Dorminhocos
Pierre Verger
[21 de janeiro de 2018]
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Eu me recordo das minhas viagens com o auxílio das minhas fotos, e quando olho para elas, graças a elas, ocorre uma espécie de ressurreição das minhas lembranças, semelhantes às que surgem vez por outra no decorrer do dia, de maneira muito aguda e precisa, exatamente como se tivesse acabado de vivê-las.
Pierre Verger, 1991
Pierre Verger é conhecido por suas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras praticadas na Bahia, pelo seu interesse pela botânica e pelas histórias referentes ao translado de diferentes povos baseados no continente africano rumo ao Brasil. Mais do que um pesquisador distante desses assuntos que envolviam a alteridade, Verger era também um praticante do candomblé e alguém que se entregava existencial e fisicamente aos lugares por onde passava.
Suas pesquisas, porém, não se iniciaram com o desejo de transformar suas experiências em palavras; elas despontam em sua juventude e através de uma linguagem em expansão na primeira metade do século XX: a fotografia. Nascido em 1902, Verger parte de sua Paris natal em 1932 e inicia um longo período de viagens ao redor do mundo. Fazer fotografia não é seu objetivo central, mas sim o elemento utilizado para resguardar um fragmento daquelas experiências que poderia levá-lo a outras memórias de um lugar – tal qual dito em sua citação acima. Pouco a pouco, fotografar se transforma em uma maneira de obter alguma renda no meio de seu anseio por conhecer tudo que parecia diferente do seu lugar de partida.
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As 144 fotografias presentes na exposição realizada na Caixa Cultural foram feitas nesse momento da vida de Pierre Verger. São todas imagens produzidas no período entre as décadas de 1930 e 1950, ou seja, da sua saída da França rumo ao mundo até os anos posteriores ao seu encontro divisor de águas com a cidade de Salvador, em 1946. As imagens têm uma constância formal: são todas fotografias de pessoas dormindo no espaço público em diferentes lugares do mundo. O título da exposição e desta publicação é o mesmo título com o qual Verger catalogou algumas dessas imagens em francês: “Dormeurs”, ou seja, “Dorminhocos”. Esta é a primeira vez que essas imagens são todas ampliadas e transformadas no núcleo de uma curadoria e de um livro.
Optamos por organizar as imagens de modo cronológico e, por consequência, pautadas nas diferentes regiões geográficas percorridas pelo fotógrafo. O Brasil foi fulcral para o fazer fotográfico de Verger – mais da metade das fotografias foi produzida na Bahia, Maranhão e Pernambuco, porém é importante perceber como seu percurso foi o de um artista-viajante capaz de produzir imagens em qualquer lugar que estivesse. Regiões como a da China, Argentina, Peru, Congo, Filipinas, México e Polinésia Francesa foram de grande aprendizado e o levaram a produzir imagens dos “Dorminhocos” que sugerem questões econômicas, raciais, sociais e urbanísticas diferentes daquelas observadas no Brasil.
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Trata-se quase em sua totalidade de homens – com exceção das três fotos em que o corpo feminino está presente e das imagens de um gato e um rinoceronte. Todas as fotografias são produzidas com o auxílio da luz solar e imediatamente incitam dúvidas ao espectador: são momentos de repouso nos intervalos do trabalho ou corpos que se entregam ao cansaço e não sustentam uma postura ativa? Seriam imagens que exemplificam a recusa ao tempo produtivo do trabalho e a entrega ao prazer da sombra nos territórios tropicais por onde Verger passou? Ou ainda, por outra perspectiva, não seria essa série também um espelho da precariedade, da pobreza e da ausência de moradia para certos estratos da população abatidos pela crescente industrialização do mundo? Que relações raciais podemos estabelecer a partir dessas fotografias? Por que no caso das fotografias produzidas no Brasil foram registrados quase que exclusivamente corpos negros?
As respostas variam de acordo com as imagens, mas o fato de que é possível fazer tantas perguntas é diretamente proporcional à sua potência. Os tons de preto e branco constantes na fotografia de Verger criam uma ambiência em que o trabalho é contemplado como uma atividade permeada de melancolia e distante de qualquer discurso edificante. Trabalhar cansa, e uma rotina instaurada por esse valor capitalista e moderno, segundo seu olhar, não parece fazer sentido.
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Em um momento histórico em que estamos cada vez mais conectados e trabalhamos muitas vezes sem perceber por vinte e quatro horas e sete dias na semana, a série “Dorminhocos” contribui com as discussões contemporâneas a respeito da superaceleração já naturalizada tanto no Brasil, quanto no mundo – sem falar das reformas trabalhistas em discussão que podem mudar os direitos em torno da noção de tempo de trabalho e aposentadoria.
Do mesmo modo que essas fotografias de Pierre Verger nos trazem diversas reflexões sociais, também parecem um convite a esse ato presente em todos os seres vivos: o descanso. Olhá-las em sequência gera uma ambiência onírica que parece nos dizer que perante o excesso, o sono e a recusa à verbalização seguem a ser uma postura instintiva e política. Entreguemo-nos ao seu olhar afiado e ao silêncio.
(texto curatorial da exposição "Dorminhocos", de Pierre Verger, realizada na Caixa Cultural Rio de Janeiro, entre 21 de janeiro e 18 de março)