Entrevista com André Griffo
[11 de julho de 2023]
Raphael Fonseca: A formação em Arquitetura é algo que me chama atenção em sua trajetória. Você poderia falar a respeito? Sabendo que você nasceu em Barra Mansa (RJ), mas estudou no Rio de Janeiro, como essa mudança para a capital do estado afetou seu caminho?
André Griffo: Existiam cursos bem definidos para as pessoas que queriam trabalhar com criação: Arquitetura, Desenho Industrial e Publicidade e Propaganda eram algumas das opções. No interior é mais difícil ser “apresentado” à arte, há uma escassez de espaços e atividades culturais, logo Belas Artes não foi uma opção para mim. Formei-me em 2004 com a certeza que seguiria a carreira de arquiteto.
RF: E o que fez você duvidar desta “certeza”?
AG: A insatisfação com a arquitetura e o interesse em novos pensamentos que surgiam e vagavam fora dela. Comecei a carreira trabalhando com um programa de urbanização conhecido como Favela-Bairro, cuja principal meta era integrar a favela à cidade. Foi um exercício completo do ofício e um aprendizado enorme. Por volta de 2006, esse e outros programas de interesse social foram diminuindo ao passo que, numa escala inversa, o mercado imobiliário crescia. Todo pensamento que envolvia a requalificação urbana foi suprimido pela objetividade de desempenho do mercado. Teria tentado me adaptar à nova realidade por mais tempo se não fossem as ideias que comecei a ter fora do fazer da arquitetura. Por exemplo, quando realizava levantamentos de prédios inativos ou abandonados, ficava horas pensando naqueles espaços. Era um exercício de memória para entender aquele vazio. Naquela altura, não compreendia a complexidade do que estava vendo — a discussão sobre a ruína que apareceu em meu trabalho dez anos depois.
RF: Por que você decidiu fazer aulas no Parque Lage? Quais foram seus professores?
AG: O que me levou ao Parque Lage foi o desejo de estudar teoria da arte contemporânea. Sentia um vazio teórico e, consequentemente, uma insegurança em produzir. Fiz o curso Procedência e Propriedade no ateliê de Charles Watson em 2009 e, depois, frequentei um ano e meio de aulas livres com Katie van Scherpenberg, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale no Parque Lage. Com o tempo, passei a ter o objetivo de ser aprovado no Programa de Aprofundamento da escola, também ministrado por Anna Bella e Fernando junto a Marcelo Campos. O curso com Charles foi importantíssimo para entender a rotina do artista, valorizar o processo com seriedade e ter uma maior carga teórica.… já o Aprofundamento foi o que ajudou a me profissionalizar como artista. Considero que depois dele minha carreira começou de fato.
RF: Foi ali no Aprofundamento que vi sua produção pela primeira vez. Você mostrou A mesa das iguarias, das refeições e dos trabalhos mecânicos e Barroco vazio. Antes de experimentar com essas obras sobre lona, você já lidava com cera, parafina e objetos tridimensionais. Gostaria que você falasse um pouco sobre esses primeiros trabalhos efêmeros que realizou e como partiu para obras que o colocaram em conversa com a pintura.
AG: A transição da arquitetura para arte foi uma fase de muita experimentação. Eu buscava relações poéticas em tudo. Não tinha a intenção de pintar. Andava pela cidade atento a qualquer sobra. Foram nas andanças entre cemitérios e ferros-velhos que surgiram os primeiros trabalhos, chamados por mim de experiências. Compostos de velas derretidas coletadas pós-Finados, a experiência consistia no derretimento da parafina e colocação em uma forma de 100 x 100 x 10 cm. Assim, criava-se um território onde eu podia fazer intervenções com maçarico — uma escavação para entender quais materiais as pessoas usavam para se comunicar com os mortos. Em meio à parafina, encontrava bilhetes, flores, terços, miniaturas de santos, brinquedos, entre outros objetos. Em paralelo, desenvolvia a série de instalações nas quais o objetivo era criar máquinas de movimentos simples. Para projetar tais estruturas, comecei com o desenho, porém logo inseri a pintura. Um processo mútuo em que a pintura e o desenho davam informações para a evolução volumétrica e, por sua vez, eram nutridos pela prática instalativa.
RF: Já que estamos falando sobre esse tópico, não posso evitar: você se considera um “pintor”?
AG: A minha prática artística é toda direcionada à pintura, é o que faço diariamente no ateliê. Porém, tenho muitas ideias de instalações que saem esporadicamente do papel. Então “sim” porque é isso que faço todo dia, mas “também” pelas ideias que só seriam realizadas por meio de outras linguagens.
RF: Chama-me a atenção como esses primeiros trabalhos giram em torno de corpos fragmentados; alguns remetem a elementos de um açougue… Haveria uma relação entre essas imagens e a ideia de violência?
AG: Nessa época, ocupei uma oficina em uma zona rural de Penedo, no Rio de Janeiro. Comecei a fazer experimentos com troncos de árvores e estruturas metálicas que havia no local, e essas ações resultaram nos primeiros trabalhos. Em seguida, comecei a adicionar animais – por isso a conexão com um açougue/matadouro… Durante o processo, percebi essa característica de violência. Lembro de controlar o tom e aquela dosagem me instigava porque entendia que havia conseguido imprimir algum tipo de atmosfera na pintura.
RF: Por falar em “atmosfera”, qual foi o primeiro trabalho em que você começou a se valer de uma abordagem mais “realista” de espaços arquitetônicos? Como se deu essa primeira pintura de ruínas?
AG: A primeira tentativa de fazer uma pintura de caráter mais realista foi durante o Programa de Aprofundamento, usando um daqueles espaços inativos que visitei como arquiteto. Era meu objetivo apresentá-la na exposição final, porém não consegui reproduzir o espaço como planejei — optei por dividir a tela em duas partes e pintar por cima, resultando nos trabalhos A mesa das iguarias, das refeições e dos trabalhos mecânicos e Barroco vazio. Após o Programa, procurei outras referências e produzi A vocalização da mãe da lua e Ambiência com objetos úteis, necessários e estéticos. Considero este um período de transição, pois já fazia uso de espaços arquitetônicos como pano de fundo, embora ainda tivessem a característica de desenhos. Foi na segunda tentativa de produção da obra Acidentes não são territórios que entendi o processo. A pintura precisava de camadas, de tempo, esperar secar a tinta e intensificar áreas de luz e sombra. Em seguida, já vieram outros trabalhos com essa atmosfera da qual estamos falando.
RF: Você pode contar mais sobre o processo de composição das obras? Há muito desenho por trás?
AG: Todos os ambientes que pintei foram de locais que visitei pessoalmente. Começo a pintura com um fundo abstrato em cores aleatórias, depois faço as linhas do espaço com auxílio de impressões e, então, vem o jogo entre o que deixar e o que cobrir do fundo abstrato… Quando tenho uma representação avançada do ambiente, começo a tomar posse do espaço, colocar referências e modificar a arquitetura. Na maioria das vezes não tenho uma noção exata de quais intervenções acontecerão e isso faz o processo ficar angustiante (risos). O espaço está lá, pronto, e não sei o que fazer com ele. O que se segue são sobreposições iconográficas até eu conseguir construir uma narrativa dentro daquele cenário.
RF: Nestes trabalhos iniciais, já estava claro seu interesse em citar a história da arte ocidental: há referências a catedrais góticas e ao barroco. Em Acidentes não são territórios há um encontro de signos aprofundados por você nos anos seguintes: as menções ao Renascimento e à pintura europeia, ladeadas a um olhar para espaços arquitetônicos que parecem abandonados. Como cruzar temporalidades tão diferentes em uma mesma imagem?
AG: Considero o ano de 2015 como muito importante para minha produção. Comecei a me interessar pelo valor simbólico dos elementos arquitetônicos, mas ainda pensava em criar máquinas, até que, em Ambiência com objetos úteis, necessários e estéticos, as abandonei de vez para pintar um lugar. Foi um momento-chave para falar de religião e para “cruzar temporalidades”. Isso aconteceu, por exemplo, com a instalação Predileção pela alegoria — andaimes. Estava com um interesse especial nos arcos ogivais — ornamento gótico — porque queria explorar seu significado religioso. Inseri esses elementos em andaimes que são objetos restritamente funcionais. Eu estava falando de dois momentos da arquitetura comparando forma e função: o gótico com arcos que são símbolos da difusão do cristianismo, e o modernismo com seu purismo funcional. Acidentes não são territórios é um somatório de várias questões, das ideias que envolveram esses dois trabalhos anteriores, do interesse pela arte ocidental medieval e pré-renascentista, e do vazio dos espaços em ruínas.
RF: Como surgiu esse interesse por imagens da chamada “tradição clássica”? Isso se semeia em diferentes momentos do seu trabalho, até chegar à sua pequena obsessão com o Fra Angelico…
AG: Os artistas medievais e pré-renascentistas não usavam lentes e câmaras escuras porque a evolução ótica só aconteceu no Renascimento. As tentativas de uso da perspectiva e sua relação entre a escala arquitetônica e dos personagens são fascinantes. Vale a pena citar alguns artistas que me influenciaram muito — um deles é o Sassetta, cuja pintura A Santíssima Ranieri libera o pobre de uma prisão em Florença serviu de referência para criar uma série de quatro trabalhos. Há também o Giotto e, por fim, o Fra Angélico que, na fronteira entre os séculos XIV e XV, ainda mantinha estas peculiaridades quanto ao significado, escala e perspectiva, porém com um conhecimento de claro/escuro e de expressão comparável ao dos renascentistas.
RF: Quando o seu interesse pelo cristianismo e por suas narrativas da violência se movimentou em direção às camadas coloniais de lugares históricos como a Santa Casa de Misericórdia?
AG: Por cerca de dois anos, mapeei pontos da cidade do Rio de Janeiro para pesquisar de forma mais aprofundada a questão dos espaços, e, na ocasião, a Santa Casa estava nos holofotes porque um provedor fora denunciado pelo Ministério Público por fraude. Através de um amigo que lá trabalhava, acessei lugares e informações de uma instituição na qual a filantropia se articulava política, social e ilicitamente. Em 2018, fiz A sala dos provedores, pintura onde abordo diretamente os espaços da cidade, articulando a junção histórica entre política e religião.
RF: Há um contraponto entre as pinturas das Santas Casas de Misericórdia e aquelas sobre as estações de metrô no Brasil e nos Estados Unidos. Se, nas primeiras, as miniaturas pintadas citam o trabalho negro escravizado, no segundo grupo há um dado urbano e contemporâneo que ecoa o trabalho ambulante e a violência policial. Como você vê esse paralelo?
AG: Penso ser uma atualização da paisagem. Se, no passado, a Igreja Católica e a casa grande performavam poder e glória às custas do trabalho escravo, hoje são outros agentes que se valem da religião e da política para consolidar estruturas de poder. Na série O vendedor de miniaturas, tais agentes são representados como bonecos: pastores neopentecostais, políticos, policiais e milicianos são os produtos comercializados por um ambulante fictício. São séries paralelas fundamentadas nas mesmas questões.
RF: Como se dá o seu processo de criação dos trabalhos tridimensionais mais recentes? Chama-me a atenção não só essa emulação dos objetos dos camelôs, mas especialmente essa instalação que imita o espaço doméstico, apresentada em sua individual Voarei com as asas que os urubus me deram, na Galeria Nara Roesler, em 2022.
AG: Nesta exposição, havia três pinturas grandes sobre o vendedor de miniaturas e entendi que materializar os objetos reforçaria o principal tema dos trabalhos. Essa série ainda pode progredir em direção à cidade; tenho a ideia de criar um ponto de venda desses bonecos, uma barraca em um camelódromo, por exemplo. A outra instalação à qual você se refere — A materialização do canto da mãe da lua — foi montada em uma sala escura menor, na entrada da exposição. Mãe- -da-lua é um pássaro que tem um canto melancólico e é comumente associado a mau agouro pelas pessoas do campo. A instalação emula uma sala doméstica com retratos de um casal e é composta também por maquetes, objetos e pelo som do urutau (grupo de aves noturnas do qual o mãe-da-lua faz parte). Esse trabalho é um exemplo de ideias paralelas aos temas que comumente abordo na pintura; o ateliê se transforma porque são outras linguagens em curso. Tem mais estudos com desenhos, experimentações com protótipos e coordenação do que execução em si. O fato de as peças serem executadas fora do ateliê já é uma mudança grande na dinâmica. Enquanto o processo de criação de pinturas parte de um lugar, uma instalação parte da relação entre objetos.
RF: Da parafina e das máquinas para a pintura e, dela, aos poucos, para experiências mais instalativas — para quais sentidos você sente que seu trabalho pode caminhar? Será que, à medida que a sua produção se tornar mais conhecida internacionalmente, esse fantasma do Brasil se moverá para outras direções? E, plasticamente, há algo que te intriga e que você se interessaria em experimentar?
AG: Tudo o que envolve a prática pictórica ainda é muito novo para mim, tenho ideias para mais alguns anos de pintura e é por isso que tenho a sensação de estar sempre atrasado (risos). O que pode acontecer é uma dedicação maior a outras linguagens. No entanto, até esses trabalhos que não envolvem pintura dependem de todo processo de pesquisa, da busca por imagens, que são a base da minha produção como pintor. Tenho muitas ideias principalmente ligadas a novas instalações, mas tem uma coisa que tem me feito pensar: caminhar também em direção à abstração. Não vejo uma mudança no curso da pesquisa por um suposto interesse internacional. Sei que trago questões específicas do Brasil que, por vezes, podem tornar os trabalhos de difícil leitura para um estrangeiro — mas são essas tensões que fazem uma produção artística ganhar relevância, colocando o público em contato com outras realidades.
(entrevista feita para o livro “André Griffo”, organizado por Raphael Fonseca e publicado pela Act Editora em 2023)