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Erros


André Renaud
[14 de agosto de 2013]



A tradição artística no ocidente se encontra pautada na ideia de imitação. O melhor artista, segundo Plínio, o velho, no século I, era aquele capaz de melhor enganar os olhos do espectador. Durante o Renascimento, diversas são as anedotas que mostram que as esculturas de Michelangelo são correspondentes à própria vida ou à substituição dos modelos antigos. Com o modernismo, essa questão é colocada em xeque. Se a produção de imagens se desprende da ideia de imitar, essa mesma liberdade permite se chegar a algo como a técnica da colagem. Já é possível recortar algo do mundo da banalidade e lança-lo à agora antiga bidimensionalidade do óleo sobre tela. A apropriação se torna palavra de ordem na produção artística.

O trabalho de André Renaud me parece também problematizar a ideia de mimese. Ao dispor sobre o chão dois montes de objetos organizados de modos aparentemente aleatórios, primeiramente poderíamos pensar sobre a relação entre original e cópia. O problema aqui, porém, é que por serem ambos construídos de modo idêntico, formal e cromaticamente, esses termos perdem o sentido. Qual imagem surge primeiro? Qual é o ovo e qual é a galinha?





Visto que no começo de sua institucionalização como artista Renaud realizava imagens de trabalhadores das grandes cidades, podemos dizer que agora ele se coloca no lugar de um dos garis que um dia pintou. Ao coletar embalagens e resquícios de objetos um dia consumidos e organizá-los, podemos aproximar “Natureza morta e sua reprodutibilidade” da sua própria formação como pintor. Se pintura e cor parecem coisas indissociáveis, como negar que estes modos de dispor cores tridimensionais bebem da linguagem pictórica?

Se um dia as histórias cristãs já foram esculpidas em baixo-relevo sobre fachadas de catedrais, aqui se pega aquilo que comumente é chamado de lixo e se eleva à condição de objeto artístico através de uma disposição tridimensional que trará outra espécie de narrativa; a única coisa morta neste trabalho é a própria palavra em seu título. Muito da condição humana pode ser visto aqui: habitamos essa falsa planaridade que é o mundo de modo desorganizado, bagunçado, cada qual com seu rótulo e tamanho diferente, com corpo, cultura e aparência diversas, despojados em um canto apelidado por lar.

Ao ver os dois agrupamentos de destroços lado a lado, imediatamente lembro do famoso jogo dos sete erros. O trabalho de André Renaud me faz pensar sobre esta última palavra. Em um mundo em que um guaraná industrializado, batizado por Jesus e vendido no Maranhão, é comprado por uma indústria estadunidense, até que ponto ainda se pode continuar pensando de modo polarizado, através de “erros” e “acertos”? Qual a fronteira, portanto, entre o luxo e o lixo, o artístico e o banal, o consumível e o apreciável, o popular e o erudito? Não saberia dizer, mas espero que as respostas de André Renaud a essa problematização sigam a se desdobrar aos olhos do público.




(texto publicado originalmente no catálogo "Terceira mostra", relativo à exposição final turma de 2012 do Programa Aprofundamento, da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro)
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