Em se plantando, tudo dá
Sonia Andrade
[12 de março de 2012]
Entre 27 de setembro e 27 de novembro foi realizada no Centro de Arte Hélio Oiticica a exposição intitulada “Retrospectiva – 1974-1993”, de Sonia Andrade e com curadoria de Marisa Flórido. O evento se fez importante por se configurar como um panorama da produção da artista e mostrar ao público que sua produção não se restringe ao campo da videoarte ou da videoinstalação, mídias pelas quais é geralmente referida.
Logo no primeiro andar da instituição, após vermos alguns de seus desenhos, havia uma sala com televisões onde suas primeiras experiências em séries de vídeos eram projetadas. Uma destas chamou particularmente minha atenção. Na série composta por oito vídeos produzidos entre 1974 e 1977 era possível encontrar em sete deles explorações da autoimagem da artista e, mais do que de seu rosto, experiências que registravam seu corpo. Prender a estrutura física, modificar a sua aparência através da utilização de objetos, além de explorar a utilização do som e de sua própria voz, surgiam como tópicos desta série de imagens em movimento.
Sentada perante uma mesa, o tronco da artista podia ser observado no segundo vídeo desta série. À sua frente e mais próximo do espectador, quase como se estivesse a vazar para o lado externo da projeção, uma panela, dois pratos, uma garrafa e uma xícara. Ao fundo, uma televisão exatamente na altura de sua cabeça. Atrás desta, a paisagem do Rio de Janeiro; trata-se, ao que tudo indica, do espaço interno de um apartamento e de uma paisagem para o saudado aspecto de cartão postal do horizonte da Zona Sul carioca.
Sonia Andrade se serve de uma série de alimentos de modo gradual. Com uma concha inicia por colocar feijão em seu prato e misturá-lo com pão. Enquanto observamos este banquete protagonizado por uma mulher, temos a recodificação de uma construção histórica dos papéis da mulher, ou seja, em vez de se colocar a cozinhar para um homem, para o “sexo oposto”, podemos concluir que a artista, cozinhou e serve a si mesma, central e solitária à composição da imagem. Aos poucos, com o auxílio do som e da observação da TV que é tão protagonista quanto seu corpo, notamos não se tratar de um programa qualquer exibido dentro desta projeção, mas sim de “Tarzan”, seriado norte-americano da década de 1960.
Da civilização para a barbárie; dos modos permeados por uma etiqueta da alimentação para uma maneira que rejeita qualquer mediação cultural quanto às normas de comportamento sobre a mesa. Tão logo percebemos se tratar deste seriado sobre o homem que vive entre os animais no meio de uma floresta, Sonia Andrade rejeita os talheres e se põe a comer utilizando suas mãos. Feijão, pão, café e guaraná são misturados e se tornam um alimento só. A cabeça da artista está muito próxima à tela que passa “Tarzan” e além dessa espécie de colagem de imagens, há uma sobreposição de comportamento. Da segurança da superfície de um prato, a comida é transferida para o seu rosto e membros. Deste, ela é lançada sobre a lente da câmera, impossibilitando a própria fruição do espectador e elevando estes atos a tal nível de selvageria que a visão deve ser bloqueada, assim como um animal preso em um container.
Se Andy Warhol glorifica e diminui a velocidade do banal ato da alimentação em “Eat” (1964) e faz um monumento a um alimento símbolo da cultura norte-americana em “Andy Warhol come um hambúrguer” (1982), dando a si mesmo os ditos quinze minutos de fama, Sonia Andrade parece refletir sobre a relação entre comida e identidade cultural no Brasil. Inevitável perceber a ironia da artista ao se observar a paisagem tropical carioca de pano de fundo. A pergunta que fica é: como nós, homens tropicais, brasileiros, habitantes desse território comumente observado como a terra das bananas e dos macacos, somos observados por um olhar estrangeiro e, naquele momento (anos 70), mediado pela televisão? O que constitui a nossa cultura enquanto “carioca” e, mais do que isso, enquanto “brasileira”? Como definir alimentos típicos de uma terra onde “em se plantando, tudo dá”?
Há uma inversão da alteridade cultural proporcionada pelo livro que dá origem ao personagem Tarzan. A artista equipara de modo ácido, portanto, o jovem criado por animais das florestas africanas aos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, essa “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”.
(texto originalmente publicado na Revista Contemporartes, em 13 de março de 2012).