Duvidar da destreza
Andréa Hygino
[03 de julho de 2023]
Se a instituição escola imprime sobre o corpo uma memória, isto se dá pelo poder da disciplina. São os métodos disciplinares os responsáveis por fixar em nosso comportamento, nossos gestos, um padrão preestabelecido. E para que se não pense que a disciplina é posta em prática com a mera finalidade de distanciar a anatomia humana de suas feições mais primitivas, animais, dando-lhe ares de educação e polidez, é preciso deixar claro seus objetivos: tornar os corpos úteis, funcionais, produtivos para certa função.[1]
Essa citação de Andréa Hygino foi retirada de sua dissertação de mestrado. Gosto dessas frases porque elas parecem resumir alguns dos elementos centrais de uma pesquisa que tem se desenvolvido de forma sólida em sua participação de exposições nos últimos dez anos. As palavras-chave que me chamam a atenção são “instituição”, “escola”, “corpo”, “disciplina” e “educação”.
A artista tem um dado biográfico de grande interesse: sua observação da figura do professor se deu desde muito jovem dentro de sua própria casa. Sua mãe, Angélica, é graduada em pedagogia e teve por anos, no bairro de Parque Anchieta, Zona Norte do Rio de Janeiro, uma escola em seu terraço. Por ali passaram não apenas crianças, mas também jovens e adultos. Angélica foi responsável tanto pela função de “explicadora” — termo usado com frequência na cidade do Rio para designar pessoas que dão aulas de reforço —, quanto pela alfabetização de vizinhos de diferentes faixas etárias.
Ao observarmos a trajetória educacional de Hygino, notamos sua passagem por importantes instituições públicas pioneiras na história da educação no Rio de Janeiro e no Brasil. Ex-aluna de ensino médio do Colégio Pedro II — instituição quase bicentenária e terceira escola de ensino básico mais antiga do país —, a artista se graduou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e fez seu mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), universidades com um papel essencial na história do ensino de artes visuais no país. Reflexo de seu ensino superior em artes visuais, a artista também possui larga atuação como professora da disciplina na universidade e em cursos voltados para pessoas interessadas especificamente no desenho.
Talvez uma boa forma de começar a olhar para os seus trabalhos e estabelecer conexões seja, justamente, por meio de um trabalho de 2016 no qual o desenhar aparece tanto como atividade, quanto como palavra. Utilizando folhas pautadas, a artista escreve de forma repetitiva a frase: “Devo desenhar com destreza”. Canhota desde criança, Hygino tenta “reeducar” suas mãos e cérebro utilizando a mão direita e se tornando, de maneira efêmera, uma pessoa destra. A memória dos cadernos de caligrafia é ecoada em um trabalho que traz em si um modus operandi comum em sua pesquisa: repetir até a exaustão, serializar imagens, disciplinar, mesmo que temporariamente, olhos, mãos e língua.
Essa experimentação formal a partir de um elemento, tal qual uma gramática, é algo que pode ser visto em uma de suas séries de caráter público, Cadeira universitária, de 2017, feita em parceria com a artista Luiza Coimbra. Calcadas na figura icônica da mesa escolar individual — aquela cujo design possui um apoio para braço que, ecoando o trabalho anterior, costuma ser feito majoritariamente para pessoas destras —, as artistas montam, remontam e desmontam sua estrutura por meio da serigrafia. Séries de imagens em que as cadeiras têm elementos destacados e apagados de seu corpo são geradas e sugerem outras formas de pensar o seu formato utilitário que convidam o público a um exercício de imaginação e a uma pergunta: seria essa ergonomia a mais indicada para corpos em aprendizagem? Sentar-se diretamente no chão, estar em pé ou mesmo deitar não poderiam também ser desenhos anatômicos para as trocas educacionais? A passividade que se espera do corpo discente — tão bem explorada, por exemplo, por Alan Parker em seu filme clássico Pink Floyd: the wall, de 1982 — não é endossada pelo desenho desse mobiliário e contraditória à sala de aula como espaço de transformação?
Andréa Hygino possivelmente responderia “sim” a essa última pergunta e ela o faz por meio de seus trabalhos. Uma das séries consideradas propulsoras de toda sua pesquisa é Prova de estado, de 2013. Nessa série a artista transforma em matriz de xilogravura as superfícies das carteiras escolares usadas pelos alunos de sua mãe — a sala de aula vira ateliê de artes visuais. Eis uma maneira sutil de se pensar a noção de subversão: sentados nas cadeiras com o intuito de aprender, esses corpos optaram por, perfurando tampos de madeira, escrever e deixar suas marcas. Trata-se de uma prática do escrever-desenhar, como Hygino nos ensina com as imagens resultantes desse processo xilográfico. Linhas finas que parecem rabiscos e linhas mais grossas que criam as margens de letras compõem um emaranhado que transforma essas matrizes em um arquivo da história de seus usos.
Há uma certa noção de ansiedade nesses trabalhos que remete a outra série da artista, Mordido, iniciada em 2019. Hygino coleta diferentes lápis encontrados em escolas e salas de aula que trazem marcas de dentição dos alunos. A inquietude estimulada pela sala de aula é descontada sobre essas ferramentas que possibilitam aos alunos criarem mundos; quanto mais força for aplicada sobre esses objetos, mais profundas serão as mordidas e marcas nesses lápis que se transfiguram em esculturas anatômicas. A cada lápis, um aluno, e, em um conjunto destes, a sugestão de um grupo heterogêneo de corpos, desejos e formas de responder às quatro paredes de uma sala de aula.
Voltando para as maneiras como a artista se utiliza das cadeiras, Hygino repensa a sua objectualidade em Saída de emergênciae Ensino superior, conversando com as noções de design, escultura e instalação. Saída de emergência tem origem na Camisa educação realizada pela artista (também em parceria com Luiza Coimbra) e recebedora do Prêmio Select de Arte e Educação em 2020. E se a superfície dura do encosto de metal de uma cadeira fosse convertida em uma escada que convida o corpo a escapar não apenas do objeto, mas também do espaço onde ele é colocado?Ensino superior traz, agora na madeira, uma superfície para escrever que, muito alta, fica inatingível. Quantos alunos concluem a chamada educação básica e conseguem a proeza de ingressar na universidade? Uma vez no ensino superior, até que ponto o capital social e privilégios de alguns dos estudantes não imprime, ironicamente, uma avassaladora inferioridade sobre outros?
Respondamos essa pergunta com uma frase incluída pela artista em um trabalho de 2021: “Escreveu, não leu, o pau comeu”. Esse curioso provérbio associa escrita e leitura à violência, lembrando-nos, metaforicamente, que não podemos dar bobeira em nenhum momento da vida — “é preciso estar atento e forte”, como cantava Gal Costa. Hygino cria um paralelo interessante entre o desenho das carteiras escolares e as formas como são modeladas as tábuas de carne. Sala de aula e açougue se avizinham em uma obra que traz o interesse da artista pela relação entre educação e violência — realçado por outro trabalho no qual vemos, em duas tábuas, as palavras “carne” e “verbo”, mas que também explicita como a escrita é algo basilar para sua pesquisa.
Esse interesse é percebido em um de seus trabalhos mais recentes, Tipos de comer, de 2022, em que o rosto da artista é fotografado com sua boca aberta. Sobre sua língua, lemos os nomes de diferentes alimentos escritos com letrinhas de macarrão. Arroz, carne, feijão, fubá, ovo e tomate são apenas alguns desses ingredientes que tanto faltam nas casas de milhões de brasileiros e nas milhares escolas públicas do país. Feitas durante um momento crítico da pandemia da Covid-19, essas fotografias conversavam com o fato de que, devido ao fechamento das escolas públicas, muitas crianças e adolescentes não tiveram acesso à alimentação gratuita oferecida, chegando a passar fome. A sopa de letras proposta por Hygino é um prato de difícil digestão e que se come cru.
Também parte do campo de sua pesquisa que olha para a escola e a educação de uma perspectiva trágica, a artista criou diferentes estojos que reúnem tampas de canetas esferográficas douradas. Observando rapidamente esses objetos brilhantes, seu design tem uma forma que remete a um estojo metálico de munição. Como milhares de professores são capazes de lidar diariamente tanto com os estojos escolares de seus alunos, quanto com os projéteis que circundam os espaços de suas escolas? Quais as consequências da flexibilização recente das leis brasileiras quanto ao porte de armas para a educação no Brasil?
Como se pode notar nesta leitura dos trabalhos de Andréa Hygino, a palavra escrita desempenha um papel importante em trabalhos que jogam com diferentes culturas visuais. Quando nosso olhar se detém sobre a forma como a artista intitula seus trabalhos, salta aos olhos os jogos de palavras pelos quais se interessa — desde Prova de estado, termo utilizado por gravuristas que, no contexto do seu trabalho, relaciona-se com a noção de Estado e de poder público, à série com tampas douradas de canetas intitulada Projeto educacional de ponta, as sequências de palavras são pinçadas de forma a ecoar a riqueza da cultura oral e da informalidade com que são proferidas na língua portuguesa e no Brasil. Isso me leva a pensar que, talvez, mais do que a escrita, um dos grandes interesses de Hygino seja a palavra em si — escrita, falada, jogada no mundo à espera de alguém que a imbua de múltiplos sentidos.
Recentemente, após uma residência em Johanesburgo, na África do Sul, a artista realizou uma série de trabalhos na qual a educação deixa de ter a escola e a sala de aula como protagonistas, e mergulha na oralidade e na memória coletiva. Exercício para a língua é um vídeo onde a artista tenta repetir — intermediada pelo inglês imposto pela colonização britânica — diferentes palavras em isiZulu, Tshivenda e Sesotho. Mais uma vez compondo uma imagem de sua boca, a linguagem corporal da artista se coloca entre o maravilhamento com o aprendizado de algo novo e o constrangimento do tão pouco que conhecia a respeito das muitas culturas que compõem não apenas a África do Sul, mas o continente africano como um todo.
A pesquisa de Andréa Hygino gira em torno do campo semântico trazido pelo título desta publicação: o corpo dissente. Sendo uma das poucas artistas de sua geração no Brasil interessadas explicitamente na relação entre educação e palavra, o seu olhar é, antes de tudo, o olhar de uma pessoa dissente – em um cenário artístico ainda muito pautado nas dinastias e nos herdeiros de apartamentos da Zona Sul carioca. Esta artista, pesquisadora e (orgulhosa) professora nascida em Parque Anchieta, convida-nos a duvidar das maneiras como a escola pensa o corpo de seu alunado, a ampliar a ideia de desenho e a identificar de maneira polissêmica os prazeres e as tragédias da educação básica pública.
Fica a curiosidade de quais dissentimentos surgem a partir do momento em que a artista alça voos para além do Rio de Janeiro e do Brasil. Uma coisa é certa: seus exercícios como artista visual colocarão em dúvida noções cristalizadas sobre o que pode ser a educação, seus espaços de prática e as hierarquias entre mestre e alunado. Duvidar da destreza é essencial.
[1] HYGINO, Andréa. Inscrições da memória. Dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017, p. 47.
(texto feito para o livro “O corpo dissente”, da série Subúrbio Singular, organizada por Ana Hortides e publicado pela Atelier Cultura em 2023)