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Entrevista com Frederick Wiseman

[30 de dezembro de 2013]




(entrevista realizada por telefone em 2013, em parceria com Bruno Carmelo, e publicada no catálogo da mostra de cinema "Frederick Wiseman - o documentário além da observação", realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro entre 24 de setembro e 6 de outubro)

Seu método de trabalho se baseia na ideia de viajar por diferentes cidades e instituições e de viver com as pessoas desses locais por várias semanas. Isso nos faz pensar em como as residências artísticas funcionam. Como você interage com esses ambientes?
Bom, tipos iguais interagem em qualquer lugar. Alugo, com outras pessoas, uma casa ou um quarto de hotel, e todo dia vou ao lugar que será o tema do filme. Se o local estiver aberto sete dias por semana, estarei lá sete dias por semana. Esse tipo de cinema requer uma completa imersão.

Alguns críticos chamaram sua técnica de trabalho de observacional. O que você acha dessa ideia? Em sua opinião, a observação é importante para a realização de documentários?
A observação é importante para tudo, não apenas para o cinema. Não dou atenção a termos da crítica, porque o que faço é, com efeito, observar. O que mais um documentário poderia ser? Esses filmes são também uma série de outras coisas, são extremamente estruturados, dramáticos... “Observacional” é outra maneira de usar a expressão bastante pejorativa “mosca na parede”, que implica certo grau de passividade, e esse tipo de cinema não tem nada de passivo. A todo momento é preciso fazer escolhas: o que filmar, como filmar, quando parar, quando começar etc. Você não coloca simplesmente uma câmera no canto de uma sala, a liga e deixa as coisas acontecerem, que é o que a palavra “observacional” sugere. Não sou um grande fã desse tipo de cinema.

Entendo em que sentido seus filmes têm relação com a palavra “observacional”. E quanto aos seres humanos? Em sua opinião, a observação é, de alguma maneira, parte do comportamento humano?
Se você se interessa pela maneira como as pessoas se comportam, tem de olhar para elas e ouvi-las. Parece evidente. Nesse sentido, até mesmo os filmes de ficção são observacionais, porque você tem de criar personagens, julgar o que dizem, o que fazem e como agem. Qualquer pessoa que tenha olhos é a todo instante observacional.

Bom, o cinema, obviamente, nunca é passivo, mas você tenta limitar a interferência no lugar e nas pessoas que filma.
Eu não interfiro. Não limito a interferência, não interfiro.

Alguns críticos associam seus filmes ao Cinema Vérité ou ao Cinema Direto. Você se identifica com esses estilos? Mesmo que não se identifique com a expressão “mosca na parede”, esse estilo foi uma referência no começo de sua carreira?
Nenhum deles foi referência, não me lembro de ter visto nada que tenha servido de referência. Acho expressões como “mosca na parede” repugnantes. Ora, você não é uma mosca na parede. A mosca é um inseto inconsciente que vaga por aí em busca de alimento. Para fazer um filme, é preciso ser muito consciente e seletivo. É uma linguagem extremamente estranha.

Já que estamos falando de referências, pensamos muito em Edward Hopper enquanto assistíamos a seus filmes.
Tenho muita familiaridade com a obra de Edward Hopper, sem dúvida. Toda a questão da influência é muito vaga. Há coisas que me interessam, mas que não me influenciaram. Livros que li me interessam mais. Lettres de Gustave Flaubert à George Sand, de Flaubert, e o ensaio de Ionesco sobre dramaturgia são, para mim, os melhores livros sobre edição de filmes, porque eles escrevem sobre assuntos com os quais tenho que lidar quando estou editando. Se tenho algum tipo de modelo, ele é o literário.

Você se refere ao teatro com bastante frequência, fala muito de Beckett.
Gosto muito de Beckett, de suas peças. Aprendi muito com ele. Aprendi sobre a estrutura da edição lendo Beckett. Não posso dizer com precisão o que aprendi. Quando vejo uma peça ou leio uma peça, ou um romance, atento para as questões que se assemelham aos problemas com os quais tenho de lidar quando estou fazendo um filme. Porque as questões, falando abstratamente, são as mesmas para todas as formas de arte, seja uma peça, uma pintura, um poema, um romance, um filme... As questões relacionadas à caracterização, à metáfora, aos fatos e às abstrações são as mesmas. A diferença está em como elas são resolvidas.



O que você tem lido e quais são seus autores favoritos?
Além de Beckett, Herman Melville, li quase toda a obra de Henry James e autores americanos do século XIX, como Poe e Hawthorne. Li também muita poesia, poesia contemporânea. Isso lhe dá alguma ideia.

Penso também em Andy Warhol quando assisto a seus filmes...
Vi alguns de seus trabalhos, mas toda a sua obra é encenação, e a minha não o é. Geralmente, acho-o extremamente engraçado, mas muito unidimensional.

Warhol disse que gostava de coisas chatas, coisas do cotidiano. Seu cinema também parece focar situações comuns da vida.
Bom, acho que não se pode acreditar em nada que Andy Warhol dizia. Encontro nas situações comuns da vida o que parece ser engraçado, trágico, triste, comovente etc. Não acho a vida comum chata.

Então você faz poesia a partir das coisas simples?
Não me cabe qualificar meus filmes de poesia, acho que é possível fazer filmes a partir de experiências ordinárias.

Como avalia criticamente seu próprio trabalho? Há filmes ou momentos que você prefere a outros?
Por incrível que pareça, gosto de todos. Perguntar qual eu prefiro é como perguntar de qual filho gosto mais.

Você filmou várias instituições sociais nos Estados Unidos, mas recentemente se mudou para a França e tem filmado apenas instituições artísticas, como a Ópera de Paris, o Comédie-Française e Crazy Horse. Por quê?
Não queria repetir o tema que explorei nos Estados Unidos. Todos os filmes que fiz na França são sobre coisas que não existem na América. Nos EUA, não existe um teatro com mais de 300 anos, como o Comédie-Française. Não há uma companhia de dança nacional com a história, a tradição e o repertório da companhia de balé da Ópera de Paris e não há casas noturnas como o Crazy Horse. Eu deliberadamente não quis trabalhar na França os temas que já havia trabalhado na América.

Mas mostrar outras sociedades também lhe interessaria?
Falo inglês e francês, mas não falo português, por exemplo. Então só posso trabalhar na linha em que trabalho, em países cujo idioma conheça. Caso contrário, fico perdido.

Já que estamos falando de outras culturas, recentemente tivemos no Brasil uma série de manifestações políticas que foram intensamente registradas por câmeras portáteis e veiculadas instantaneamente na televisão e na internet. O que acha das imagens produzidas por essas novas tecnologias?
Compreendo seu uso para fins políticos, como foi no Rio, no Cairo, na Síria, etc. Por falta de um termo melhor, tenho interesse por filmes com boa imagem e bom som, filmes que sejam bem estruturados. Apesar de considerarem algo pomposo, a estética de um filme me interessa. Não assisti a muitos filmes com imagens de telefone celular. Os que vi são interessantes pelo que mostram, mas eles não estão interessados em estética. Isso não significa que ninguém fará [um filme com imagens de celular que tenha preocupação com estética] – talvez até alguém já o tenha feito –, mas os filmes desse tipo que conheço não me interessam nem um pouco.

Os documentários brasileiros têm focado com certa frequência temas autobiográficos. Cineastas registram seus parentes, levantando com isso a questão do universal. Por que esses temas interessariam às pessoas? Que acha disso?
Não sou narcisista. Não assisti a esses filmes brasileiros que você está falando. Podem muito bem ser filmes incríveis. Não acho que o fato de um filme ser sobre determinado tema o torna bom ou ruim. Depende da maneira como é feito, como o tema é explorado. Ocorre que não estou interessado em fazer filmes sobre minha família, sobre meus amigos e sobre mim. Não significa que ninguém possa fazer um grande filme nessa linha, mas não é um tema que me interesse. O mundo exterior me interessa mais.

Em 2010, o MoMA [Museu de Arte Moderna de Nova York] fez uma retrospectiva completa de seus filmes, durante um ano inteiro. Você acha que há alguma relação entre cinema e museu? Como sugerem os estudos acadêmicos, acha que são coisas inconciliáveis? O que acha disso?
É um assunto muito geral, nunca pensei sobre isso. Fiquei muito feliz com o fato de que meus filmes foram exibidos no MoMA, e, obviamente, acho que o cinema, enquanto forma de arte contemporânea, é importante. Além disso, é bom ter o reconhecimento que uma retrospectiva no MoMA implica, mas não sou muito bom em fazer generalizações culturais, então isso é tudo que posso dizer.

Isso também se aplica aos festivais de cinema? Qual é, para você, a importância dos festivais de cinema hoje em dia?
Tenho uma visão muito prática dos festivais de cinema: eles são um instrumento de propaganda, seu filme é visto e comentado por críticos. Como frequentemente estou atrás de distribuição, já que sou cineasta independente, os festivais me ajudam a encontrar distribuidores e a conseguir dinheiro para o próximo filme.



Você lê as críticas aos seus filmes? São importantes para você?
Bem, eu as leio quando são escritas em uma língua que entenda. Obviamente, gosto quando alguém gosta dos meus filmes, mas quando não gostam, faz parte. Mas não diria que as coisas – positivas ou negativas – que foram escritas sobre meus filmes me influenciaram. Acho que não conseguiria fazer filmes – os que faço – se não tivesse convicção sobre o que gosto e o que não gosto, sobre o que acho que funciona e o que não funciona. Não significa que eu esteja certo, mas tenho de ter convicção sobre essas coisas, porque senão nunca terminaria um filme.

Você acha que os documentários podem ser considerados documentos históricos? Em sua opinião, qual a relação entre cinema e história? Qual poderia ser o papel dos documentários para as gerações futuras?
Tudo o que posso dizer é que espero que eles sejam vistos pelas gerações futuras, mas não sei se serão. Não só meus documentários, mas todos os documentários que estão sendo produzidos agora estarão disponíveis, no futuro, para os historiadores; será outra forma de se fazer pesquisa sobre um determinado período. Da mesma forma que, na América, olhamos para as fotografias da Guerra Civil tiradas por Brady, as gerações futuras assistirão aos filmes sobre a vida americana contemporânea. Terão várias opções.

Podemos dizer que alguns filmes são marcas de suas gerações? Em Berkeley, por exemplo, pode ser visto como uma representação da situação atual da educação na América?
Estaria sendo extremamente pretensioso se dissesse que sim. Frequentei uma universidade anos atrás, que era, na época, uma pequena faculdade; me contaram o que está acontecendo atualmente em outras universidades americanas, mas não as visitei, então não sei. Nunca sei o que é representativo ou não representativo. Há pessoas que afirmam que fazem filmes representativos; talvez de fato saibam fazê-los, eu não sei. Berkeley é a única universidade que visitei e a única universidade à qual pedi permissão para fazer um filme. Então, sei lá. Li sobre essas questões, suponho que muitas delas existam em outros campi, mas se de fato existem, não sei. Não me considero especialista no assunto. Faço o que posso para produzir um bom filme sobre um determinado lugar.

Há algum lugar ou instituição onde você não conseguiria pôr em prática seu método de trabalho?
Sim, acho que instituições que funcionam em um nível extremamente técnico, como um laboratório de pesquisa científica. Nesse caso, não há nada que se possa fazer em termos visuais, porque as pessoas passam o dia inteiro operando microscópios. A menos que você filme o que eles estão observando. Se a fala deles for muito científica, muito técnica, os espectadores não conseguirão entender. É uma limitação. Um escritório de contabilidade, em que as pessoas falam sobre problemas contábeis o dia inteiro e sobre suas relações com o código da Receita Federal, não seria um tema particularmente interessante. Acho que um escritório de advocacia não seria um bom tema, é um ambiente técnico em demasia.

Então podemos dizer que o diálogo é algo muito importante para você, quero dizer, a expressão verbal?
Sim, sim.

Após a finalização de um filme, você volta ao lugar de filmagem, você mantém contato com as pessoas que filmou?
Na verdade, não. Voltei ao Comédie-Française e à Opera de Paris, não por conta do filme, mas porque me interesso por teatro e dança. Fiz amizade com alguns dos atores e alguns dos bailarinos, mas isso só aconteceu com esses dois filmes por causa do interesse em comum. Quando vou fazer um filme, não é minha intenção conquistar novos melhores amigos. Estou lá para fazer um filme.

Você acha que os cineastas são responsáveis pelo impacto de seus filmes na vida das pessoas?
Bom, acho que o cineasta tem a responsabilidade de fazer um filme que seja justo com sua experiência, que no fim é o tema do filme. Isso significa dizer que é preciso ter algum padrão interno de justiça, e espero que eu o tenha. Nem todo mundo vai concordar comigo, achar meu padrão de justiça justo. Acho muito importante tratar as pessoas decentemente, humanamente, de uma forma justa etc.

É importante para você exibir o filme no local onde foi filmado e para as pessoas que participaram dele e ver sua reação?
Sim, costumo fazer isso quando as pessoas estão disponíveis; às vezes acontece de algumas terem falecido, outras vezes não consigo localizá-las. Exibi Previdência social para os funcionários da instituição onde o rodei, mas foi impossível reunir todos que participaram do filme. Da mesma forma, exibi Perto da morte para os funcionários do hospital e para as famílias dos pacientes que participaram do filme e que haviam falecido. Foi a única coisa justa a fazer.

Seus filmes muitas vezes mostram as relações de poder entre os indivíduos. Com a ideia de poder em mente, você acha que o cinema tem o poder de alterar aspectos da vida contemporânea?
Não... Quero dizer, não conheço nenhum exemplo. Fui a uma universidade americana certa vez e expressei esse ponto de vista. Pedi ao público um exemplo de qualquer obra, não só cinematográfica, que tivesse produzido uma mudança social. Alguém levantou a mão e disse que As bodas de Fígaro tinha causado a Revolução Francesa. Antes, não sabia disso.

Tendo trabalhado como cineasta independente por décadas, como você descreveria o cinema independente da atualidade?
Não tenho ideia. Trata-se de uma generalização que não sei fazer. Eu praticamente não tenho contato com outros cineastas, não conheço as novidades, não vejo tantos filmes, então não posso fazer esse tipo de generalização.

Com relação aos poucos filmes que assistiu recentemente, viu alguma coisa relevante?
No ano passado, provavelmente só assisti a três filmes. Gosto do novo filme de Arnaud Despleschin [Jimmy P.]. E... Gostei muito de Antes da meia-noite, com Julie Delpy e Ethan Hawke. Gosto de todos os filmes dessa série, são muito inteligentes, muito bem-feitos, e o diretor conseguiu algo extremamente difícil, ele tornou interessante um filme que é todo baseado em diálogos. Aparentam espontaneidade, mas são na verdade roteirizados de uma forma muito inteligente. São bons filmes. E gosto também daquele filme que Linklater fez sobre Orson Welles... Achei-o extraordinário.

Última pergunta, o que o estimula a continuar fazendo filmes?
Eu gosto. É interessante. É melhor que trabalhar para ganhar a vida.

É claro que gosta, mas você pensa sobre a razão de gostar?
Por que gosto de fazer cinema? É uma coisa que exige muito de você. É um esporte, portanto é fisicamente cansativo. E exige muito do seu intelecto, porque você tem de encontrar uma maneira de resolver todos os tipos de questões complexas. Em cada filme que faço surgem novos problemas sobre os quais tenho de pensar, então é uma forma de ter uma vida profissional muito exigente e muito intensa, uma vida profissional que seja intelectual e emocional. Cada filme é um novo desafio, pois cada filme tem seu próprio conjunto de problemas intelectuais e fílmicos.
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