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Edifício Master


[27 de dezembro de 2021]

Os cinco primeiros minutos de “Edifício Master” são icônicos; a primeira imagem que vemos é a do monitor de uma câmera de vigilância que mostra uma equipe de cinema adentrando um prédio. Na sequência, esse mesmo grupo de pessoas entra em um elevador para, em um terceiro corte, a câmera nos mostrar o corredor vazio do edifício que dá título ao filme. Eis que surge uma voz grave – a do próprio diretor, Eduardo Coutiho – que narra: “Um edifício em Copacabana a uma esquina da praia. 276 apartamentos conjugados. Uns 500 moradores. 12 andares. 23 apartamentos por andar. Alugamos um apartamento no prédio por um mês. Com três equipes, filmamos a vida do prédio durante uma semana”.

Logo após essa fala que traz o método empregado para a realização do filme, somos presentados com duas entrevistas: a de Vera, senhora que vive no prédio desde criança e já havia mudado de apartamento vinte e oito vezes, e a de Sérgio, o síndico do prédio. Coutinho já traz aí uma relação de poder: aquela entre morador e síndico, entre aquelas pessoas que compõem a amálgama de vidas que compõem o Edifício Master e aquele que também é uma delas, mas se vê no lugar de administrador. Não é à toa que parte das falas dos dois diz respeito a um certo “retorno à ordem”; se o prédio antigamente reunia pessoas de caráter duvidoso, agora, sob o comando de Sérgio, o prédio era “graças a Deus, um prédio familiar”.

Em sua entrevista, Sérgio profere uma das dezenas de frases icônicas de “Edifício Master”: “Eu uso muito Piaget, quando não dá certo, eu parto pro Pinochet”. Entre sorrisos e uma necessidade de aproveitar seus quinze minutos de fama, o síndico – ou seja, o presidente do Edifício Master -, nos leva a refletir sobre as fronteiras entre educação e violência. Após dizer que adora usar ditados, Sérgio dispara: “A realidade da vida é sempre o funeral das ilusões”.

De onde viria essa citação? Busquei e busquei, mas não encontrei. “Edifício Master” nos ensina sobre isso: todos esses entrevistados – e todos nós enquanto indivíduos – também somos autores. A partir do encontro randômico de centenas de pessoas que moram em um mesmo prédio, o filme traz ao espectador uma sequência muito bem pensada de depoimentos que versam tanto sobre as impressões que esses moradores têm sobre o edifício, quanto sobre suas próprias biografias e o mundo lá fora.

Filmado em 2001 e lançado em 2002, o filme completa agora seus vinte anos e nos leva a infindáveis reflexões sobre a presença da tecnologia digital em nossas vidas. Se naquele momento, no começo do século XXI, os celulares apareciam timidamente em nossas rotinas e ter uma equipe de filmagem dentro de casa era algo que apelava ou intimidava as pessoas, o que seria dessa proposta em 2022? Em um presente em que a todo momento parte considerável da população brasileira está performando sua autoimagem e aspectos de suas vidas a partir do uso de smartphones, assistir ao “Edifício Master” nos leva a uma incontornável reflexão sobre as mudanças tecnológicas pelas quais passamos nessas duas décadas.

O que une essas pessoas para além do fato de que estão compartimentadas no mesmo prédio? Certamente, a classe social: esse grupo de pessoas pode ser enxergado como um recorte de uma classe média – não esqueçamos que o território é Copacabana, mas os apartamentos são conjugados – que habitava o Rio de Janeiro e o Brasil naqueles últimos anos do governo Fernando Henrique Cardoso, logo antes da ascensão de Lula ao poder. Nas entrelinhas dessas falas, há muitas reflexões sobre o desemprego e a pobreza no Brasil de outrora.

Por fim, outro elemento que une estas pessoas é a sua paixão pela oralidade. Sempre impressiona sua capacidade de contar histórias, lembrar de forma saudosista de algo, expor suas feridas, recalques e sucessos perante não apenas um grupo de estranhos que está ali filmando, mas, perante o enorme público que assistiu ao filme. Alguns desses moradores pintam, outros cantam; alguns estão no auge de sua juventude e repletos de dúvidas existenciais, ao passo que outros são bem idosos e parecem aguardar a sua boa hora.

Eduardo Coutinho nos propicia essa arte do encontro que são as entrevistas. Não basta ser um bom entrevistador; é essencial ser um entrevistado provocador. Ao vermos “Edifício Master”, percebemos que a soma entre pessoas nada ilustres, perguntas bem pensadas e uma edição inteligente nos leva a reflexões que estão para além dos limites do Brasil e do tempo.

Onde começa a “realidade da vida” e onde termina o “funeral das ilusões”? Como o cinema nos ensina, possivelmente entre as ações de gravar e editar uma sequência de imagens.


(texto feito para o livro “Histórias brasileiras: antologia”, publicado pelo Museu de Arte de São Paulo, em 2023)
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