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Engenharia alquímica

Anton Steenbock
[30 de setembro de 2014]



Sentado na biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, me ponho a pesquisar livros sobre a relação entre máquinas e imagem. Tendo como ponto de partida a exposição “Desnível”, de Anton Steenbock, começo a tentar encontrar referências no campo da história e crítica da arte, que poderiam dialogar com os objetos que ele mostrou em Curitiba. Dentre os poucos livros que pude encontrar, um chamou a atenção. Intitulado “Maquinas – una historia ilustrada” e da autoria de um sueco, Sigvard Strandh, ele possuía um capítulo inicial cujo título me parece propício: “Não existe máquina sem instrumentos”.[1]

O autor argumenta que, desde a pré-história, a ideia de máquina sempre esteve associada à instrumentalização da vida humana. Um martelo, por exemplo, pode ser interpretado como uma extensão das próprias mãos; ele está ali preso a esta parte do corpo para conseguir fazer algo que o humano por si só é incapaz. Nesse sentido, qualquer artefato pré-histórico também pode ser entendido como uma máquina; não na concepção comumente utilizada da palavra, industrial e com uma visada de consumo ou fabricação de massa, mas na sua relação instrumental com a existência.

Comecei a pensar sobre estas duas palavras e suas relações com a pesquisa artística de Anton Steenbock. Enquanto as denotações de “instrumento” sempre frisam seu caráter mais simplório[2], os significados de “máquina” apontam para certa complexidade estrutural[3]. Um dado une semanticamente as duas palavras: ambas existem para ter alguma função no mundo; nenhum engenheiro projeta mecanismos inúteis, sem uma vontade de relevância para um número significativo de pessoas.



Através destas chaves de leitura, as proposições de Steenbock ganham camadas interessantes. A maior parte dos objetos encontrados nesta exposição foram produzidos a partir da articulação de apropriações. Em um deles víamos um martelo preso a um vidro através de uma linha. Seu próprio peso o mantinha em pé, ao passo que a linha ganhava a importância de uma corda que sustenta um alpinista em uma escalada. Poderíamos enxergar certa precariedade aqui; não num sentido da arte povera, ou seja, de um uso de objetos que às vezes eram mesmo resquícios da indústria ou da natureza. A precariedade formal desse trabalho me parece falar mais a respeito de uma economia de dados visuais. Nesse sentido, poderíamos dizer que este trabalho diz muito sobre a potência de “instrumento” na poética do artista.

Por outro lado, fazendo ecoar a célebre frase de Winckelmann sobre a arte grega, a “nobre simplicidade” desses trabalhos é dotada de uma “grandeza serena”.[4] Esses mecanismos que mais parecem improvisos e que podem causar uma reação rápida do nível do “como não pensei nisso antes?” tem na sua superfície, sobreposta ao seu lado instrumental, a potência também de máquina. Engenho é apenas um dos vários elementos necessários para a projeção dessas imagens. Ao lado dela caminha a paciência, a obstinação e, claro, aquilo que é próprio do método científico, os experimentos. Isso se dá não apenas no vidro que está sempre à mercê do martelo, mas se mantém intacto devido ao poder da matemática e da física, mas também em outras proposições que parecem dialogar com a cultura brasileira.

Um pano de mesa se movimenta pelo espaço expositivo em “Cesta básica”. Longe da imobilidade de uma mesa de jantar, um ventilador faz com que ele fique em movimento contínuo, tal qual uma dança. Para que não se perca espaço acima, o tecido é preso a uma série de pequenas garrafas de cachaça coladas ao chão. Com isso, o ambiente é tomado pelo som do choque do vidro, assim como as mesas de bar e seus copos de aguardente. A visão turva e o andar que fica curvilíneo após a quinta dose são rememorados através do mover do tecido no ar.



Um cigarro, preso sobre uma estrutura de madeira, tem uma linha que perpassa seu corpo. Na outra ponta dela, uma ficha como aquelas necessárias para se iniciar um jogo de fliperama. Ironicamente, o estado do qual Curitiba é a capital é o responsável pelo convite a um ato incendiário – “Paraná” é a marca de uma caixa de fósforos que está repousada sobre a madeira. O queimar sem tragar é de responsabilidade do espectador: aquele que tiver a coragem de atravessar a barreira da observação (esse dilema institucional tão comum às exposições de arte contemporânea) acionará o tempo, responsável por fazer com que essa estrutura se destrua aos olhos do espectador de modo lento. Quando “cair a ficha” de que é possível agir sobre a obra, o mecanismo será acionado e, literalmente, ela cairá dentro de um balde de metal que está abaixo. O final de um processo dará início a outro ou, pensando de um modo não linear, uma coisa é intrínseca a outra. O público, portanto, é convidado a jogar, sabe que algo está por acontecer e que este acontecimento pode estar destinado a se encerrar, por exemplo, no próprio vernissage da exposição. Esse trabalho de duração programada questiona a expectativa da permanência das máquinas e dos instrumentos. Tendo em mente mais do que a inutilidade desse objeto, mas seu breve fim, nos perguntamos: até que ponto as classificações do campo da história da engenharia são válidas para o entendimento do trabalho de Anton Steenbock?

Na ausência da ânsia pelo funcional, salta aos olhos na exposição o caráter de “finalidade sem fim”, tal qual dita por Kant sobre a arte. Para se retirar a função é necessário, primeiramente, se estranhar o costumeiro, ou seja, criar uma relação de alteridade com a obviedade dos objetos que nos rodeiam e atribuir a eles outras camadas narrativas. Assim conseguimos ainda lembrar que um martelo tem o poder de quebrar, mas o inserimos numa ficção que tem o peso como protagonista.



O desenho, associado desde o Renascimento à ideia de projeto, seja ele artístico, seja de engenharia, como no caso de Leonardo da Vinci, é central, literalmente, a este espaço expositivo. No lugar, porém, de mentalizar o durável e passível de fabricação interessada, enxergamos também o espaço para a fabulação. A efemeridade é tópico comum a estas imagens. Em uma delas, por exemplo, quatro velas sobre garrafas, ao serem queimadas, farão com que um papel preso ao centro entre em contato com uma quinta vela e também seja destruído. Um porco de açúcar é sustentado no ar através de linhas e roldanas. Seu peso é diretamente proporcional a uma pia cheia d’água; uma vez que se deposita uma moeda dentro dele, uma linha que o prende a uma rolha que tampa o ralo se solta lentamente. Quanto maior o seu peso, maior a chance da rolha se soltar e de água jorrar sobre ele. Logo abaixo, uma tigela aguarda esse momento em que açúcar e moedas estarão misturados sobre a água.

Percebe-se através destes desenhos que o “desnível” do título da exposição não se faz apenas no sentido material, ou seja, devido à estrutura irregular de roldanas que permite que essa série de projetos se mantenha em pé quando presa a dois projetores de vídeo. Estar fora do nível aqui parece querer dizer estar em um descompasso proposital, provocativo, com um mundo que sempre nos pressiona por fazer com que o nosso entorno seja dotado de mais e mais sentido. Pode-se tentar nivelar o mundo através destes dois vídeos, um realizado em Berlim, em frente a Bauhaus Archiv, e outro na Pedra Bonita, na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas o fracasso será iminente. Seja no Brasil, seja na Alemanha, na companhia do passado modernista ou da ação da natureza através da chuva, é preciso se desligar e duvidar da vontade de utilidade e da própria busca incessante por um sentido para a vida para que possamos seguir acordados.

Ao ver em “Desnível” uma reflexão sobre a própria vida, talvez fosse justo pensar nos trabalhos expostos a partir de outra figura, a do alquimista.[5] Este, trancado em seu gabinete de estudos, se encontra entre a ciência e a magia, tentando transformar metais pobres em ouro. No mesmo sentido, Anton Steenbock, através daquilo que é rotineiro e barato é capaz de criar imagens artísticas que falam ao espectador, esbarram na mágica e são dotadas de certa transcendência inerente ao fenômeno artístico. Com isso, outra trilha interpretativa é aberta para a sua pesquisa artística – a racionalidade maquínica se torna lugar comum e um caráter mais oculto e dotado de mistério dá novo fôlego às suas proposições.



[1] STRANDH, Sigvard. Maquinas – una historia ilustrada. Madri: H. Blume Ediciones, 1982, pág. 7.
[2] “Objeto simples ou constituído por várias peças, que serve para executar um trabalho, fazer uma medição ou observação etc.” in HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[3] “Engenho destinado a transformar uma forma de energia em outra e/ou utilizar essa transformação para produzir determinado efeito” in HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[4] “... o caráter geral, que antes de tudo distingue as obras gregas, é uma nobre simplicidade e uma grande serena tanto na atitude como na expressão. Assim, como as profundezas do mar permanecem sempre calmas, por mais furiosa que esteja a superfície, da mesma forma a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo nas maiores paixões, uma alma magnânima e ponderada. Essa alma se revela na fisionomia de Laocoonte, e não somente na face, em meio ao mais intenso sofrimento” in MATTOS, Claudia Valladão de. “Winckelmann, a bela alegoria e a superação do paragone nas artes” in Matraga. Rio de Janeiro: UERJ, v. 18, nº 29, p. 78.
[5] Chamei a atenção sobre esta relação dentro da produção de Anton Steenbock em um texto relativo à sua exposição “Gatilhos”, na Galeria IBEU, no Rio de Janeiro e publicado no Jornal do Commercio, também do Rio de Janeiro, em abril de 2012. Acesso: http://gabinetedejeronimo.blogspot.com.br/2012/04/alquimia.html


(texto escrito originalmente para o catálogo do projeto Sesi Arte Contemporânea 2012, relativo à exposição "Desnível", de Anton Steenbock, realizada entre os dias 21 de setembro e 18 de novembro de 2012)
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