita por Francisco de Holanda como a mais verossímil quanto à retratística. [22] Enquanto isso Francisco de Holanda como que homenageia os italianos através da colocação de seu rosto de forma semelhante ao encontrado em parte das moedas antigas romanas, além de circundá-las com identificações em latim das figuras representadas, algo encontrado em poucos exemplos dentro do corpus de Hilliard. Trata-se, claramente, por mais que algumas proximidades possam ser estabelecidas, de suportes diferentes para as obras. Holanda faz estes retratos dentro de seu “Álbum de Desenhos das Antigualhas”, produto de sua viagem até a Itália, ao passo que Hilliard realiza suas miniaturas na intenção de criar uma coleção das efígies dos integrantes da corte de Elizabeth.

Outro ponto interessante é pensar que enquanto Holanda pintou figuras de corpo inteiro dentro de uma obra religiosa e em grande formato, Hilliard realizou algumas miniaturas de corpo inteiro. As características de um bom retrato levantadas por Francisco de Holanda podem ser percebidas no retrato de Christopher Halton, condicionado aos seus 5,7 x 4,5 cm, que leva-nos a ler uma série de fluxos artísticos possíveis. Poderíamos relacionar esta obra à produção de Tiziano Vecellio, por exemplo, através dos elogios dados por Francisco de Holanda e Pietro Aretino. Também seria possível estabelecer vínculos com, novamente, Hans Holbein e seus imponentes retratos. Por fim, porque não também lembrarmos da visita que Anthonis Mor faz à Inglaterra em 1554, após sua estadia em Portugal e que pode, muito bem, ser mais uma relação crível com a produção imagética de Hilliard?

Mesmo fruto de um ambiente histórico-artístico específico, a produção de Holanda é rica em questões, levando-nos a realizar problematizações para além de sua temporalidade e geografia, possibilitando cruzamentos diversos e que pedem futuros aprofundamentos. Com isso, podemos concluir que a tarefa do historiador da arte cada vez mais se dá no campo da “produçãoreflexão”, ou seja, escrever acerca dos objetos artísticos sem deixar de questionar junto a eles a possibilidade de leituras para além de suas questões mais diretamente (obviamente talvez) relacionadas. A escrita da história da arte está para além da mera produção, da mesma forma que os textos de Francisco de Holanda são mais que meras reflexões, devendo ser lidos ao lado de sua produção imagética.

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[1] BAL, Mieke. Reading Rembrandt. Beyond the word-image opposition. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
[2]WEST, Shearer. Portraiture. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004.
[3] CAMPBELL, Lorne. Renaissance portraits – European portrait-painting in the 14th, 15th and 16th centuries. Londres: Yale University Press, 1990.
[4]POMMIER, Édouard. Théories du portrait – de la Renaissance aux Lumières. Paris: Gallimard, 1998.
[5]HOLANDA, Francisco de. Do tirar polo natural. Lisboa: Livros Horizonte, pág. 41.
[6] FREEDMAN, Luba. Titian´s portraits through Aretino´s lens. Pennsylvannia University Press, 1995, pág. 13.
[7] “Io nel vederlo chiamai in testimonio essa natura, facendole confessare che l’arte s’era conversa in lei propria. E di ciò fa credenza ogni su ruga, ogni suo pelo, ogni suo segno. E i colori che l’han dipinto non pur dimonstrano l’ardir de la carne, mas soprano la virilità de l’animo.” in ARETINO, Pietro. Carta de 7 de novembro de 1537 in LARIVAILLE, Paul (Org.). L´Aretin. Sur la poétique, l´art et les artistes (Michel-Ange et Titien). Paris : Les Belles Lettres, 2003, pág. 23. Tradução livre.
[8]“Se ‘l chiaro Apelle con la man de l’arte / Rassemplò d’Alessandro il volto e ‘l petto, / Non finse già di pellegrin subietto / L’alto vigor che l’anima comparte. / Ma Tizian, che dal cielo ha maggior parte, / Fuor mostra ogni invisibile concetto; / Però ‘l gran Duca nel dipinto aspetto / Scopre le palme entro al suo core sparte. / Egli ha il terror fra l’uno e l’altro ciglio, / L’animo in gli occhi, e l’alterezza in fronte, / Nel cui spazio l’onor siede, e ‘l consiglio. / Nel busto armato, e ne le braccia pronte, / Arde il valor, che guarda dal periglio / Italia, sacra a sue virtuti conte”. In ARETINO, Pietro. Idem, págs. 24-25. Tradução livre.
[9]Relativos à construção plástica dos olhos, sobrancelhas, nariz, boca e orelha.
[10]HOLANDA, Francisco de. Idem, pág. 35.
[11] POPE-HENESSY, John. The portrait in the Renaissance. Nova Iorque: Pantheon Books, 1966.
[12] JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. O retrato de corte em Portugal – o legado de Antonio Moro (1552-1572). Lisboa: Quetzal Editores, 1994, pág. 43.
[13] JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Idem.
[14] DICIONÁRIO DE INGLÊS
[15]Hilliard, Nicholas. Art of limning. Boston: Northeastern University Press, pág. 16.
[16]Ibidem, pág. 19.
[17]HOLANDA, Francisco de. Idem, pág. 41.
[18]HILLIARD, Nicholas. Idem, pág. 18.
[19]Holanda, Francisco de. Idem, pág. 35.
[20] SALAMON, Linda Bradley. “The art of Nichollas Hilliard”. In: HILLIARD, Nicholas. Idem, pág. 95.
[21]JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Idem, págs. 42-44.
[22]“O treçado mostra o bom de ambos estes modos, e pouco do mau; e por isto é o melhor, porque mostra parte da fronte, e parte do perfil; e ambos, como digo, fazem uma igual desigualdade mui conforme e escolhida”. In: HOLANDA, Francisco de. Idem, pág. 23.


(texto apresentado e publicado nos anos do IV Encontro de História da Arte da UNICAMP em dezembro de 2008)

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