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Espectro


[22 de março de 2023]



Convidado a pesquisar o acervo da Fundação Bienal de Arte de Cerveira, coloquei-me na posição de um aprendiz sobre as muitas possibilidades ali existentes. Nascido e criado na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, e com uma formação em história da arte que, desde a década passada, tem se debruçado sobre a produção de arte no país e realizado conexões com outros pontos do chamado Sul Global – como a própria América Latina, o chamado Sudeste Asiático, dentre outras regiões –, sinto que meu conhecimento sobre a história da arte e a história das instituições em Portugal ainda está a engatinhar.

Neste sentido, como podem imaginar, o convite feito para pesquisar e refletir sobre o acervo composto pela Bienal de Cerveira em seus 45 anos e suas vinte e duas edições me pareceu uma oportunidade rara de mergulhar em narrativas, artistas e obras com os quais ainda não possuo intimidade. Após me debruçar sobre as listas de obras que foram premiadas ou doadas nas mais diversas circunstâncias do evento, algo me chamou a atenção: há uma quantidade considerável de trabalhos salvaguardados na linguagem do vídeo.

Ao visitar Vila Nova de Cerveira pela primeira vez, senti um verdadeiro arrepio nostálgico: sentado no escritório da Fundação, me foram passadas dezenas de pendrives, DVDs e CD-Rs. Perante os meus olhos estavam diferentes formas de se referir às suas histórias midiáticas. Com mais de cinquenta trabalhos em vídeo na coleção – e com alguns de seus autores com mais de uma obra no acervo –, o paralelo entre as histórias da Bienal de Cerveira e da videoarte é evidente. Chama a atenção que, em 1978, já em sua primeira edição, tenha havido, segundo pesquisa de Margarida Maria Moreira Barbosa Leão Pereira da Silva, uma série de “Passagem de filmes/diapositivos e vídeo-tape”.

Na II Bienal, em 1980, há uma lista de artistas que mostraram vídeos: Abel Mendes, Graça Martins, Paulo Maia, Silvestre Pestana, Henrique Silva e Ursula Zangger. O fato de que esses nomes estejam reunidos sob a linguagem do vídeo – assim como artistas da gravura, da pintura, da performance e de intervenções estejam reunidos sob essas mídias – já demonstra o reconhecimento e institucionalização da técnica na passagem dos anos 1970 para a década posterior. Logo na terceira edição, em 1982, o artista canadense Paul St. Jean é premiado pela Câmara Municipal com o Prêmio Audiovisual-Diaporama.

A diversidade de obras em vídeo presente no acervo da Bienal de Cerveira é proporcional às múltiplas origens dos artistas que ali participam periodicamente. Sendo esta uma bienal com chamada aberta, cada edição se trata de uma nova composição geográfica. Realizada, porém, em uma cidade portuguesa cuja proximidade com o território espanhol é gritante – além de ser a primeira bienal de artes visuais da chamada Península Ibérica –, se nota uma presença grande de artistas portugueses e espanhóis, além daqueles advindos de suas ex-colônias.

Todas as obras em vídeo presentes no acervo são datadas do século XXI; sua maioria é da primeira década deste século. Na edição de 1999, na X Bienal, houve prêmios dedicados à chamada “arte electrônica”, assim como nas edições de 2003, 2005 e 2007 havia o Prêmio Instituto Português da Juventude Artes Digitais. Ambas as premiações colaboraram com uma agregação de mais trabalhos desta mídia na coleção. Deste momento em diante é interessante notar como, de maneira constante, prêmios foram atribuídos a produções audiovisuais.

Essa presença do vídeo na Bienal de Cerveira é um reflexo do protagonismo que as mídias digitais tomaram em nossas vidas. Ao observarmos as obras da coleção, notamos isso de forma transparente: temos desde trabalhos do começo do século XXI e realizados em mídias como a Mini-DV às experimentações com celular e imagens 4K realizadas na década de 2010. Acompanhando essas mudanças tecnológicas, o vídeo possibilitou que ateliês de “arte electrônica” – como a experiência realizada pelo UTUTU em 2003 – atraíssem um público leigo que enxergava o vídeo com potencial criativo e de conexão entre criadores em diferentes lugares do mundo com certas pitadas de futurismo. Por outro lado, a mesma mídia também possibilitou experiências de residência artística como aquela que contou com um grupo expressivo de artistas brasileiros que viajou a Vila Nova de Cerveira em 2012. Os novos trabalhos ali produzidos respondiam à cidade e cultura portuguesas, sendo exibidos na XVII Bienal, no ano seguinte.

Além das razões históricas desenvolvidas aqui, pensar uma exposição que lida particularmente com o vídeo parece uma forma interessante de se ocupar o local onde este projeto se realiza, a galeria recentemente cedida à Fundação Bienal de Arte de Cerveira. Um amplo espaço permeado por muitas colunas e com pouco acesso à luz natural – e ainda sem um aparato extenso de iluminação artificial –, esse edifício é convidativo a uma ocupação que traga a seu favor o aspecto penumbroso, tal qual uma pequena caverna, de sua constituição física. Como se pode ver nesta exposição, foi possível articular formas de se mostrar os vídeos pautadas em grandes projeções e se valendo de monitores de diferentes escalas, chegando até a se exibir um trabalho cuja tela utilizada é a de um smartphone. Acredito que o público tem perante seus olhos diferentes estímulos físicos e visuais, podendo experienciar soluções expográficas que demonstram o constante desafio de se mostrar vídeos.

O cruzamento entre este espaço e a pesquisa que pude realizar no acervo da Bienal de Cerveira me fez concluir, contudo, que, melhor do que dedicar essa exposição exclusivamente ao vídeo, mais interessante seria expandi-la e ampliar meu olhar para trabalhos que lidam diretamente com a luz. Um encontro que me estimulou diretamente a fazê-lo foi me deparar com diferentes trabalhos do grande Silvestre Pestana – como ele próprio me disse em uma comunicação por e-mail, um dos poucos artistas que participam desde a primeira edição da Bienal.

Célebre pelo caráter experimental de sua pesquisa como artista visual desde os anos 1960, da coleção de Cerveira mostramos duas de suas séries feitas também no século XXI – “Águas vivas”, de 2009 e “Piso menos dois -2 level”, de 2012. Ambas se caracterizam pela forma como a luz possibilita com que Pestana explore tanto diferentes vibrações de cor, quanto o uso das lâmpadas como elemento estrutural e escultórico. Se “Águas vivas” faz referência ao animal aquático que prefere as temperaturas quentes dos oceanos, seu outro trabalho foi criado com a finalidade de responder a uma arquitetura específica. Trazidos para este espaço da nova galeria da Bienal de Cerveira, suas presenças ganham um caráter quase religioso: iluminando o espaço escuro ao seu redor de forma inconstante, estes trabalhos são circundados por treze vídeos espalhados pelo edifício. Seu caráter escultórico convida o público a circundar suas formas que lembram esqueletos e, simultaneamente, prestar atenção nas narrativas que, assim como essas luzes se acendem e se apagam, se movem em um piscar de olhos nestes trabalhos audiovisuais.

A seleção de vídeos desta exposição traz obras de diferentes momentos da Bienal de Cerveira e sugere alguns campos semânticos. Esta oportunidade parece ímpar para se mostrar ao público como artistas visuais podem se relacionar com as infinitas possibilidades de se construir um trabalho artístico por meio da sequência de imagens e sons.

Dando continuidade a uma tradição que se estabelece com as primeiras experiências com videoarte realizadas na década de 1960, Os Espacialistas, Elen Braga, Ines Norton e Nela Quesada assinam trabalhos onde câmeras filmaram e/ou fotografaram seus próprios corpos. Cria-se um certo caráter íntimo na relação com o público e, por meio da repetição e da exaustão do corpo, esses trabalhos podem ser enxergados como documentos de uma ação específica no espaço e no tempo. Interessados em um pólo quase oposto a esse, os trabalhos de Miguel Angel Rego e Paulo Meira proporcionam ao público a imersão na fabulação e ficção. Se Meira o faz por meio de uma produção audiovisual que conta atores e um roteiro embebido de surrealismo, Rego joga com a repetição de imagens de arquivo e, a cada retorno ao suposto início de sua narrativa audiovisual, insere novos elementos que embaralham as expectativas do espectador. Para estes dois artistas, a noção de artifício é essencial às suas pesquisas.

Alexandre Delmar, Daniel Santiago e Susana Queiroga se irmanam, curiosamente, em seu interesse pela palavra, fala, som e paisagem. Enquanto Queiroga lerá um texto para trazer ao público uma relação trágica com o oceano, Santiago, ecoando Samuel Beckett e seu “Esperando Godot” (1952), interage performaticamente com o espaço público de Vila Nova de Cerveira e beirará o absurdo de forma bem-humorada. Já Delmar e seu vídeo – originalmente feito para ser projetado em quatro canais, mas aqui adaptado para apenas um – traz um olhar voltado para os pastores que mantém a tradição de chamar suas cabras por diversos sons emitidos pela boca. É pelas faíscas de palavras e seus sons onomatopeicos que o trabalho de Delmar se interessa.

Por fim, Felipe Seixas, Marcin Dudek e o projeto UTUTU são pesquisadores de outros tipos de faíscas – aquelas que são visuais e que nos acostumamos a chamar de glitchs. Este último se tratou de um grupo que realizava “oficinas de arte e comunicação” criado pelo artista japonês Seiji Ueoka, co-fundador do grupo Renaissance 2001. Na Bienal de 2003, o grupo esteve presente por meio da presença de seu fundador, além da artista portuguesa Teresa Torres e dos estadounidenses Sharif Ezzat e Dan Sheetz. Colaborando online com outros artistas espalhados pelo mundo, o UTUTU realizava imagens que misturavam experimentos sonoros e diversas texturas do vídeo. Experimentando em tempo real diretamente de Vila Nova de Cerveira, os artistas criaram um acervo interessante de pesquisas da superfície da imagem nas alturas do começo do século XXI.

De gerações posteriores, Dudek – também pintor e escultor – possui uma pesquisa em vídeo onde a edição de imagem e som é cirurgicamente pensada, criando um efeito labiríntico no espectador. Felipe Seixas, o artista mais jovem da exposição, experimenta com os black mirrors (espelhos pretos) que intermediam nossa comunicação desde meados da década passada e cria esculturas onde os únicos elementos cromáticos são imagens-luzes mostradas em smartphones.

Todos os artistas incluídos nesta exposição são pesquisadores que, em algum momento de suas trajetórias, se interessaram por imagens que jogam com a noção de virtualidade e aparição. Ao refletir sobre um título para esta reunião efêmera de trabalhos, uma das primeiras palavras que me veio à mente foi “espectro”. Proveniente do latim, a palavra pode ser interpretada em sua etimologia tanto como uma referência à “imagem”, quanto à “fantasma”. Como se pode perceber caminhando pelo espaço da galeria da Bienal de Cerveira, a luz proveniente da exposição vem de seus próprios trabalhos; o público, portanto, apenas enxerga esta arquitetura por meio das luzes em movimento criadas por esses catorze artistas.

Encontrados dentro da mesma coleção, cada trabalho aqui reunido pode ser entendido como um espectro de dado momento da Bienal de Cerveira. Esta exposição se trata de uma reunião de fantasmas que fala tanto sobre as histórias recentes da videoarte em sentido global, quanto também sobre a sua associação com a Bienal de Cerveira. Fica o convite para que o público dedique seu tempo observando e aprendendo tanto sobre formas muito diferentes de se experimentar com o vídeo e com a luz, quanto sobre interesses existenciais contrastantes. Que esse singelo projeto possa também contribuir de alguma maneira com um maior interesse pela coleção da Bienal de Cerveira e por futuras pesquisas ao redor do mesmo.

Cabe-nos desejar, por fim, que futuros artistas sigam a enviar seus trabalhos nessas mídias para a bienal e que possibilitem que seu acervo siga em expansão e reflexo das discussões mais recentes sobre as histórias das tecnologias digitais em Portugal e internacionalmente.


(texto produzido para o catálogo da exposição “Espectro”, realizada na Fundação Bienal de Cerveira, em Vila Nova de Cerveira, Portugal, entre 13 de maio e 30 de setembro de 2023)
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