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“Efêmera”: mais do que uma semana


co-autoria de Ana Cláudia Menezes
[17 de outubro de 2020]

 

O projeto Efêmera – Semana de Arte Contemporânea foi criado em 2018, no campus Engenho Novo II, do Colégio Pedro II – instituição federal que existe na cidade do Rio de Janeiro desde 1837, ou seja, desde o período imperial. Trata-se de uma das escolas públicas mais antigas do Brasil que se encontra, muitas vezes, diante da dualidade entre “tradição” e “experimentação”. É inegável que o colégio pode conter pitadas de conservadorismo e de vanguarda atuando na mesma sala de professores e dentro de uma mesma turma de estudantes, diariamente.

A realização do Efêmera foi possível por meio de um importante programa de bolsas de apoio a estudantes, gerenciado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa, Extensão e Cultura. Anualmente, tod_s _s professor_s da instituição são convidad_s a criar projetos de pesquisa em que podem contar com estudantes-bolsistas que irão colaborar de diversas maneiras no decorrer do segundo semestre.

O projeto surge também da trajetória d_s professor_s responsáveis: ela, nascida e criada em Vila Isabel, ele, nascido e criado em Jacarepaguá. Quando estávamos, assim como nossos alunos, na adolescência, não constatávamos a existência de espaços dedicados às artes visuais em nossos bairros. Manifestações comumente vistas como populares – tal qual o Carnaval, o samba, o funk, dentre outras – sempre permearam nossas vivências, mas para além de um ou outro graffiti aqui e ali, sempre se fez necessário cruzar a cidade e ir até o Centro ou a Zona Sul do Rio de Janeiro para se visitar exposições, arquivos, bibliotecas de arte e outras instituições que compunham, no começo dos anos 2000, nossas noções do que seria “arte contemporânea”.




Grande parte d_s estudantes do campus Engenho Novo II reside na Zona Norte, onde fica a unidade, e na Zona Oeste da cidade. É interessante e perverso perceber como, vinte anos após nossa passagem pelo Ensino Médio, noss_s alun_s seguem com a mesma percepção que tínhamos a respeito do caráter divisor da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com seus relatos é necessário efetuar longos deslocamentos em direção a outras regiões a fim de que tenham acesso a equipamentos culturais. Hoje em dia, porém, a percepção da violência pública compartilhada por el_s impede, muitas vezes, que tenham a mesma mobilidade que experimentávamos em nossa adolescência. Basta somar o medo à ilusão de amplo acesso oferecida pelos smartphones e, pronto, temos alun_s que sentem que explorar o mundo pela tela do celular é a única forma de fazê-lo.

O desejo de realizar a primeira edição da Efêmera em 2018 nasceu da soma entre nossas vivências e a escuta d_s estudantes do Colégio Pedro II. Ana Cláudia tem uma prática constante como artista visual, especialmente no campo da performance e em suas reverberações por outras mídias, ao passo que Raphael trabalha nos campos da curadoria e da escrita. A partir desses eixos, concluímos que seria interessante criar uma proposta em que _s alun_s fossem protagonistas, em vez de propormos, por exemplo, uma oficina em que se abordasse uma linguagem específica, onde teríamos o papel de “ensinar” algo. Pensamos em algo que propiciasse a_s estudantes uma atuação independente, guiada por seus próprios desejos e estratégias de criações coletivas. Optamos, assim, por uma ocupação a ser realizada nos diversos espaços que uma escola pode ter; uma intervenção de caráter efêmero, como grande parte da produção contemporânea em arte – daí nossa opção por esse nome e pela extensão temporal breve: uma semana.

Da nossa parte, apenas um pedido foi feito: que a participação de artistas se desse tanto por chamada aberta, quanto por convites feitos pel_s estudantes. Em certa medida – mesmo que nunca tenhamos usado o termo de forma explícita – o projeto é um laboratório de curadoria que se constitui como lugar de pesquisa e experimentação, onde _s alun_s podem escrever sobre os trabalhos apresentados, definir a programação de acordo com a circulação nos espaços da escola, ampliar a visão crítica a respeito das obras e suas interlocuções com questões atuais, bem como  vivenciar algumas das etapas da produção de uma exposição de arte, entre as quais: o contato com artistas, a montagem, a conservação e a manutenção durante a exibição, além dos registros e da desmontagem.



A primeira edição contou com a colaboração de quatro alunas: Ana Carolina Dutra, Jennifer Christiny, Mariana Novaes e Vitória Morete. Elas foram responsáveis por pensar os termos do primeiro edital do evento, a necessidade ou não de algum tópico que pudesse nortear as inscrições de propostas, a comunicação com os artistas inscritos e a concepção de uma identidade visual. Os trabalhos foram iniciados no mês de junho e o evento aconteceu entre 26 e 30 de novembro de 2018.

As alunas julgaram ser importante que o evento possuísse um tema. Um dia, em uma de nossas reuniões semanais, desabafaram sobre o cansaço que sentiam em uma instituição escolar como o Colégio Pedro II, cujas aulas ocorrem de segunda a sábado. Dessa vivência surgiu o tema “Fuja enquanto há tempo”, norteador da primeira edição do evento e divulgado no edital por meio de um pequeno texto explicativo. Artistas eram convidados, então, a realizar trabalhos pré-existentes ou especialmente pensados para a Efêmera, proposições que pudessem abordar a ideia de uma “corrida contra o tempo”, percebida pelas alunas em suas rotinas junto a um iminente desejo de fuga.

Trabalhos de várias linguagens foram mostrados: videoarte, arte sonora, instalação, fotografia e performance. Chamou-nos a atenção, primeiramente, o perfil d_s artistas inscritos: abaixo dos trinta anos e, quase em sua totalidade, vinculad_s às graduações em Artes Visuais da UERJ e da UFRJ. Efêmera, portanto, acabou se configurando como um espaço de experimentação para uma geração de artistas em formação universitária, que enxergaram a perspectiva de atuar em um ambiente escolar como um exercício de nostalgia. Outro dado constante foi a forma como vários trabalhos foram adaptados para situações específicas do colégio. A performance de Nelson Almeida – artista negro que apagou o chão da entrada do campus com borrachas escolares – causou muito impacto nos servidores da instituição e rendeu dias de discussões. De outra forma, a videoinstalação de Gabriel Fampa, com a contagem regressiva do recreio projetada em tamanho grande, na entrada da escola, gerou dias de coros de alunos contando aqueles números.




A segunda edição, realizada em 2019, contou um grupo maior e mais diverso de bolsistas de diferentes anos do Ensino Médio, dos cursos técnico e regular, alunas e alunos: Beatriz Peixoto, Maria Eduarda Piva, Lucas Gabriel, Gabriella Santos e Glauber Martins (que atuou pontualmente na semana do evento). Uma mudança proposta por el_s nos pareceu importante: foi tomada a decisão de pensar o evento sem um norteador prévio para que, somente a partir do debate a respeito dos trabalhos inscritos, se pudesse refletir sobre a necessidade de um tema.

A divulgação do edital, assim como no ano anterior, aconteceu por meio das redes sociais e através de um cartaz, elaborado pel_s alun_s, afixado no Instituto de Artes da UERJ, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e em outros espaços. As inscrições deveriam ser feitas por e-mail, com o envio de uma proposta e portfólio do artista. Simultaneamente, _s alun_s foram incentivad_s a buscar via internet e a partir de suas visitas a exposições, outros nomes que poderiam compor o projeto por meio de convite. Foi interessante notar como uma das alunas, Beatriz Peixoto, se interessou não apenas por uma série de artistas negros que ela havia visto em exposições no Museu de Arte do Rio – Maxwell Alexandre, Mulambö e Rosana Paulino –, como também por Hildebranda, artista que ela havia conhecido via internet. Todos eles foram contactados e pudemos contar com a participação de Hildebranda e Mulambö, além de Tiago Sant’Ana também ser convidado.

Ao final do período de inscrições, a equipe de alun_s se dedica à leitura dos portfólios e realiza um debate, tendo em vista o espaço do colégio, a duração de uma semana do evento, a disponibilidade d_s artistas e, essencialmente, suas preferências. Acreditamos que Efêmera se configura como um espaço de reflexões críticas sobre arte contemporânea – algo que nos parece tão rarefeito no cenário recente da arte no país. Mesmo tão jovens, _s alun_s possuem suas referências e capacidades de argumentação quanto a certas presenças e ausências na mostra – e este é um dos momentos mais ricos dessa experiência.



Dezessete artistas participaram desta edição do evento, que durou um dia a mais do que a edição anterior e se firmou na programação da escola no mês de novembro. A cada turno do recreio possuíamos uma diferente ação artística – desde uma intervenção elaborada com centenas de incensos, proposta por Julia Arbex para se pensar as queimadas na Amazônia (que causou reações impressionantes) a trabalhos de pintura no campo ampliado (Hugo Houayek) e de performance (Darks Miranda). Recebemos a visita de alun_s do Colégio Estadual Matemático Joaquim Gomes de Sousa Intercultural Brasil-China, de Niterói, junto com a professora-artista Mariana Rocha, cujo trabalho apresentado foi elaborado em parceria com os próprios. Contamos ainda com a realização de um mural de Mulambö, intervenção que passou a figurar permanentemente no espaço do colégio.

Aprendemos, enquanto professores, que o ato de acompanhar uma exposição organizada pel_s alun_s do nosso campus se configura como uma oportunidade única de enxergar a “arte contemporânea” de forma mais factível. Não são necessários os cubos brancos, tampouco a noção asséptica de arte, mas sim o desejo de compartilhar ações, imagens e efemeridades com o público.

Efêmera se transformou, sem que percebêssemos, em um espaço de criação, fruição e reflexão a respeito da produção de arte hoje, configurando-se como um gesto político ao optarmos por realizá-la em um contexto visto como não-hegemônico na elitista geopolítica carioca. Efêmera é mais do que uma semana – e isto é apenas o começo.


(texto escrito para a publicação “Alfuentes”, publicação educativa da 3ª edição de Frestas - Trienal de Artes: o rio é uma serpente, realizada no SESC Sorocaba e com curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza. para acessar a publicação em sua íntegra, clique aqui)
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