Entre assassinatos: Oskar Kokoschka
[16 de dezembro de 2007]
Lidar com a obra de Oskar Kokoschka (1886-1980) é como pisar sobre ovos. O artista é tradicionalmente vinculado à produção da “arte moderna”, estando geralmente associado aos expressionistas alemães. Devemos inicialmente nos perguntar sobre o significado deste termo, “arte moderna”, tarefa árdua e ingrata, que visa mais o levantamento de questões do que qualquer tentativa de resolução definitiva de problemas para o campo da arte.
O termo “moderno” dentro da história da arte (ou melhor, literatura artística) há muito é utilizado. Exemplo disso é o escritor e pintor italiano Giorgio Vasari, ativo durante o século XVI, visto por alguns autores como “o pai fundador” [1] do campo da história da arte. Em sua célebre obra, Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, cria um sistema de narração dos fenômenos artísticos, baseado numa compreensão teleológica da arte. As produções dos séculos XIV, XV e XVI, para Vasari, seriam formalmente distinguíveis, sendo o período como um todo batizado por “Renascimento”, por ter recuperado questões da produção greco-romana, indo a oposição à maldita “arte dos godos”. Ele é um dos maiores responsáveis pela coroação da tríade do Alto Renascimento (a “tríade vasariana”): Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio e Michelangelo Buonarroti. Estes, junto aos demais artistas ativos no século XVI, seriam os mais modernos renascentistas. Porém, qual o enfoque da utilização deste termo, nesse recorte proposto por Vasari?
Temos aqui uma utilização do conceito semelhante a seu primeiro sentido, como proposto por Campagnon. Segundo o autor, a palavra “moderno” surge no século V, em latim vulgar, se relacionando temporalmente ao presente:
Modernus designa não o que é novo, mas o que é presente, atual, contemporâneo daquele que fala. O moderno se distingue, assim, do velho e do antigo, isto é, do passado totalmente acabado da cultura grega e romana. Os moderni contra os antiqui, eis a oposição inicial, do presente contra o passado. [2]
Giorgio Vasari, portanto, ao utilizar “moderno”, afirma que os artistas quinhentistas seriam os mais “atuais” de seu tempo. Esta atualidade se daria através de uma clara problematização do “antigo”: trata-se, obviamente de um re-nascimento – não se parte do nada. Contudo, no caso de Michelangelo, suas obras seriam tão potentes que conseguiriam superar tanto os antigos quanto à própria natureza [3].
Giulio Carlo Argan inicia sua narração da arte moderna pela produção tida como neoclássica, em contraponto ao romantismo. A história da arte tende a reutilizar essa abordagem. “Arte moderna” seria aquela produção que tem uma relação intrínseca com o presente. Se, no Renascimento vasariano, moderno era aquele que se espelhava no antigo (e inclusive o superava), no século XIX este seria aquele capaz de problematizar diretamente o presente (ou então aquele capaz de recodificar a Antiguidade, como Jacques-Louis David, a fim de um engrandecimento de um regime político contemporâneo às obras). O presente passaria a ser tema e problema da arte.
Dentro desse entendimento, provavelmente, o pintor da “vida moderna” por excelência seria Édouard Manet, consagrado tanto por Baudelaire quanto por Campagnon. O pintor francês não estava preocupado com uma ruptura radical para com a tradição artística; ele propunha uma recodificação de problemas constantes relacionados à pintura, tais como o nu feminino e as interações sociais entre diferentes sexos. Só que, ao passo que no Renascimento italiano as figuras humanas tendiam a uma transcendência temática, em Manet elas se tornaram permeadas pela entropia intrínseca às novas possibilidades de apreensão do mundo, dadas pela “vida moderna”.
Mais para o final do século XIX, alguns artistas começaram a apresentar propostas de rupturas claras com a tradição. Inicia-se a chamada “tradição do novo”. Neste momento, moderno é aquele artista que nega o produzido (e, nas entrelinhas, nega o próprio conceito de arte) e define novas diretrizes para a produção estética – geralmente objetivando revoluções no campo social. É a chamada “era das vanguardas”. Temporalmente, Oskar Kokoschka está vinculado a este período histórico. Faz-se necessário, entretanto refletirmos sobre algumas possíveis contradições entre esta postura da época (ou pelo menos uma postura construída historicamente a posteriori) e seus textos de relatos.
Kokoschka tinha uma relação muito forte com a tradição artística, principalmente a dita “tradição clássica” (Grécia, Roma e Itália renascentista), tendo visitado e admirado Veneza e as ruínas gregas: “Veronese, Ticiano – que cores, quanta liberdade! Sem falar em Tintoretto! Foi emocionante, foi aí que eu vi como deveria pintar”. [4] Sua classificação tradicional como “artista moderno” (e principalmente, de vanguarda), rui após confrontarmos definições mais sistêmicas (de Léger ou de Malevitch), com os textos de seu diário e de seu extenso epistolário [5]. Com isso, apreendemos um dos problemas das classificações na história da arte: as obras tendem a escapar destas abordagens tecnicizantes. Sua dimensão poética é mais extensa. Contudo, cabe ainda problematizarmos uma possível vertente expressionista na poética de Kokoschka.
Várias são as versões contadas para as primeiras utilizações do termo “expressionismo” como enquadramento artístico. Há quem afirme que ele surgiu em 1901, quando Julien-Auguste Hervé expõe no Salão dos Independentes, em Paris [6]. Outros historiadores dizem que este foi empregado em uma crítica à primeira grande exposição de Marc Chagall [7]. Sem muito interesse numa “história da arte da corrida maluca”, que busca a institucionalização de primeiros empregos de termos e técnicas, achamos mais importante uma análise da palavra expressionismo e de suas implicações.
No início do século XX, a produção artística européia era permeada por respostas das vanguardas à arte dita “impressionista”. O termo “expressionista” se coloca no pólo oposto ao dos pintores franceses: movimento de “dentro para fora” em oposição a uma pintura interessada em captar os efeitos primeiros dos objetos para com os sujeitos (pintura meramente retiniana, como diria Marcel Duchamp). Comum às duas construções teóricas, a presença da metafísica: a clássica oposição entre dentro e fora, sujeito e objeto, carne e alma. Paul Fechter, historiador da arte alemão, publica em 1914 Der Expressionismus, importante texto para a consolidação de uma fortuna crítica vigente até a contemporaneidade. Mesmo não debatendo claramente os aspectos filosóficos de “expressão”, ele recorta claramente a origem dos artistas que fariam parte desta vanguarda: a Alemanha. Estes fariam oposição a toda produção meramente imitativa anterior, inclusive a dos impressionistas franceses [8].
Quanto à sua organização como vanguarda, o expressionismo se encontrava conjugado principalmente em dois pólos: o grupo Die Brücke (A ponte) e o Der Bleue Reiter (O cavalo azul). Se tomarmos os relatos de Emil Nolde e Franz Marc como exemplos, perceberemos algumas dissonâncias entre Kokoschka e os alemães. Nos expressionistas, ou a tradição artística era negada ou buscava-se uma revalorização da “arte dos godos”, um nacionalismo que procurava resgatar a arte nórdica por excelência. Nolde diz:
Não gostamos de Rafael e permanecemos indiferentes diante das estátuas do chamado período áureo da Grécia. Os ideais de nossos precursores não são mais os nossos. Já não apreciamos tanto as obras que durante séculos foram identificadas com os nomes dos grandes mestres. Artistas elegantes, a serviço de seu tempo, criaram obras para papas e palácios. As pessoas despretensiosas, que trabalhavam em suas oficinas, de cuja vida pouco sabemos e cujos nomes não fomos capazes de guardar, essas nós valorizamos e amamos através de suas estátuas simples e grandiosas, esculpidas nas catedrais de Naumburg, Magdeburg e Bamberg. [9]
Marc afirma: “As tradições são coisas belas, mas é preciso apenas criar tradições, e não viver delas”. [10] Fica claro, ao lermos estes textos, que não se faz presente na escrita kokoschkiana a utilização deliberada da primeira pessoa do plural. Ele sempre afirma por si mesmo, não pretendendo englobar um grupo expressionista de artistas. De certa forma ele dialoga com Karl Schmidt-Rottluff, quando este diz, em 1914, após a dissolução do Die Brücke, que “... sei que não tenho um programa, tenho apenas a ambição indescritível de agarrar aquilo que vejo e sinto, encontrando um meio mais puro de expressá-lo” [11].
Mesmo não chegando a fazer parte oficialmente do movimento, o austríaco Kokoschka trespassou algumas de suas publicações, divulgando suas obras – em especial, seus desenhos e peças. Em 1910, na Der Sturm, são publicados o texto integral e os desenhos de sua peça Assassino, esperança das mulheres.
Apresentada pela primeira vez em 1909, num teatro a céu aberto em Viena, a peça de Kokoschka causou escândalo na sociedade conservadora austríaca. O próprio título já é uma afronta: de que forma um homem que mata, um assassino, pode ser a solução para as mulheres? Ou melhor: de que forma a morte pode ser solução para qualquer coisa? A partir daí, já começa a apontar um problema constante tanto em relação à poética do artista quanto à produção dos grupos expressionistas, ou seja, a dialética entre homem e mulher. Partindo do princípio de que estes artistas pretendiam uma produção estética originária, uma criação de imagens não sistematizadas como no Renascimento, surgem também em suas obras questões primeiras da existência humana, tais como a diferença biológica que separa as pessoas do sexo masculino das do sexo feminino. Cláudia Valladão de Mattos define de forma sintética este certo “primitivismo expressionista”:
“... para haver a criação do real, a arte deve prescindir de tudo o que preexiste à ação do artista: é preciso recomeçar a partir do nada. A expressão se dá de forma excessiva e sem nuanças: no princípio está a ação, que deve ser criativa”. [12]
Este aspecto é constante, especialmente na obra de Kokoschka, podendo ser lido como uma balança, já que se em alguns momentos o homem é o vitorioso do confronto, em outros a mulher faz-se por amazona e tem o comando. No caso desta peça, o homem é o personagem principal e sanguinário. O autor a escreve como que pintando. Especial atenção é dada ao distribuir das cores, aos detalhes cenográficos e à maquiagem dos atores. Poucos são os personagens: um homem, uma mulher e dois coros (um de guerreiros e um de mulheres). Importante frisar que Kokoschka não batiza seus personagens. Estes humanos se encontram num estado primitivo de existência, em que os nomes não têm importância. O que importa aqui é a diferença clara entre condições sexuais.
Outro dado merecedor de análise é a associação que o autor faz entre o sexo masculino e os guerreiros (que talvez pudéssemos ler como bárbaros) e o sexo feminino e as amazonas. Claude Cernuschi, em esclarecedor artigo, associa essa “literatura de gêneros” a questões intrínsecas à cultura fin-de-siècle austríaca. Segundo o autor, Kokoschka possivelmente teria sido influenciado por uma série de livros que contrapunham os sexos, coroando o masculino por fim. Estes textos tendiam a fundamentar seus argumentos conjugando elementos das mitologias greco-romanas com dados pseudocientíficos da época. Logo, nada mais justo do que criar uma imagem da mulher selvagem, uma amazona, sempre munida de um animal (não sempre para servi-la, mas na maioria das vezes para equipá-la-á a ele), e pronta para um devastador ataque. Em outras palavras, podemos chamar esta mulher de femme fatale.
No geral, quando algumas mulheres se destacavam, autores como Bachofen diziam que isto se devia a uma certa masculinização de seu comportamento. Mais tarde, em seu livro de memórias, Kokoschka iria dizer, sobre sua peça, que: “Era justamente o que eu sonhava sobre as mulheres quando era mais jovem... Eu sou mais forte! Eu não seria engolido por ela!”. [13]
Retornando à peça de Kokoschka, percebemos algumas relações com os argumentos de Cernuschi, a partir da construção das ações dos personagens. O homem entra em cena, cercado pelo grupo de guerreiros. Estes tentam impedir sua entrada no palco, porém, mais forte, imponente e já invencível, ele consegue ultrapassar a barreira e adentra montado sobre um cavalo. Do outro lado, a mulher, já presente em cena, solta falas (num estilo dito “telegráfico” de diálogo teatral) que provocam o sexo oposto. Ela diz: “A minha respiração faz tremer o disco amarelo do sol. Os meus olhos agarram o entusiasmo dos homens. A sua balbuciante luxúria rasteja como um bicho à minha volta”. [14] Se os homens são o sol, as mulheres são a lua. Mais uma vez faz-se presente a oposição.
Ao perceber a entrada do homem, o coro de amazonas entra em choque e tenta advertir a mulher sobre o perigo eminente. Esta fica “dividida entre o desejo e o medo”. [15] É ela que titubeia, vacila e permite uma aproximação do homem. Ela acaba se contradizendo e se deixa levar pela luxúria. Eles se ferem. Ele a marca com seu ferro em brasa, ela o corta com uma navalha. Mas é o homem que cai e que fica preso dentro da torre de grades vermelhas. A mulher se comporta de forma animalesca. Kokoschka a descreve: “Ronda o portão como uma pantera. Agarra-se lascivamente às grades; inscreve uma grande cruz branca no muro; grita”. [16] A mulher é guiada por forças dionisíacas. Logo após, ela “passa um braço através das grades e arranha-lhe a ferida, sibilando como uma serpente”. [17] Ela é sempre comparada a animais selvagens.
Enquanto isso, o homem consegue reorganizar-se mentalmente e vencê-la apenas com o discurso. Com voz forte e agressiva, ele consegue criar uma sensação de medo na mulher. A luz brota da ferida aberta do homem. A mulher se desespera e percebe que sua impotência perante o homem é inevitável. Contenta-se com seu fim e deixa-se levar: “Acorrentas-me – tu que eu venci e encarcerei, tu que me prendes agora. Larga-me. Não me prendas. O teu amor aprisiona-me como se fossem cadeias de ferro. Sufoca-me. Me solta! Socorro!”. [18]
O que Cernuschi diz é que, de várias formas, a temática de “Assassino, a esperança das mulheres”, em nada é nova, ou chocante. A sociedade vienense mantinha, nas entrelinhas, os mesmos preconceitos para com as mulheres. Porém, o que é potencialmente “novo” na escrita e na cenografia de Kokoschka é a forma como ele apresenta essa tradição cultural:
... uma ênfase exacerbada às inovações formais do Expressionismo do século XX tem deixado tanto seu subentendido anti-feminismo e suas conexões a um igualmente anti-feminismo acadêmico do século XIX despercebidos. Mas embora essa premissa básica seja essencialmente confiável e persuasiva, ela faz vista grossa à possibilidade de que a forma também possa ser significado e que, no caso de Kokoschka, a linguagem expressionista é escolhida para reforçar o subtexto misógino a qual a peça estava apontando. [19]
Os atores utilizavam vestuários que mostravam os nervos de seus personagens, como se, literalmente, eles tivessem “os nervos à flor da pele”.[20] Isto fica claro em dois dos desenhos que Kokoschka fez para ilustrar seu texto, que também foram publicados na Der Sturm.
No primeiro deles temos o momento em que a mulher, ao lado de fora da torre, toca no flanco que sangra do homem. É preciso reparar que todas as representações gráficas do masculino, na peça, são auto-retratos de Oskar Kokoschka. Ele se inscreve como o homem do texto. As figuras humanas são permeadas por pequenos rabiscos, principalmente em seus corpos. O preenchimento desses nervos faz com que figura e fundo, de certa forma, se fundam numa coisa só, criando uma verdadeira ambiência psicologicamente tensa, sem uma composição renascentista. O homem é maior do que a mulher, que parece passiva a ele. Além disso, mais uma vez temos a presença de um animal (o cavalo, talvez) que perpassa os dois, contribuindo com uma separação entre os sexos.
O outro desenho é muito mais panfletário. O homem está no momento de clímax da peça, quando irá destruir a mulher. Os guerreiros, reunidos em coro, aparecem levemente ao fundo, e apenas podem observar e esperar a sua vez de serem destruídos. Novamente, os traços fortes criam uma tensão entre figura e fundo. Mesmo assim, Kokoschka insere, sutilmente, uma perspectiva: o cavalo está claramente ao fundo e é menor, assim como o coro. Como na dramaturgia expressionista, o artista lança a luz sobre a principal ação, pontuando com menor destaque outros elementos ao seu entorno. O branco do papel pode ser visto como as três paredes negras do palco.
Como dito anteriormente, é interessante constatar na poética de Kokoschka que, nem sempre, o homem sai vitorioso. No próprio cartaz da peça, também pintado por ele, a tensão entre homem e mulher se dá de forma mais equilibrada. O sol e a lua estão alinhados no céu, ao passo que o homem e a mulher parecem formar uma massa só. Juntos, eles constituem a humanidade. Porém, como Cernuschi diz, a exotização da mulher não se dá apenas quando ela perde as batalhas.
Em 1912, precisamente no dia 12 de abril, o artista conhece sua assassina: Alma Mahler. Alemã, famosa principalmente por sua rotatividade amorosa, Alma era sete anos mais velha do que Kokoschka. Poucos dos amigos do austríaco apoiavam esta relação, temendo ser apenas um encantamento passageiro de Alma, ao passo que para ele a coisa fluía como um furacão. Alfred Weidinger, em livro dedicado exclusivamente à relação entre a obra kokoschkiana e esta relação amorosa, afirma que mais de quatrocentas cartas de amor foram escritas pelo artista, num arco temporal de dois anos e meio.
Após lermos o epistolário romântico de Kokoschka, soa contraditória a sua construção do homem e da mulher em Assassino, a esperança das mulheres. Se nas cartas Kokoschka parece um tanto quanto passivo em relação à Alma, na peça a figura do personagem principal era superior à da mulher. Por outro lado, pensando novamente nas características geralmente atribuídas ao Expressionismo, podemos ler essa incorporação clara de questões pessoais dos artistas como algo coerente a uma certa idéia de pathos, de criação impulsionada por forças dionisíacas.
A codificação plástica de relações amorosas não se trata de novo topos na história da arte, Rembrandt van Rijn, em pleno século XVII, já havia produzido uma série de desenhos, gravuras e pinturas, em que estrelava junto a sua então esposa, Saskia e, mais tarde, junto a suas amantes. Porém, em Kokoschka o amor se dá de forma mais densa. Aqui ele é algo existencial e não mero registro visual que pretende monumentalizar uma relação. Kokoschka também cria monumentos a Alma, só que sua produção também pode ser lida quase que como uma terapia, uma criação plástica que purga seus próprios questionamentos e tensões internas, assim que inicia a tocar o pincel sobre a tela. Ele chega a escrever: “Eu reconheço que você é superior e melhor que todas as outras mulheres que apenas sempre mostraram meu eu mais sujo...”. [21] Definitivamente, a vida do artista se divide em antes e depois de Alma Mahler.
Uma de suas obras mais conhecidas é “A tempestade”. Realizada após a viagem do casal à Veneza, quando eles admiram a pintura veneta quinhentista, Kokoschka escreve a Herwarth Walden dizendo que esta obra era “minha mais forte e mais importante obra”. [22] Seu título inicial era “Tristão e Isolda”, porém, após a apreciação do poeta Georg Trakl, ambos decidiram que a obra deveria ser renomeada. “Die Windsbraut”, em alemão, também pode ser lido “A noiva do vento”, ou como comumente a pintura é referida, “A tempestade”.
Melhor título não haveria, já que esta pintura consegue reunir uma contradição. Ao mesmo tempo em que as figuras encontram-se envoltas num redemoinho de cores e pinceladas, dialogando com os nervos dos desenhos de “Assassino, a esperança das mulheres”, os retratos de Kokoschka e Alma, como em poucas vezes veremos, estão em aparente tranqüilidade. Ela dorme, repousada sobre seu ombro; ele está de olhos abertos, pensativo e vigilante. Porém, mesmo com essa aparente tranqüilidade, ele tem as mãos cerradas. Sua linguagem corporal denota um foco em si mesmo. Seu corpo é tenso.
Analisando os diversos desenhos e gravuras que Kokoschka fez durante este relacionamento, percebemos constantemente a inclusão de auto-retratos em personagens vários, assim como Rembrandt. Em um desenho de 1913, sua figura parece pedir ajuda ao público que o observa. Alma segura sua cabeça, num gesto dúbio, de carinho e de agressão. Kokoschka se apresenta abaixo dela, e apela com os olhos para o espectador. A mulher aqui é soberana.
Mesmo assim, julgo que não devemos ler estas obras como toques de feminismo. Voltando à construção teórica de Cernuschi, também era comum no ambiente artístico expressionista, referências a mulheres cruéis. Exemplo explícito disto é outro desenho de Kokoschka. Nele, Alma simplesmente retira e brinca com seus intestinos. Como se tivéssemos abandonado o cadáver de Aris Kindt, ladrão representado no “A lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp”, de Rembrandt, e uma mulher vil, interferisse livremente sobre seu corpo.
Como era de se esperar, a relação entre os dois terminou abruptamente em 1914. Oskar foi para a guerra, como boa parte dos artistas tidos como expressionistas. Enquanto isso, Alma Mahler casou-se com Walter Gropius, de modo semi-secreto. Kokoschka foi baleado durante os combates, voltando a produzir em ateliê apenas no ano de 1919. E surgem outras obras em que a memória de Alma aparece fantasmagoricamente surgem.
Ele encomenda um manequim a uma artesã alemã, em 1918. Este deveria ter a aparência de Alma Mahler. Em suas memórias, ele diz:
Eu queria ter uma replica de Alma! Eu procurei a melhor artesã que pude encontrar, e procurei providenciar a ela as fotografias e medidas de Alma para que ela pudesse criar o manequim que eu tinha em mente. Eu esperei ansiosamente a sua entrega. Pensando em vesti-la com igual elegância à de Alma, eu comprei vestidos e lingerie das melhores casas parisienses. Nesses dias eu tinha um mordomo mais velho trabalhando para mim e uma jovem empregada chamada Hulda. O mordomo ficou tão entusiasmado pensando em colocar os olhos nessa totalmente incrível criatura que no dia que a mala chegou e os dois porteiros cuidadosamente começaram a desempacotar o manequim, ele teve um derrame. [23]
Data de 1919 um dos retratos que Kokoschka fez do manequim. A pintura neste caso é construída sob placas de cor. As pinceladas aqui já não se apresentam de forma tão linear como em suas obras anteriores. Através delas ele cria volumes, formando sólidos que dividem a figura em regiões entrelaçadas. Mais uma vez confundimos a figura ao fundo. Parece que seu vestido também pode fazer parte do fundo que a permeia. Apenas percebemos a figura humana devido à construção de seu rosto e mãos, além da utilização de cores que se assemelham a tons de pele.
O manequim de Kokoschka faz parte de um processo de luto. Freud distingue o luto da melancolia, em texto de 1917. O luto é caracterizado, principalmente, por uma perda objetiva de algo. É um processo que, em algum momento, chegará a um fim. O sujeito em luto tem consciência de estar dentro desse processo, não chegando a se apresentar patologicamente afetado. Logo, pensando o artista austríaco e Freud, podemos ler algumas obras do pós-guerra como integrantes de um árduo processo de luto, referente à perda do convívio com Alma Mahler.
Em outra obra, já de 1922, ele se retrata ao lado do manequim. Não parece ser à toa o fato dele apontar para sua barriga, já que Alma Mahler realizou o aborto de um filho seu, em 1912. Este fato iria afetar toda a obra de Kokoschka, inclusive, possivelmente, sua eterna preocupação para com a condição vital das crianças durante as guerras.
Mais uma vez, o artista consegue obter domínio sobre a mulher. Se, primeiramente ele se colocava no lugar de assassino, denotando um medo/desejo pelo sexo oposto, baseado em representações primitivistas, e se, num segundo, ele constrói uma poética em que se faz passar por vítima de Alma Mahler, nesse terceiro, ele busca uma harmonia com a oposição sexual. Para isso, ele encomenda esse ser inanimado. Agora, tudo que for de seu desejo, será capaz de ser feito. Diferente da mulher da peça, este manequim será simplesmente incapaz de atrapalhá-lo. Kokoschka transforma as mulheres num mero objeto, que inclusive será destruído, dando um fim ao seu processo de luto, e permitindo que ele siga em frente. Não há mais chagas:
Finalmente, depois de tê-la desenhado e pintado mais e mais de novo, eu decide dar um fim nela. Ela já tinha conseguido me curar completamente da paixão. Eu então eu dei uma grande festa com champanhe e música de câmara, durante a qual Hulda exibiu o manequim em todas as suas linhas roupas pela última vez. Quando amanheceu – eu estava bastante bêbado, assim como todos os outros – eu a decapitei no jardim e quebrei uma garrafa de vinho tinto sobre sua cabeça. No dia seguinte, uma patrulha de polícia passou em frente aos portões, e vendo o que era aparente, o corpo de uma mulher nua coberta com sangue, eles entraram na casa suspeitando de algum crime passional. E neste caso, era isso... porque naquela noite eu matei Alma. [24]
Como tentei exemplificar ao optar por uma análise de parte da obra de Oskar Kokoschka, dizer simplesmente que ele era “moderno” e “expressionista”, essencialmente, pouco diz. Deve-se evitar a utilização desregrada desses termos. Como vimos, se fossemos aplicar a ele uma leitura modernista de sua época, ou seja, da “tradição do novo”, o artista não se encaixaria. Seja devido aos seus próprios relatos, seja devido à sua própria construção da forma (com alguns elementos da perspectiva), além de seus temas abordados, que não foram tentativas utópicas de sistematizar objetivamente a arte.
Por outro lado, mesmo não sendo um alemão, Kokoschka insere em suas obras questões imanentes ao ambiente cultural expressionista, como a densa relação entre homem e mulher. Plasticamente também, através de suas fortes cores e linhas, criadoras de pequenos rodamoinhos de tintas, permeados por uma impressão de movimento e pathos, poderíamos dizer que ele dialogava com o Expressionismo.
Podemos pensar a dita “arte moderna” de forma semelhante à proposta por Erwin Panofsky. Este escreve um livro intitulado Renascimento e renascimentos, tentando desconstruir a habitual imagem florentina da cultura renascentista (imagem esta muito devedora a Vasari). Logo, creio que devemos tratar esta produção dita moderna, da mesma forma: “Modernidade e modernidades” – sendo Oskar Kokoschka um grande exemplo para realizarmos essa tarefa.
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[1] BAZIN, G. História da História da Arte: de Vasari a nossos dias. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
[2] CAMPAGNON, A. Cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, pág. 17.
[3] “Mas o homem cujo trabalho transcende e eclipsa aquele de todos os outros artistas, vivos ou mortos, é o inspirado Michelangelo Buonarroti, que é supremo não em uma arte apenas mas em todas as três. Ele ultrapassa não apenas todos aqueles cujo trabalho pode ser dito superior à natureza, mas também os artistas do mundo antigo, cuja superioridade está além da dúvida. Michelangelo tem triunfado sobre os artistas contemporâneos, sobre os artistas do velho mundo, até mesmo sobre a natureza, que não produziu nada, por mais desafiador e extraordinário, que seu gênio inspirado, com seus grandes poderes de realização, desenho, artisticidade, juízo e graça, não tenha sido capaz de ultrapassar com esmero”. Tradução livre de VASARI, G. In: FERNIE, E. Art history and its methods. Londres: Phaidon, 1999, pág. 42.
[4] Tradução livre de WEIDINGER, Alfred. Kokoschka and Alma Mahler. Nova Iorque: Prestel, 1996, pág. 31.
[5] “[...]visitei a Acrópoles e um museu... Milagre após milagre... Tudo que eu havia conhecido até agora foi colocado na sombra...”. Tradução livre de CALVOCORESSI, R. Oskar Kokoschka: 1886-1980. Nova Iorque: Museu Guggenheim, 1986, pág. 230.
[6] DUBE, W. O expressionismo. São Paulo: EDUSP, 1976, págs. 19-20.
[7] GASCH, S. El expressionismo. Barcelona: Omega, 1955, pág. 8.
[8] “[...] a imagem não pode nascer da representação naturalista, a tarefa do artista não é a imitação mas o desenvolvimento da imaginação, a criação da forma ocorre no interior de sua alma. O objeto está sujeito à vontade criativa, a natureza devolve o seu papel dominante ao artista-criador, à alma humana. Quando o artista depende, exclusivamente, da visão todas as outras forças de sua alma estão ausentes; enquanto, no Expressionismo, o trabalho artístico só tem sentido e direito à existência quando a alma é solicitada a cooperar ao esforço criativo”. In: BRILL, Alice. “O expressionismo na pintura”. In: GUINSBURG, J. (Org.) O expressionismo. São Paulo: Perspectiva, 2002, pág. 409-410.
[9] NOLDE, E. “Anos de luta”. In: CHIPP, H.B. (Org.) Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins e Fontes, 1993, pág. 148.
[10] MARC, F. “Aforismos”. Ibidem, pág. 180.
[11] DUBE, W. Ibidem, pág. 22.
[12] MATTOS, C.V. “Histórico do expressionismo”. In: GUINSBURG, J. (Org.). Ibidem, pág. 129.
[13] Tradução livre de CERNUSCHI, C. “Pseudo-science and mythic misogyny: Oskar Kokoschka´s ‘Murderer, hope of women’. In: The art bulletin. Nova Iorque: março de 1999, pág. 7.
[14] KOKOSCHKA, O. Assassino, a esperanças das mulheres.
[15] Loc cit.
[16] Loc cit.
[17] Loc cit.
[18] Loc cit.
[19] Tradução livre de CERNUSCHI, C. Ibidem, pág. 14.
[20] “As personagens em cena devem tornar visível o que está sob a consciência através da pele, uma vez que os nervos desenhados sobre o corpo dos intérpretes abrem acesso ao subcutâneo”. LIMA, M.A. de. “Dramaturgia expressionista”. In: GUINSBURG, J. (Org.). Ibidem, pág. 198.
[21] Tradução livre de WEIDINGER, A. Ibidem, pág. 8.
[22] Ibidem, pág. 36.
[23] Tradução livre de Ibidem, págs. 91-92.
[24] Tradução livre de Ibidem, pág. 92.
(texto publicado originalmente na Revista Digital Art& em 2007)