Erro de desenho
Daniela Seixas
[05 de dezembro de 2014]
Desenhar é um exercício de se colocar entre o controle e o erro deliberado, entre o esboço para um projeto posterior (o desenho como projeto mental) e o espaço de experimentação dado a partir do encontro entre instrumento e superfície. No meio do processo de atualização da versão de 2011 de seu portfolio, Daniela Seixas recebe um aviso de erro do software que utilizava – “a drawing error occurred”. Entre a surpresa e o estímulo que essa mensagem traz à sua pesquisa como artista, resolver salvar a tela de seu computador do modo como estava. Passado algum tempo, novamente a trabalhar nessa árdua tarefa de organizar sua própria produção em um arquivo digital, outro programa se comunica e diz a ela “out of memory”. Mais um Print screen é realizado e agora os erros da informática se converteram em um díptico.
Quando um computador nos avisa que houve um erro de desenho no que diz respeito à organização de um arquivo, poderíamos dizer que se trata de uma notificação que tem toda a razão – errar e desenhar são verbos que caminham juntos e, talvez, possam ser considerados sinônimos. Dado o interesse da artista pela linguagem do desenho desde os tempos da graduação em Artes Visuais na UERJ, as notificações das máquinas parecem mais que apropriadas.
Daniela opta, na verdade, por um tríptico quando insere um outro elemento nessa série de trabalhos, o “Acerca do branco” - about:blank -, a página em branco que muitas vezes recebe o usuário dentro de um dos navegadores de internet e que, coincidentemente, foi a primeira mensagem escrita pelo computador registrada por suas mãos. Nesse sentido, temos a folha em branco, o erro de desenho e a falta de memória a ocupar o espaço expositivo tal como uma cruz.
Ao contextualizar o lugar desses erros, ou seja, circunscreve-los dentro dos quatro lados virtuais que tentavam alterar e melhor organizar o seu próprio cartão de visitas artístico, o portfolio, a palavra “erro” me parece ainda mais potente visto o caráter sempre falacioso de qualquer ordenação de páginas que visa ser uma amostra da pesquisa de um artista. Todo PDF é um erro, toda seleção de imagens que visa com que os profissionais das artes visuais acompanhem de modo expresso uma trajetória é uma curadoria insuficiente – como distinguir os trabalhos que merecem ali estar (os “acertos”) daqueles que não dialogam com o todo ou os quais vemos como desvios em uma trajetória?
Em “De cor (gravar de coração)”, a artista parece tocar nessa questão quando compartilha com o público as tentativas de impressão das páginas de sua dissertação de mestrado. Devido a uma falha do encontro entre as tintas, as palavras se esvaem e as letras se transformam em manchas de cor. O desenho, nessa perspectiva, se coloca como parente próximo da pintura e contraponto do registro certeiro, em preto, de frases precisas.
A partir desse embate entre indivíduo e página se dá um dos elementos da exposição, a ação “duelo/dueto”. A ideia de um desenho errado é algo que também permeia nossa infância e experiências em sala de aula, onde geralmente aqueles que desenham de modo realista são tachados como bons desenhistas. Através, portanto, de um espelho mágico, brinquedo comum às nossas infâncias e que permitia que se copiasse de modo supostamente fidedigno uma imagem, artista e curador se colocarão frente a frente no centro da galeria e tentarão também errar desenhando.
Trata-se de uma parceria que extravasa a atuação profissional no sistema das artes visuais - do mesmo modo que a vida de um trabalho artístico está para além das paredes do cubo branco e das folhas de um PDF. Mais do que amigos, são irmãos por vontade própria há dez anos – ou, como melhor diria o filósofo chinês Mêncio, “a amizade é uma só mente em dois corpos”. Desenhos da infância, textos da adolescência, rascunhos do mestrado, publicações, trabalhos da graduação, experimentações mais recentes... diversos objetos que são frutos de um pensamento de desenho serão copiados pelo outro desta relação perante os olhos do público.
O que é de minha autoria será compartilhado e apropriado por Daniela e vice-versa sempre sobre a mesma base de papel. Mais do que uma exposição sobre as diversas possibilidades que o desenho pode trazer para a produção contemporânea – seja literalmente, digitalmente ou no campo da performance - , esse evento se configura como uma celebração à troca de cumplicidades entre dois amigos.
A única certeza no que diz respeito a esse ritual de desenho espelhado é o erro; a única esperança que tenho é de que nossa amizade siga na difícil trilha do amor eterno.
(texto curatorial da exposição "Drawing error", de Daniela Seixas, na Zipper Galeria, em São Paulo, entre os dias 4 de novembro e 6 de dezembro)