Encontro vendado
Marcos Chaves
[21 de junho de 2018]
A trajetória de Marcos Chaves chama a atenção devido à maneira como o artista experimenta linguagens tão diferentes como a produção de objetos e a fotografia, a instalação e o vídeo. De toda maneira, é inegável afirmarmos que na última década foi na fotografia que ele desenvolveu de modo sistemático sua pesquisa e onde explorou de forma inusitada o cotidiano. Seu olhar é afiado para a documentação de pequenos momentos que trazem algo da irrealidade cotidiana de uma cidade complexa como o Rio de Janeiro - desde os buracos das ruas e as maneiras de sinalizá-los até os enquadramentos do Pão de Açúcar como tranquilo cartão postal para o caos. A qualquer momento, um inventário da banalidade pode se transformar em uma série.
Comum à sua prática fotográfica e a algumas instalações é a relação entre as imagens e a escrita; Chaves tem especial interesse em jogar com palavras. Com a ajuda de um espelho, a palavra “tuo” pode se transformar em “out”, assim como a frase “Come into the hole”, com o auxílio da letra W, se torna “Come into the whole”. É essa busca pela dubiedade dos sentidos que o leva ao que talvez seja o seu trabalho mais conhecido no Brasil - a frase “Eu só vendo a vista” inserida sobre um cartão postal fotográfico do Pão de Açúcar.
Desenvolvido em 1996, esse trabalho foi transformado em um site specific, no ano passado, para a Varanda do Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Sabendo que o museu se posiciona na Baía de Guanabara e que parte das janelas está de frente para a paisagem mais icônica do Rio de Janeiro, o artista optou por cobri-las com um adesivo preto. Em cada janela, uma letra diferente foi recortada e o público apenas conseguia ver a paisagem pelas fendas. Chaves literalmente “vendou a paisagem” num ato único - do mesmo modo que sua paisagem estava à venda à vista e sem direito às prestações. A ocupação do espaço causou admiração e espanto ao público; de maneira sutil, os jogos de poder envolvidos no mostrar, esconder e comercializar paisagens e ideias hegemônicas sobre a cidade estão plantados nas diferentes formas tomadas por essa série.
O artista fotografou separadamente cada letra dessa instalação e apresenta na Galeria Nara Roesler três versões diferentes da experimentação de seu resultado. Podemos afirmar que se trata de um projeto que se apropria fotograficamente de outra obra sua; nesse sentido, por quê não prestar uma homenagem ao mais célebre dos apropriadores da história da arte, Marcel Duchamp? É proposto, portanto, o encontro entre sua instalação com uma das mais célebres obras das artes visuais no século XX: o “Étant donnés”, instalação do francês apenas apresentada ao público em 1969.
Esta obra de Duchamp convida o olhar do público através de dois buracos em uma porta de madeira. Nesse ato de voyeurismo, vemos um corpo feminino nu com uma paisagem ao fundo. Assim como outras obras suas, se trata de um enigma visual em que as imagens por vezes mais desejam confundir e incentivar o ato cerebral do espectador do que entregar qualquer tipo de alegoria fácil. Traduzida por Augusto de Campos por “Sendo dados”, a obra de Duchamp se entrega ao público devido à luz. De modo semelhante, é também pelas frestas que a vista do Rio de Janeiro era percebida na instalação de Chaves.
Em um dos trabalhos mostrados, as letras de “Eu só vendo a vista” são impressas em escala pequena e compõem por si só o “Étant donnés” de Marcel Duchamp. Nesse jogo da escrita de Marcos Chaves, a coincidência de partes das frases contou a seu favor. Já quando impressas em tamanho grande, cada letra é espacializada na primeira sala da exposição. Dispostas sem nenhuma ordenação a priori, sua composição de palavras ou frases ficará a cargo da equipe da galeria. Quais as maneiras de organizá-las? Alfabeticamente? Compondo pedaços de palavras em português, inglês ou em outras línguas? Ou seria a aleatoriedade delas a melhor solução nessa equação entre escrita, fotografia e a arquitetura? Só o tempo responderá.
Por fim, um terceiro inédito trabalho feito con um estereoscópio circular de slides aproxima de outra maneira sua produção a Marcel Duchamp. Ao se utilizar de uma tecnologia analógica e contemporânea ao “Étant donnés”, o público também se vê obrigado a acionar ativamente o seu corpo para compor e ler a partir das palavras do artista carioca. A frase “só vendo”, feita a partir dos sete espaços oferecidos para fotografias pelo objeto, presta novamente homenagem à visão, esse sentido tão essencial à pesquisa de Chaves. Só vendo (e lendo) para crer na força das imagens e das palavras. Não se faz necessário incluir mais “a vista” nessa sentença; ela já está ali nos espaços de luz dentro das letras. Da mesma maneira, a memória de Duchamp também ecoa nesses trabalhos.
Ficamos com a certeza de que, em um futuro próximo, outros trabalhos e frases de Marcos Chaves certamente nos levarão para outros blind dates - ou melhor, “encontros vendados” - com a história da arte e da escrita.
(texto escrito com Pablo León de La Barra para a exposição “Sendo dado”, de Marcos Chaves, na Galeria Nara Roesler, no Rio de Janeiro, entre os dias 21 de junho e 12 de setembro de 2018)