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É tarde e chove, mas os ratos não tem medo do escuro


Randolpho Lamonier
[23 de junho de 2018]



Ao caminhar de noite pela Avenida Augusto de Lima, no centro de Beagá, possivelmente você verá um apartamento em frente do Edifício Maleta com a luz da sala acesa quase de forma ininterrupta. Essa é casa de alguém que, não satisfeito com aquilo que viveu durante os momentos de sol, tenta criar respostas noturnas à ansiedade de sua existência. Escreve, fotografa, pinta, costura; cria imagens que provisoriamente lhe dão alguma força, tira um cochilo e no dia seguinte o ciclo continua.

Seria essa descrição fidedigna à vida, pesquisa e processo criativo de Randolpho Lamonier? Sim e não; afirmação e negação caminham juntas no jogo que o artista nos sugere entre ficção e registro.




Não à toa, um dos mais extensos trabalhos dessa mostra é a série intitulada “Crônicas de retalhos”. Usando tapetes de chão e pedaços de tecido, o artista costura cenas, personagens e frases que indicam narrativas. Esses objetos de aparência bruta chamam a atenção por concentrar representações da violência e um fazer artesanal. Há certa delicadeza na maneira como o artista compõe as linhas que dão a forma de um revólver, mas a tragédia da representação de uma arma também se encontra sobreposta a esses detalhes. São retalhos de vidas, por si só, já retalhadas – o corpo assassinado, o corpo que volta e se vinga de seus traumas, o grito que é calado no espaço público.

A relação entre narrativa e vida banal aparece de maneira ainda mais explícita nas fotografias e vídeos aqui reunidos. Seus “Diários.mpeg” são fragmentos de vídeos realizados em diversos momentos dos últimos anos com VHS, câmeras fotográficas e webcam. Perdidos em um hard disk, foram encontrados recentemente e são distribuídos por diferentes televisores. Amigos, festas, momentos de ócio e de jogação são concentrados em uma área da exposição e nos lembram de um momento não muito distante da história da sociabilidade em que estar com amigos fazendo nada era mais importante do que os muitos aplicativos certeiros de nossos smartphones. Pequenas intimidades extravasam nesses retalhos do real e somos todos voyeurs.

Há uma tendência nos trabalhos aqui reunidos a girarem em torno de uma certa primeira pessoa do singular. A fusão entre a figura autobiográfica do artista e do espectador que frui as imagens e tem um processo de catarse é bem-vinda. “Siso” é um vídeo feito a partir de trechos que traz uma narrativa em torno da solidão dos grandes centros urbanos. A sequência de imagens vem orientada por legendas que afirmam sua autoreferencialidade biográfica de modo análogo às polaroids que trazem o corpo do artista embebido pela esbórnia proporcionada pelas muitas zonas de Beagá. Como diria o famoso desenho de Leonilson, “truth fiction” – uma palavra em cada uma de nossas pernas.

Mesmo com linguagens tão diferentes, parece ficar claro a partir das obras aqui reunidas que as relações entre crônicas e diários, entre as imagens dos outros e de si, além da importância da escrita são alguns elementos essenciais para a pesquisa de Randolpho. As palavras de seus tapetes, fotografias e vídeos, oferecem mais camadas de incerteza quanto à apreensão de suas imagens. Não se trata de uma escrita que orienta o nosso olhar, mas sim de uma ordenação de palavras que ativa nossas bagagens como leitores. Há muito coeficiente artístico por ser equacionado e sempre que voltarmos a essas frases, outros resultados teremos.



Caio Fernando Abreu, Dalton Trevisan e Plínio Marcos e seus “Dois perdidos numa noite suja” parecem ser alguns dos ecos de uma pesquisa voltada para personagens de nomes comuns sem sobrenome de gente rica e que por vezes sangram, choram e gozam – são feitos de carne e osso e transparecem isso de forma pendular entre um olhar cru e um certo romantismo suburbano. Esse elemento vem desde o título pensado para essa exposição – quem são os ratos que não tem medo do escuro? O artista e mais quem? Ou seria uma referência ao público que, de alguma maneira, por vezes passeará e por outros momentos chafurdará entre as imagens aqui espacializadas?

Sem respostas fixas, fica o desejo de estar ao lado de Randolpho Lamonier até o amanhecer e ver o que acontecerá quando a chuva cessar. Para onde irão os ratos?


(texto curatorial da exposição "É tarde e chove, mas os ratos não tem medo do escuro", de Randolpho Lamonier, realizada na Zipper Galeria, em São Paulo, entre 23 de junho e 29 de julho de 2018)
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