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Entre o Paraná e Roraima: reflexões sobre “Vaivém” no balanço de uma rede-de-dormir


[15 de setembro de 2020]
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Nos últimos nove anos tenho desempenhado a atividade de curador de artes visuais; após um período trabalhando no campo da curadoria em mostras de cinema e vídeo, em 2011 tive uma primeira experiência de pensar uma exposição com um grupo de artistas em um espaço específico. De lá para cá, felizmente, venho experimentando o fazer curatorial sempre a partir de uma interseção entre minha formação como historiador da arte, o interesse na escrita e a atuação como professor de artes visuais. O presente texto, porém, se trata de uma estreia: esta é a primeira vez que escrevo de maneira reflexiva a respeito de um projeto curatorial que tenha realizado. Em entrevistas e seminários já pude falar a respeito dessas experiências, mas, como bem sabemos, a experiência da escrita solitária está em outra esfera.

Considerem os próximos parágrafos como algumas reflexões escritas após o convite feito por este seminário para refletir sobre “Vaivém”, meu mais recente projeto curatorial e sua relação com a noção de “descolonização”, algo central para o evento. Trata-se de um relato de experiência escrito na primeira pessoa do singular onde levanto algumas questões que o fazer dessa exposição trouxe durante o seu percurso. São anotações a respeito do processo criativo do projeto e de como o fazer curatorial aporta dúvidas e desafios que podem ser enxergados também como um fazer teórico; não exclusivamente pelas palavras, mas por meio das escolhas, dúvidas e dualidades que qualquer exposição pode trazer. Uma exposição, nesse sentido, pode ser enxergada como uma narrativa em que cada um dos elementos ali dispostos exerce um papel.

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Para iniciar essas reflexões, será difícil fugir de uma frase que me acostumei a falar quase semanalmente nesse último ano: a exposição “Vaivém”, realizada nas quatro unidades do Centro Cultural Banco do Brasil entre 2019 e 2020, é fruto de uma tese de doutorado defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2016. Inicialmente uma pesquisa sobre a relação entre a morte e as artes visuais no Brasil, pouco a pouco se transformou em uma investigação sobre as iconografias da preguiça no país e, por fim, precisamente sobre as redes de dormir. O objetivo da pesquisa era refletir sobre como as redes foram historicamente associadas a diferentes discursos que forjaram noções de “brasilidade”, “Brasil” e definiram algumas noções do senso comum sobre o que poderiam ser os “brasileiros”. Orientada pela professora Maria Berbara, a tese de doutorado teve como base uma série de consultas feitas junto a acervos de coleções públicas, privadas e diretamente com artistas visuais em torno de obras que tivessem em sua composição e/ou materialidade a referência às redes de dormir. O leque dessa busca, como pode se suspeitar, é amplo: desde representações bidimensionais em obras daquilo que se convencionou chamar de “artistas viajantes” até a aparição literal das redes – com cunho utilitário – em obras de artistas contemporâneos brasileiros como Ernesto Neto e o coletivo OPAVIVARÁ!

Antes de adentrarmos as discussões que partem da curadoria da exposição em si, há algo no percurso da pesquisa doutoral que me parece roçar as questões relativas ao tensionamento entre arte e descolonização, algo central para esse simpósio: as fronteiras entre o que seria “arte” e “cultura visual”. Durante a pesquisa, encontrei um extenso material iconográfico que envolvia as redes de dormir e que não se apresentava enquanto “arte”, mas enquanto “imagem”: memes, caricaturas, histórias em quadrinhos, selos postais e vídeos do YouTube que viralizaram são alguns exemplos temporalmente próximos de nós. Não podemos nos esquecer também de imagens que durante o seu momento de produção também não possuíam o estatuto de belas-artes: as revistas ilustradas produzidas durante o século XIX e a produção de imagens sobre o Brasil feitas durante a colonização no século XVI – o livro de Hans Staden é um bom exemplo – fazem parte desse grupo.

Estando em um doutorado na linha de pesquisa “Crítica e História da Arte”, algumas vezes me foi perguntado a respeito dessa ampla utilização de fontes imagéticas para minhas reflexões. Mesmo que essas indagações tenham sido extremamente construtivas, me parece importante recordá-las e perguntar sobre os limites de um programa de pós-graduação que traz a “história da arte” em seu nome. Até que ponto o questionamento a respeito das origens das imagens não perpetua a hierarquia entre “alta” e “baixa” cultura? Até que ponto não se faz a manutenção das “belas-artes” em oposição a imagens massificadas, por vezes criadas anonimamente e que costumam atingir um número de pessoas muito maior do que as imagens que convencionamos chamar de “arte”?

Uma vez que a defesa da tese foi realizada, surgiu o desejo de transformar esse material em uma exposição – afinal, foram mais de novecentas imagens localizadas durante a pesquisa e no texto final analiso cerca de um terço delas. Nos anos seguintes comecei a entrar em contato com algumas instituições de arte no Brasil e montei um projeto curatorial que contava com trabalhos que sugeriam cinco núcleos expositivos que desmembravam os três capítulos da tese. Após receber algumas respostas negativas – sendo que uma das instituições argumentou que a exposição possuía “muitos trabalhos que não são exatamente arte” -, tomei conhecimento do edital aberto pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Em outubro de 2018 fomos notificados – a curadoria e produção do projeto – sobre sua aprovação e data de estreia: maio de 2019, na unidade do CCBB em São Paulo. Começou uma contagem regressiva para transformar o projeto em uma realidade palpável.

As redes de dormir são uma tecnologia ameríndia; antes da invasão das Américas, as outras partes do mundo não a conheciam. Uma vez que o projeto foi aprovado para o CCBB, pensei que esse deveria ser um dos focos da exposição: a presença de artistas indígenas. Tenho a impressão desse ter sido um dos maiores “erros” da minha tese de doutorado – e explico as aspas. Em nenhum momento do doutorado desejei estudar as redes enquanto objetos utilitários; o objetivo da minha pesquisa sempre foi o de estudar as redes enquanto símbolo do Brasil e enquanto imagem manipulada para se criar noções de identidade nacional e/ou regional. Como analisei exclusivamente trabalhos previamente existentes, mesmo que tenha pesquisado muito, naquele momento não encontrei obras em que as redes figuravam produzidas por artistas indígenas. Importante dizer também que, no período de realização da tese – entre 2012 e 2016 -, grande parte das reflexões sobre arte indígena contemporânea que chegavam até mim ainda diziam respeito a artistas não-indígenas que faziam obras sobre os povos originários e/ou projetos que englobavam também criadores indígenas, mas não de forma exclusiva – penso, por exemplo, em Claudia Andujar, Maureen Bisilliat, Bené Fonteles, Paulo Nazareth e o coletivo Vídeo nas Aldeias.

Não me parece correto afirmar – como alguns colegas o fazem – que não havia discussão sobre a produção contemporânea de artistas indígenas no Brasil; havia e sempre houve, porém eu não havia me aproximado dela até então – e é importante admitir isso. Dois acontecimentos foram importantes para despertar a minha atenção para essa produção: Jaider Esbell (artista Macuxi que reside em Boa Vista, Roraima) e Arissana Pataxó (artista Pataxó que reside em Santa Cruz Cabrália, Bahia) ganharem os prêmios de voto do público do Prêmio PIPA, em 2016; e a exposição “Dja Guata Porã | Rio de Janeiro indígena”, com curadoria de Sandra Benites, José Ribamar Bessa, Pablo Lafuente e Clarissa Diniz, no Museu de Arte do Rio, em 2017. Ambos os eventos abriram o meu olhar para artistas indígenas atuantes no Brasil que me passavam completamente despercebidos. Não me esqueço a sensação de entrar no MAR e ver o trabalho “Oca do futuro”, de Sallisa Rosa, cujo elemento protagonista era justamente uma rede de dormir e ter a certeza de que havia muito por pesquisar.


Aprendi com esses casos e, uma vez que deveria recodificar a tese em exposição, eu e Ludmilla Fonseca – curadora assistente de “Vaivém” – priorizamos o diálogo com artistas indígenas de diferentes povos e regiões do Brasil. Inicialmente contactamos dois artistas que residem no Rio de Janeiro e que estavam em “Dja Guata Porã”: Denilson Baniwa e Sallisa Rosa. Na sequência, conversamos com Arissana Pataxó e Jaider Esbell e, dessa forma, de conversa em conversa, de indicações de pesquisadores a compras de livros e buscas via Google, nos deparamos com dezenas de artistas de Norte a Sul do país.

Logo percebemos que quase nenhum desses artistas possuíam trabalhos em que as redes de dormir se faziam presentes. Decidimos convidar trinta e dois deles e comissionar trabalhos pensados especialmente para a exposição, sem nenhuma espécie de direcionamento para além da lembrança de que as redes de dormir eram o tópico central do projeto. Nesse sentido, nunca esqueço de uma conversa divisora de águas que tive com Denilson Baniwa em que relatei de forma muito animada minha tese e as ideias acerca da exposição. Perguntei quais de seus trabalhos traziam as redes, ao que ele rapidamente respondeu negativamente. Vendo minha cara de frustrado, ele perguntou com seu habitual bom humor: “E por acaso você tem algum trabalho sobre camas?” e começou a rir. Eu ri em conjunto e entendi que, nesse caleidoscópio de alteridades, criei uma expectativa de que, por se tratar de um artista de origem indígena, ele certamente teria uma produção de imagens sobre algo que eu próprio enquadrava como sendo de sua “cultura tradicional”. Não parti, portanto, daquilo que ele havia produzido e criei uma ideia prévia de seus interesses a partir de um lugar de fala que não é o meu.

Ao passo que as conversas com artistas indígenas – com práticas em mídias tão diversas como a colagem, a pintura, o audiovisual, o cinema de animação e a fotografia – se desenvolviam, trabalhávamos paralelamente na seleção de obras que vinham de diferentes acervos contidos em museus no Brasil. Lidávamos diariamente com dilemas quanto aos limites do espaço do CCBB e os tetos de nosso orçamento. Junto a esse aspecto de caráter administrativo e arquitetônico que acompanha qualquer produção curatorial, começamos a pensar semanalmente sobre um aspecto mais conceitual da exposição: como lidar com registros imagéticos, posturas políticas e artísticas tão diferentes na mesma exposição?


Desde seu nascimento como tese de doutorado, “Vaivém” nunca se colocou em uma postura iconoclasta quanto às imagens que frisavam e/ou documentavam os traumas coloniais no Brasil – algo tão bem representado, por exemplo, pela famosa aquarela de Jean-Baptiste Debret, “Regresso de um proprietário de chácara”, de 1835. Eis um questionamento central nesse processo de produção: não era de nosso desejo fazer nem uma exposição que enfocasse apenas em artistas europeus que representaram o Brasil por vezes de forma exótica e colonial, nem transformar o projeto em uma exposição dedicada exclusivamente à produção de artistas indígenas. Como, portanto, criar uma exposição que dialogasse com uma reflexão, a dizer, decolonial sobre a história das imagens no Brasil, mas que trazia em seu escopo narrativas tão diferentes da história de uma nação inventada?

Optamos por não apartar essas narrativas históricas e espacializar os trabalhos da exposição com a finalidade de construir tensões temporais, regionais, raciais e materiais. O “vaivém”, portanto, não se referia mais apenas ao movimento das redes de dormir, mas também ao movimento de passeio que o corpo do público deveria fazer de sala a sala, de trabalho em trabalho, que também era proporcional ao movimento conceitual que esses objetos mostrados traziam.

Os núcleos pensados previamente foram ampliados para seis: “Resistências e permanências”; “A rede como escultura, a escultura como rede”; “Olhar para si, olhar para o outro”; “Disseminações: entre o público e o privado”; “Modernidades: espaços para a preguiça”; e “Invenções do Nordeste”. Cada um desses recortes era essencialmente transhistórico e o público convidado a pensar a partir dos diálogos sugeridos pela curadoria. Para dialogar com o fazer artesanal que envolve a ancestralidade das redes de dormir, optamos por utilizar um mobiliário em madeira crua. Nas paredes, no lugar do branco gelo, um tom que lembrava uma tela de algodão ocupava a maioria dos espaços e às vezes cedia parede a cores chamativas, mas que não disputavam a atenção com as obras: rosa, amarelo e laranja. A expografia, portanto, era devedora de tradições expositivas de museus históricos e mesmo de arte contemporânea, mas oferecia um pequeno desvio de qualquer desejo de neutralidade e frieza em sua apresentação.

A partir desses encontros entre imagens, eram sugeridas comparações que levavam o público a reflexões sobre os traumas do colonialismo no Brasil. Um núcleo especificamente se destacava: “Olhar para si, olhar para o outro”. Trata-se de um núcleo que gira em torno das imagens produzidas por artistas europeus a respeito das culturas dos povos originários encontrados no Brasil no arco temporal entre a invasão das Américas no século XVI e o século XIX. Nas vitrines, por exemplo, mostrávamos obras essenciais para se pensar a invenção de uma “cultura visual brasileira” feitas por artistas e pesquisadores como Rugendas, Debret, Spix & Martius, Hans Staden, Jean de Léry e André Thevet. Ao seu redor, nas paredes, pinturas, marchetaria e vídeos feitos por artistas indígenas. Era interessante notar a reação dos visitantes ao ver trabalhos de artistas ainda não conhecidos do grande público, como Duhigó, Moyses Piyako, Alzelina Luiza e Dhiani Pa’saro. Neste mesmo núcleo mostramos uma série de colagens feitas por Denilson Baniwa a partir de uma seleção de obras dos “artistas viajantes” dentro das mesmas vitrines. De um lado, temos a visão europeia exótica sobre os povos originários no Brasil e, do outro, a recodificação que interessa a um artista indígena específico nesse início de século XXI. Suas produções não só podem, como devem dialogar: imagem, retórica, poder e diferentes tempos históricos se encontram em uma espécie de pororoca silenciosa. Eis muitos Brasis que se chocam em uma mesma exposição.




Outro núcleo que me parece ser um bom exemplo para esse tensionamento de narrativas é “Disseminações: entre o público e o privado”. Nesta seção são reunidas imagens que demonstram como, com o decorrer dos séculos no Brasil, a rede de dormir deixa de ser associada aos povos originários e começa a ser representada nos mais diversos grupos sociais e espaços. Aqui vemos obras com uma iconografia recorrente na história da escravidão no Brasil: imagens de negros escravizados descalços carregando proprietários de terra e os transportando no fluxo entre áreas rurais e cidades em expansão. Outra narrativa constante desse recorte histórico da primeira metade do século XIX diz respeito às imagens trágicas dos enterros de corpos negros – geralmente feitos em redes por serem as formas mais baratas de se enterrar. Em comparação com a outra iconografia, aqui os artistas não mostram o corpo do cadáver dentro das redes e enfocam seu olhar na precariedade das roupas e nos corpos negros castigados que se despedem de entes familiares no momento da morte. Eis os dois lados de um mesmo momento histórico no país e a cruel constância da tragédia em torno dos negros escravizados.

Criando um contraponto contemporâneo a essas narrativas, foi importante incluir nesse núcleo uma série de pinturas produzidas recentemente por Dalton Paula. O artista tem desenvolvido uma pesquisa a partir da pintura em diversos suportes – telas, livros, objetos de cerâmica, dentre outros – em que lança seu olhar sobre diversas tradições iconográficas e técnicas da representação da negritude do Brasil. Em “A rede”, de 2016, uma das suas obras onde o objeto parece ter um protagonismo maior, a iconografia colonial do corpo negro que é suporte da branquitude é lembrada, porém cada presença aponta para uma direção oposta. Se esse ato fosse realizado fisicamente, um dos dois corpos cairiam e/ou a rede-meio-de-transporte se romperia. Com esta pintura, Dalton Paula sugere narrativas protagonizadas pelo corpo negro que são tanto assombradas pelo passado, quanto também um convite para contemplar situações novas, inusitadas e mesmo silenciosas. Tradições visuais existem para serem reinventadas.


Há outros dois aspectos da exposição que me parecem dignos de nota nestas reflexões sobre seu caráter crítico quanto à colonialidade das artes visuais no Brasil. O primeiro diz respeito a um elemento já tocado aqui: a suposta hierarquia entre “baixa” e “alta” cultura, porém no que tangencia a tendenciosa separação entre o que seria “arte” e “artesanato”. Como realizar uma exposição sobre as redes de dormir e não incluir os objetos em si? Inclui-las era essencial para a exposição, mas devido às limitações impostas pelo CCBB quanto à logística e segurança física dos visitantes, optamos por mostrá-las não de forma com que o público pudesse entrar nelas, mas que ao menos fosse possível notar seu detalhamento de composição – este é um ótimo exemplo de como os desejos curatoriais e dos artistas sempre esbarram nos limites institucionais. 

Além da presença destas dez redes produzidas em diferentes regiões do Brasil, foi essencial identificar suas autoras não no lugar de “artesãs”, mas de artistas visuais; toda rede de dormir não seria uma escultura? Quais circuitos de legitimação fazem com que alguns desses objetos sejam enxergados como exclusivos de colecionadores e outros vistos como massificados e, novamente naquela hierarquia, como “objetos de artesanato”? A exposição e esse texto não as respostas concretas para essas questões, mas me parece que atribuir o estatuto de artista às pessoas que criaram essas obras, já constitui um passo contra a diminuição de estatuto dos fazeres artístico-artesanais no país.


O segundo aspecto diz respeito à diversidade geográfica trazida pela exposição. Como muitos outros projetos curatoriais que incluem em seu âmago imagens da colonização do Brasil, era de se esperar que os momentos da exposição que contam com obras mais antigas trouxessem um número considerável de imagens que discutiam a representação do Rio de Janeiro – capital do Brasil no século XIX e meados do XX, momento de verdadeiro boom na criação e disseminação de imagens no país. Era importante, portanto, sugerir um processo de de-sudestização da curadoria, ou seja, reunir, dentro dos nossos limites espaciais e orçamentários, artistas do maior número de cidades e estados do Brasil. É essencial desconstruir a associação entre “Sudeste” e “arte brasileira” – relação tão recorrente em livros de história da arte no Brasil e ainda vigente no ensino universitário da história da arte, mesmo que em universidades presentes em outras regiões do país. Foi essencial não apenas a presença de artistas indígenas que habitam estados tão diferentes como o Amapá e Minas Gerais, como também a presença de artistas não-indígenas que pesquisam e respondem acerca das redes de dormir para além do Sudeste. O último núcleo da exposição, “Invenções do Nordeste”, também versa sobre a questão e propõe ao público pensar  como a identidade de uma região pode ser forjada a partir da iconografia da rede de dormir e como este pode ser um processo simultâneo de ficção e resistência em resposta à hegemonia sudestina.

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Olhando para “Vaivém” agora, ou seja, mais de um ano após a sua abertura e quase dois anos após o início da confirmação e pré-produção da exposição, me parece que há várias obras presentes na exposição que podem ser vistas como imagens-chave para o projeto. Hoje me vem à mente um trabalho de Gustavo Caboco de sua série “Rede indígena: extensão Wapichana”, comissionado para a exposição. Na primeira imagem dessa série de serigrafias impressas sobre tecido vermelho, o artista faz uma composição em que seu corpo está deitado sobre uma rede presa a dois estados do Brasil: Roraima e Paraná. Trata-se de uma reflexão sobre sua própria biografia, conforme ele afirma em texto de uma publicação posterior que traz a imagem:

Sou uma extensão Wapichana, povo indígena de Roraima. No final dos anos 60, minha mãe foi doada, aos 12 anos, a uma enfermeira. Depois, esta enfermeira redoou minha mãe a uma outra família. Assim, Lucilene habitou várias casas, crenças, religiões, até fixar-se em Curitiba. Sou, portanto, uma extensão em vários sentidos: instalo minha rede entre Curitiba (PR) e Canauanim (RR). Ocupo um espaço do tamanho do Brasil para refletir minha identidade indígena. Sou ex-tensão, no sentido de que hoje posso falar sobre algumas questões traumáticas do corpo indígena em deslocamento.

Tenho a impressão de que “Vaivém” é uma exposição que, dentro de seus limites, deseja um movimento de balanço semelhante àquele proposto por Caboco: entre o descanso e a reflexão melancólica, entre o trauma do passado e a possibilidade de se escrever novos futuros, entre as culturais ancestrais ameríndias e suas muitas apropriações por tantos agentes que moldaram a barro, a suor, a sangue e a ferro o que poderia ser uma “identidade brasileira”.

Poderíamos pensar tanto a exposição, quanto esse trabalho do artista, em diálogo com um texto de Chimamanda Ngozi Adichie que se popularizou por ser proferido em uma palestra: “O perigo de uma história única”. Na sua fala, a autora que nasceu e foi criada na Nigéria, mas fez universidade nos Estados Unidos, relata seus espantos com as visões que seus colegas estadunidenses tinham sobre certa ideia de “cultura africana”, assim como conta sobre seus próprios preconceitos, por exemplo, quando viajou ao México pela primeira vez. Em dado momento do texto ela afirma:

Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e ressaltar o mal. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida.

A experiência “Vaivém” me parece apontar para essa direção: muitas histórias podem ser contadas a respeito do Brasil a partir das redes de dormir, e esse projeto curatorial versa justamente sobre esta sobreposição. Histórias como a de Gustavo Caboco e seu processo de revisão de sua biografia importam, assim como as imagens que narram as violências proferidas sobre os corpos dos povos originários que habitavam esse território que nem se chamava Brasil também importam; como escrever novas histórias se não olhamos também as imagens da barbárie? Em vez dos iconoclasmos, prefiro a coexistência e contextualização de imagens que apontam para os muitos lados dessa colcha de retalhos que chamamos de identidade.

A rede de dormir, portanto, é esse objeto maleável e capaz de acolher não apenas muitos corpos, mas muitos discursos. “Vaivém” é uma exposição que se coloca nesse lugar de acolhimento e espera que o público, ao sair de suas salas, núcleos, imagens, sons e narrativas, possa olhar para sua própria rede de dormir em casa e pensar que todos esses objetos convidam às experiências do prazer, mas também possuem dentro de si lutos e lutas.

Quando é possível complexificar uma série de imagens dessa forma, me parece que pensamos a curadoria de forma decolonial na medida em que estamos empoderados de conhecimentos que nos permitem analisar, criticar e quiçá recodificar as histórias e traumas coloniais de nossas existências rumo a futuros tanto imaginados, quanto concretos que nos levam a criar mais e mais conexões entre, por exemplo, o Paraná e Roraima.

(artigo produzido para o livro “Descolonizando a museologia”, editado por Bruno Brulon e publicada pelo International Comittee for Museology e pelo International Council of Museums)


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