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Entre aqui e lá: pontos de fuga


Ai Weiwei, Paul Gauguin e Francisco de Holanda
[14 de setembro de 2015]



Poderia ser mais uma imagem da internet. Na verdade, não poderia; ela é. Em uma fotografia a cores vemos céu, grama, árvores, um monumento e o corpo humano. Quase ao centro da composição, a Torre Eiffel ultrapassa as margens da imagem. À sua frente, com uma manga de camisa vermelha, alguém aponta o dedo do meio para ela. O gesto agressivo apenas endossa o caráter pouco nobre dessa imagem. Qualquer um de nós poderia ter realizado esta fotografia, assim como ilustramos e alimentamos as linhas do tempo do Facebook com memórias descartáveis de nossas breves passagens.

Um dado, porém, chama a atenção: na borda inferior da fotografia consta um título em chinês e um ano. Trata-se de “Estudo de perspectiva – Torre Eiffel”, de autoria de Ai Weiwei (1957-). Como dito, sim, temos uma “imagem da internet”, visto que o artista a disseminou em seus diversos instrumentos virtuais – blog, twitter, website. A imagem data de 1997, mas esta série de fotografias possui um arco temporal que vai de 1995 até 2010. Seu título reafirma o que se apresenta quase como se fosse um tratado, ou seja, a perspectiva e, por consequência, a pretensão à mimese da linguagem fotográfica.

Erwin Panofsky, em seu texto “A perspectiva como forma simbólica” (1927), iniciará sua argumentação com uma citação ao artista alemão Albrecht Dürer: “Item perspectiva é uma palavra latina; significa olhar através”. Mais à frente, o historiador da arte define seu objeto de análise:

Falaremos em sentido pleno de uma intuição ‘perspectiva’ do espaço, ali e só ali onde, não apenas diversos objetos como casa ou móveis sejam representados ‘em escorço’, mas onde todo o quadro – citando a expressão de outro teórico do Renascimento – se tiver transformado, de certo modo, em uma ‘janela’, através da qual nos pareça estar vendo o espaço, isto é onde a superfície material pictórica ou em relevo, sobre a qual aparecem as formas das diversas figuras ou coisas desenhadas ou plasticamente fixadas, é negada como tal e transformada em um mero ‘plano figurativo’ sobre o qual e através do qual se projeta um espaço unitário que compreende todas as diversas coisas.[i]

Weiwei, portanto, “olha através” da Torre Eiffel e nos escancara uma janela, na melhor releitura da tradição clássica da pintura. Não podemos nos esquecer, por outro lado, como em outro momento de seu texto Panofsky lembra ao leitor, que mesmo nas fotografias as perspectivas são construídas e proporcionais ao olhar desejado dos seus autores. Nenhum olhar fotográfico é ingênuo e, no caso de Weiwei, o gesto pode ser obsceno, mas não é gratuito. Ao escolher um monumento chave da cultura francesa, a fatídica Torre Eiffel, projeto arquitetônico finalizado em 1889 e alvo de polêmicas sobre sua relevância e impacto visual desde sua origem, o artista chinês também problematiza o campo semântico da paisagem e as ideias de cartão postal e de imagem turística.



Nesse sentido, Roland Barthes possui um texto em que frisa justamente a aparente contradição da torre ser um monumento, mas, ao mesmo tempo, ser vazia de materialidade e funcionalidade. Trata-se de uma verticalidade com espaço vazado, uma espécie de grade que se alavanca aos céus e que faz que “do Velho Oeste à Austrália, não existe viagem à França que não seja feita, de algum modo, em nome da Torre”. Ao final de seu ensaio, após descrever o grande número de serviços proporcionados pela experiência de se visitar o monumento, de sua base ao topo, ele define:

Por proporcionar ao seu visitante toda uma polifonia de prazeres, de maravilhas tecnológicas a alta cozinha, incluindo o panorama, a Torre se une, por fim, à função essencial de todos os grandes locais da humanidade: autarquia; a Torre pode viver por conta própria: pode-se sonhar lá, comer lá, observar lá, entender lá, se maravilhar lá, comprar lá; como um transatlântico (outro objeto mítico que define a imaginação das crianças), pode-se sentir descolado do mundo e ainda dono de um mundo.[ii]

Ao contrapor seu corpo a um símbolo da modernidade francesa e do mundo ocidental, Weiwei transforma através da imagem o tão repetido “lá” de Barthes em “aqui”. A Torre Eiffel apenas existe na dimensão apreendida pelo homem e o ponto de fuga sugerido pela sua pesquisa artística é o do escárnio. Tendo em mente a origem do artista, a China, também poderíamos interpretar seu mecanismo artístico e mesmo a banalidade dessa imagem por uma chave irônica dos turistas sempre dotados de suas máquinas fotográficas, assim como comentados por Susan Sontag em seu célebre texto acerca da fotografia.[iii]

O artista, então, não pertence a Paris e fotografa para tomar uma imagem do lugar pisado; este pequeno roubo é transformado em medalha. Quando segue esta tradição turística, mas intercepta a verticalidade da Torre Eiffel com outro traço, o de seu próprio dedo, ele realiza um ato de desrespeito tal qual se atirar uma caneca sobre a Mona Lisa. Mais do que isso, a imagem é não apenas mostrada no ambiente virtual das redes sociais, mas também ampliada, levada a museus, participante de mostras e comercializada. O registro de diário é elevado ao estatuto de arte.



Ao ver as outras imagens integrantes da série “Estudos de perspectiva”, poderíamos dar prosseguimento a uma análise que contraporia o “Oriente”, como rótulo de onde advém Weiwei, a outros símbolos da cultura do “Ocidente”, este termo que também parece circunscrever, mas permanece vago. A Casa Branca (Washington, Estados Unidos) e a Igreja de São Marco (Veneza, Itália) são apenas alguns dos símbolos apontados pelo dedo do meio de Weiwei. Ao encontrarmos dentre seus alvos, no entanto, paisagens urbanas da China, como as fotografias na Praça da Paz Celestial, em Pequim, esta dualidade é merecedora de revisão. Não se trata, portanto, de um protesto visual contra um “mundo ocidental” dotado de romantismo para com a China, mas sim uma reflexão feita a partir de um momento supostamente globalizado da História em que os nomes próprios geográficos se unem pelo capital e por interesses políticos.

Esta mesma acidez perpassa alguns de seus outros trabalhos em que há uma reflexão direta sobre sua cultura. Vasos chineses antigos são o suporte material para uma série de objetos que parecem dialogar com o expressionismo abstrato norte-americano. Sobre um cubo branco, esta série de vasos é exposta e a tinta contemporânea deteriora e transforma o relato arqueológico. A fusão e problematização de linguagens e culturas que poderiam ser ainda tangenciadas a partir de visões “orientais” e/ou “ocidentais” também surge em “Urna da dinastia Han com logo de Coca-cola” (1994). Sobre a decoração pintada, resquício da ação do tempo, uma logomarca de grande projeção internacional. Trata-se não apenas de uma sobreposição da cultura norte-americana sobre a chinesa, mas talvez de uma amálgama entre as mesmas. Não se trata de apagar o que estava ali antes, mas sim de diluir, poluir e confundir as camadas culturais para o espectador.



Em um de seus trabalhos mais célebres, “Derrubando uma urna da dinastia Han”, de 1995, o próprio artista se apresenta frontalmente para a câmera, em um ambiente que remete ao muro de uma casa e realiza o ato descrito no título. Três fotografias ladeadas indicam a narrativa do óbvio: a ação da gravidade e o ato de se soltar um objeto. No chão, cacos de uma relíquia da cultura material chinesa, possivelmente com cerca de dois mil anos. No lugar do saudosismo nacionalista, uma ação sobre o passado proporcional ao modo como o governo chinês dita a vida de sua população atualmente. Controla-se a natalidade, censura-se a fala e limita-se a ação.

Essa metáfora do estilhaçamento pode ser aplicada para a própria biografia de Ai Weiwei. Grande nome do mercado contemporâneo da arte, a maior parte de sua produção artística sequer é mostrada na China devido à censura do governo. Com uma poética que explora relações de alteridade e que problematiza sua própria identidade como um homem contemporâneo na China, seu nome foi disseminado em considerável parte do circuito das megaexposições de arte contemporânea, como a Documenta de Kassel (2007), a Bienal de São Paulo (2010) e a Bienal de Veneza (1999).

Atualmente, após sofrer represálias e ter seu ateliê demolido em 2010 pelo mesmo governo que incentivou que o construísse em Xangai, o artista não pode sair de seu país. Seu escape, seu “ponto de fuga”, portanto, é uma produção de imagens que a todo o momento se refere à política chinesa, mas que deve ser mostrada fora de lá, geralmente em bem estruturados museus da Europa e, recentemente, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo.[iv] Seus primeiros trabalhos realizados durante o tempo em que viveu em Nova Iorque e mesmo a série “Estudos de perspectiva” possuem agora, então, outro peso e leitura, o alçando a uma espécie de artista um dia viajante, mas agora trancafiado na terra natal. Ai Weiwei, portanto, mais do que nunca pode ser visto como alguém capaz de realizar uma reflexão formal sobre o “local” e o distante, o primeiro plano e o fundo, o inglês e o mandarim, a apropriação e a tradição.

Como paralelo a esse artista contemporâneo, partindo da proposta da presente publicação em realizar cruzamentos entre diferentes contextos histórico-artísticos, se fez interessante pensar em outros dois exemplos de artistas. Ambos também podem ser vistos como “viajantes” e responsáveis por uma produção de imagens e discursos que se encontram em uma aparente dualidade entre o lugar do “aqui” e o de “lá”. Cada qual, assim como Weiwei, escolheu um ponto de fuga e lançou um olhar perspectivo sobre uma cultura que julgava superior, merecedora de atenção ou, simplesmente, exótica.



Voltando à origem de nossa primeira imagem, ou seja, a França, podemos rememorar o muito estudado caso de Paul Gauguin (1848-1903). Nascido em Paris, o pintor tem sua biografia pontuada por uma inicial divisão entre o mundo do trabalho e o contato inicial com a pintura e o as artistas do Impressionismo. Em 1887, porém, resolve abdicar da metrópole que era Paris e se isolar em terras tropicais. Vai ao Panamá e a Martinica e posteriormente se muda para a região da Bretanha, refúgio e espaço de pesquisa artística para muitos artistas do modernismo. A partir de 1891, Gauguin vive em uma espécie de fluxo entre o Taiti, Paris e, no final de sua vida, Atuana, nas Ilhas Marquesas.

Em carta em que comenta sua conturbada amizade com Vincent van Gogh, o artista diz: “É um romântico, enquanto que eu me inclino mais para os primitivos. Na coloração ele prefere o empastamento ao acaso, enquanto eu odeio a execução desordenada”.[v] Na sua autodescrição quanto a uma escola artística, Gauguin utiliza um termo próximo da produção das vanguardas europeias. Como Colin Rhodes explica em uma publicação justamente sobre a conjunção entre arte moderna e este conceito, “O primitivo era visto, no geral, sempre como mais instintivo, menos atrelado a uma convenção artística e a História e, de alguma forma, próximo a aspectos fundamentais da existência humana”.[vi]

Querer ser primitivo, portanto, se trata de um anseio por se descolar da chamada “vida moderna” proporcionada por cidades cada vez maiores, com tecnologias em atualização e com uma ideia de deslocamento que diminuía. Fugia-se do que então poderia ser considerado como “civilização” em uma perspectiva eurocêntrica e se desejava entrar em contato com a alteridade “selvagem”, ou seja, com povos que habitavam espaços distantes das capitais e que possuíam uma subsistência supostamente arcaica. Homem e natureza, nessa concepção, ainda eram dotados de uma relação de diálogo e não de domínio, tal qual enxergado, por exemplo, em uma cidade capaz de ostentar algo como a aqui já comentada Torre Eiffel.

Gauguin, por exemplo, quando se vê obrigado a sair do Taiti pela primeira vez e retornar a Paris, em 1893, por motivos financeiros e de doença, se despede:

Adeus, país acolhedor, terra valiosa, pátria da liberdade e da beleza. Os selvagens, esses ignorantes, ensinaram muito ao velho homem da cultura, sobre o reconhecimento e sobre a arte de ser feliz. Sou dois anos mais velho, mas regresso vinte anos mais jovem, mais selvagem do que quando cheguei, mas também mais sabedor.[vii]

Como se percebe, o artista se encontra em uma espécie de impasse entre a busca pelo processo de se tornar um “homem selvagem” e a sua própria formação de origem burguesa e francesa. Ao se observar os detalhes da citação anterior, percebe-se que ele se diz “mais sabedor” seguido de um “mas”, ou seja, se trata de uma concepção ainda do “primitivo” como oposição problemática à sapiência. Pode-se tirar Gauguin de Paris, mas dificilmente se apagam os traços culturais de sua formação. Para tal, basta observar alguns dos diversos quadros pintados no Taiti.

Em “Ia orana Maria” (1891), vemos à direita as figuras de Maria e o menino Jesus. Em uma imagem que irá remeter a tradição das representações da Virgem com o menino em ambientes campestres, tal qual, por exemplo, algumas célebres pinturas dos irmãos Bellini, na Itália, no século XV, Gauguin faz uma recodificação visual. Esta Maria taitiana tem um vestido vermelho com um estampado floral tal qual aparece em muitas de suas pinturas desse período. Não apenas isso, mas toda a ambiência é adaptada com uma finalidade edênica que deixa bem claro ao espectador a fartura do Taiti.

Não se trata apenas de um lugar em que bananas e outros frutos estão em primeiro plano, mas sim de onde é possível se pintar de modo que as cores se sobreponham ao ponto de deixar a perspectiva confusa. De todo modo, se há uma interessante pesquisa cromática aqui, é importante frisar que esta ainda se atrela a uma vontade de mimetizar os espaços. Por mais que Gauguin, em diversos momentos de sua produção plástica, crie formas que se assemelham ao que poderíamos chamar por “decorativo”, bebendo mesmo da produção de imagens feita no Taiti, não se trata de uma fragmentação do corpo e do espaço pictórico tal qual poderemos ver, por exemplo, em Cézanne. Plasticidade e narrativa seguem num espaço tênue entre o primitivo e o moderno, tradição e admiração do contato com aquilo que é julgado como o “outro”.

Quando suas pinturas chegam na França e a crítica se põe a analisa-las, ironicamente o faz dentro de termos instituídos dentro do ensino das belas-artes. Achille Delaroche, em texto inserido na coletânea de escritos do próprio Gauguin, “O antes e o depois” (1903), dita:

Gauguin é o pintor das naturezas primitivas: ele gosta disso e possui a simplicidade, o hieratismo sugestivo, a ingenuidade um pouco desajeitada e angulosa. Seus personagens participam da espontaneidade despretensiosa das floras virgens. Era lógico, no entanto, que ele exaltasse para nossa festa visual as riquezas dessas vegetações tropicais onde viceja, sob astros felizes, uma vida edênica e livre: traduzida aqui com uma prestigiosa magia de cores, sem entretanto qualquer ornamento inútil, nem redundância nem italianismo.[viii]





Curioso seria cotejar essas palavras junto, por exemplo, à descrição da arte grega feita por Winckelmann. Todo o campo semântico da escrita de Delaroche aponta para o anticlássico: primitivo, simplicidade, ingenuidade, desajeito, anguloso, despretensão, festa, riqueza, tropical, éden, magia, ornamento e, claro, cor. Esta se faz presente, mas, sem “ornamento inútil”, ou seja, a cor conseguiu, finalmente, ser dominada pelas mãos de um pintor. Essa fala já era presente no próprio comentário do artista sobre van Gogh e sua pintura “ao acaso”. O tópico será retomado por Delaroche no mesmo texto, logo após uma extensa descrição das paisagens encontradas nas pinturas de Gauguin:

Todas essas telas e as outras ainda, sobre as quais podem ser feitas observações semelhantes, denotam bastante, em Gauguin, a correlação íntima do tema e da forma. Mas sobretudo a harmonização sábia de cores ali é significativa e arremata o símbolo. Os tons se fundem ou se opõem em gradações que cantam como uma sinfonia de coros múltiplos e variados e desempenham seu papel realmente orquestral.Tratada assim, a cor, que é vibração, da mesma forma que a música, atinge o que há de mais geral e, portanto, de mais vago na natureza: a sua força interior. Era então lógico, no estado atual do sentimento estético, que ela invadisse pouco a pouco o lugar do desenho, cuja utilidade sugestiva passa doravante para segundo plano.[ix]

Se Gauguin tem no Taiti, ícone do “mundo primitivo” que desejava, seu (literal) ponto de fuga, no que diz respeito à sua perspectiva, ou seja, ao seu modo de “ver através”, seria possível relacioná-lo, ao menos segundo Delaroche, à pesquisa cromática. Com esse deslocamento, portanto, o artista pode alimentar a “chama da sua imaginação” pelo encontro com a cor local.[x]

Curiosamente, é junto ao que pode ser considerado o pólo oposto à cor, ou seja, o desenho, que podemos comentar nosso terceiro e último artista aqui elencado. Francisco de Holanda (1517-1584), português, integrante da corte de D. João III, foi enviado a Itália em 1538, retornando à Lisboa em 1540. Enquanto Gauguin buscava se afastar do ambiente “civilizado” de Paris, esse artista de Portugal, por sua vez, era atraído pelo caráter de erudição, conhecimento e classicismo que o imaginário da Itália o proporcionava. É sabido que a central razão de seu envio à Península Itálica era a fim de observar e realizar desenhos de fortificações para servirem como modelos futuros para o então ascendente Império Português. Em um trajeto longo que fez com que percorresse a França, a Espanha e diversas cidades italianas até Roma, Holanda travou contato com diversos humanistas, literatos e artistas.



Fruto direto dessa viagem é o “Álbum de desenhos das antigualhas” que, como seu próprio título aponta, se trata de um caderno em que, além de desenhar as esperadas arquiteturas militares, coletou retratos de homens célebres, além de panoramas de cidades e esboços de esculturas antigas que pode observar. Além disso, em 1548, consegue finalizar um conjunto de textos que diz respeito ao seu contato com a arte italiana. “Da pintura antiga” se divide em duas unidades. Na primeira delas, através de uma linguagem doutrinária, Holanda estipula quais seriam os preceitos da arte antiga, aquela que pode apreender depois de seu período como viajante e que era então desconhecida dos portugueses. Na segunda parte, Holanda escreve quatro diálogos que teria travado com célebres italianos. Dentre eles, a inserção de Michelangelo Buonarroti o coloca em uma discussão constante na historiografia da arte sobre até que ponto o português teria, efetivamente, tido contato com o famoso escultor.

Alguns aspectos de sua obra apontam para certa autoimagem de “atraso” artístico quando visto em comparação com a Itália. Ao final de “Da pintura antiga”, Holanda escreve uma parte intitulada “Tábua dos famosos pintores modernos a que eles chamam ‘águias’”. Michelangelo, Leonardo e Rafael, tal qual a concepção histórica de Giorgio Vasari, são os três grandes ilustrem que encabeçam essa lista. Todos os catorze primeiros nomes são italianos, estando na sequência dois espanhóis, Quentin Matsys como o de número dezoito e um português, Nuno Gonçalves, ao fim, como o número vinte e um. No que diz respeito às tábuas relativas aos escultores de mármore, os arquitetos, os entalhadores de cobre e os entalhadores de cornalina, o mesmo pode ser dito; quase todas suas origens são italianas.



A única interessante exceção diz respeito à lista que o autor faz de famosos iluminadores da Europa. No topo desta está o nome de seu pai, Antonio de Holanda, “por ser o primeiro que fez e achou em Portugal o fazer suave de preto e branco, muito melhor que em outra parte do mundo”[xi]. O pai de Francisco de Holanda trabalhava desde o reinado de D. Manuel e sempre na função de iluminador. Quando se analisa a própria produção plástica de seu filho, logo se percebe que a maior parte das obras realizadas também foram no campo da iluminura. Se por um lado Portugal possuía uma tradição extensa nessa área, podendo mesmo ser remetida às suas relações com Flandres, no que diz respeito a quadros pintados a óleo e em grande dimensão, e mesmo na estatuária em mármore, o mesmo não pode ser dito.

Com isso, parece justificável que nos supostos diálogos que se sucederam em Roma, Francisco de Holanda coloque na boca de Michelangelo muitos dos ditos negativos sobre o mercado de arte na Espanha e em Portugal. No terceiro dos diálogos, Michelangelo diz:

E vós, M. Francisco de Holanda, se pela arte da pintura esperais de valer em Espanha ou Portugal, daqui vos digo que viveis em esperança vã e falaz, e que por meu conselho devíeis de viver antes em França ou em Itália, onde os engenhos se conhecem e se muito estima a grã pintura. (...) Assim que nesta nossa terra até os que não estimam muito a pintura a pagam muito melhor que em Espanha e Portugal os que muito a festejam; por onde vos eu aconselho, como a filho, que vos não devíeis de partir dela, porque hei medo que, não o fazendo, vos arrependais.[xii]           

Há um claro desapontamento autobiográfico nessa fala atribuída a Michelangelo. Visto que o texto foi concluído em 1548, Holanda já estava há oito anos de volta ao seio da corte D. João III. Por um lado, pouca atuação teve no campo artístico nesse intervalo de tempo, ao passo que no que diz respeito a seus textos, nenhum deles foi publicado durante sua vida. Nos anos posteriores, com o falecimento do rei em 1557 e a posterior subida ao trono de D. Sebastião, culminando com o seu assassinato e domínio espanhol em 1578, a relevância e atividade de Holanda foi cada vez mais se apagando.

Para tal verificação é possível comparar a própria autodescrição de Holanda em dois diferentes momentos de sua tratadística. Em 1549, em “Do tirar pelo natural”, texto dedicado à retratística, ao ser perguntando se conhecia o “Da pintura”, de Alberti, Holanda argumenta:

E eu, como bárbaro Português, aventurei-me a subir por outros montes e degraus com o favor do meu natural, e de M. ANGELO, e da ANTIGUIDADE, os quais não me deixaram passar daqui. E porém eu me contento com não ver ir diante de mim algumas outras pegadas de Espanhol, Castelhano, nem Português e porventura nem doutros estrangeiros ou Latinos. E quero antes a minha própria e pouca facúndia do que na Grande Ciência da PINTURA sinto, que muito mais, sendo emprestado e alheio.[xiii]

A equiparação com a Itália, para Holanda, sempre será discrepante, ao passo que também sua superioridade perante outros artistas da Península Ibérica é sempre importante de ser lembrada. Já em 1571, em sua última obra literária, “Da ciência do desenho”, o tom da escrita é de um homem que fracassou, mas que ainda apela a D. Sebastião:

Tudo isto tenho escrito, Muito Alto e Cristianíssimo Rei e Senhor, para que Vossa Alteza saiba (já que lho outrem não diz, nem lho lembra) de que serve o entendimento daquela ciência e arte que em mim morre tão desestimada e esquecida em um Mato e Monte que está entre Sintra e Lisboa, somente de não haver em que eu possa servir Vossa Alteza nem este reino, principalmente depois que Nosso Senhor levou El-Rei Dom João vosso avô de gloriosa memória e o Infante Dom Luís e o sereníssimo príncipe Dom João vosso pai: que em grande parte com mais favor e mercê se serviram de mim, do que recebo agora.[xiv]

Sua ida a Itália não foi em vão e é merecedora de lembrança e associada ao estudo do desenho. Esta atividade muito cara a Michelangelo, ganha aqui uma dupla significância. Primeiramente, remonta à ausência de uma tradição quanto ao ensino artístico e à apreensão da anatomia humana em Portugal, algo que já se sistematizava na Itália e que culminaria, em 1563, com a criação da Accademia delle Arti del Disegno, em Florença. Em outro sentido, ecoa a importância atribuída pelo escultor italiano ao disegno, ou seja, o projeto interno da criação artística, antecessor do ato de se rabiscar sobre o papel. Em ambas as leituras, portanto, a busca de Francisco de Holanda por diálogos artísticos na Itália ganha contornos diversos do isolamento e pesquisa imaginativa de Gauguin no Taiti.



Para além da escrita, das mãos de Francisco de Holanda ficaram imagens de um artista que muito admirou e mesmo almejou a forma, por exemplo, de um Tiziano no que diz respeito à retratística, mas que era devedor das iluminuras portuguesas. Quando observamos o retrato em grupo da família real que ele insere em um pequeno quadro de uma “Anunciação de Nossa Senhora de Belém” (1552-54), é nítida sua maior proximidade com o Políptico de São Vicente (1460-80), de Nuno Gonçalves, também elogiado por suas palavras. O ponto de fuga de Francisco de Holanda, portanto, é a Itália e sua visão atravessada por Michelangelo e pelo desenho.

Através dessa breve aproximação entre esses três artistas, se consegue apreender um modo não-linear de problematização da tríade arte, pensamento e forma. Os três indivíduos aqui conjugados possuem pesquisas artísticas pautadas e devedoras de seus trajetos físicos. Com isso, creio que esses trânsitos se encontram não apenas como elementos documentados em suas biografias, mas sim como os próprios estopins para suas produções de imagens. Viajar não está por trás de suas poéticas, mas é justamente o que os faz dar sentido à existência através da arte – seja pela criação plástica, seja pela apreensão e interpretação de imagens de outras culturas.

O primitivo idealizado por Gauguin, a cultura clássica ansiada por Francisco de Holanda e a visada crítica e cosmopolita que Ai Weiwei imprime sobre a China e os monumentos daqueles países que o institucionalizaram são aproximáveis no que diz respeito à sua insatisfação com o estado das coisas. Para realizar este trajeto, cabe também ao historiador da arte postura semelhante ao do viajante; movimentamo-nos no tempo, acessamos mapas políticos já reconfigurados, aproximamos imagens através de nossos discursos e erguemos as paredes textuais de uma espécie curadoria histórico-artística.


[i] PANOFSKY, Erwin. La perspectiva como forma simbólica. Barcelona: Tusquets Editores, 2003, pág. 11. Tradução livre.
[ii] BARTHES, Roland. The Eiffel Tower and other mythologies. Londres: University of California Press, 1997, pág 18. Tradução livre.
[iii] “... a fotografia se desenvolve em conjunção com uma das atividades modernas mais características: o turismo. Pela primeira vez na História, grupos numerosos de gente abandonam seus entornos habituais por breves períodos. Parece decididamente anormal viajar por prazer sem levar uma câmera. As fotografias são a prova irrecusável de que se fez a excursão, se cumpriu o programa. As fotografias documentam sequências de consumo realizadas na ausência da família, dos amigos, dos vizinhos. Mas a dependência da câmera, enquanto aparato que dá realidade às experiências, não diminui quanto a gente viaja mais. O ato de fotografar satisfaz as mesmas necessidades para os cosmopolitas que acumulam troféus fotográficos de sua excursão de barco pelo Nilo ou seus catorze dias na China, tanto para os turistas de classe média que fazem instantâneos da Torre Eiffel ou das cataratas do Niágara” in SONTAG, Susan. Sobre la fotografia. Cidade do México: Alfaguara, 2006, págs. 23-24.
[iv] Refiro-me à exposição “Interlacing”, entre 07 de fevereiro e 14 de abril, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, com curadoria de Urs Stahel. A exposição teve passagem pelo Fotomuseum Winterthur, na Suíça e no Jeu de Paume, em Paris.
[v] WALTHER, Ingo F. Gauguin. Colônia: Taschen, 2007, pág.23.
[vi] RHODES, Colin. Primitivism and modern art. Londres: Thames & Hudson, 1994, pág. 9. Tradução livre.
[vii] WALTHER, Ingo F. Op. cit., pág.56.
[viii] GAUGUIN, Paul. O antes e o depois. Porto Alegre: L&PM Editores, 2011, pág. 31.
[ix] Ibidem, pág. 34.
[x] O próprio utiliza esse termo em carta anterior à sua viagem para as Ilhas Marquesas: “No Taiti a minha imaginação começou a perder a sua chama; além disso, o público habituou-se demasiado ao Taiti. As minhas pinturas da Bretanha converteram-se em água-de-rosas por causa dos quadros do Taiti. Taiti transformar-se-á em água-de-colônia, quando se virem os quadros das Marquesas” in WALTHER, Ingo F. Op. cit., pág. 88.
[xi] HOLANDA, Francisco de. Diálogos em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 90.
[xii] Ibidem, pág. 56.
[xiii] HOLANDA, Francisco de. Do tirar pelo natural. Edição do próprio autor, no prelo.
[xiv] HOLANDA, Francisco de. Da ciência do desenho. Lisboa: Livros Horizonte, 1985, pág. 45.


(texto publicado no livro "Conexões: ensaios em história da arte", organizado por Maria Berbara, Roberto Conduru e Vera Beatriz Siqueira e editado em 2014 pela Eduerj)
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