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Esse coqueiro que (até) dá coco


Gabriel Mascaro
[16 de abril de 2016]



Em "Boi neon", longa-metragem dirigido por Gabriel Mascaro e lançado recentemente, os personagens são mostrados diversas vezes a travar diálogos relativamente longos. A direção não enquadra seus corpos nem através de planos muito abertos, que os colocariam como parte da paisagem, nem também através de imagens muito próximas e detalhadas. A câmera observa, então, algo que acontece ali, nem perto, nem longe do público, mas geralmente apresentado através de um movimento muito sutil de zoom in. Quando percebemos essa vagarosa entrada perspectiva nas narrativas, nos sentimos um pouco parte dos diálogos, mas o corte para a cena seguinte nos coloca outra vez naquele ponto de vista não muito distante. Gosto de observar a pesquisa em cinema de Gabriel Mascaro nessa mesma perspectiva entre a proximidade e o estranhamento.

"Boi neon", por exemplo, é uma narrativa que se passa em torno das vaquejadas, as festas de enlaçar e derrubar bois, parentes das também criticadas touradas. O personagem central da narrativa, Iremar, um dos responsáveis por cuidar dos bois e também prepará-los para suas apresentações, possui o desejo de ser estilista de uma grande confecção. O personagem é apresentado, então, em um contraste entre o arquétipo do rústico vaqueiro brasileiro e a sua coleção de manequins, pedaços de tecido e recortes de jornal de mulheres icônicas quanto ao seu vestir. Essa tensão me parece ser a mesmo comentada quanto aos enquadramentos e movimentos de câmera optados por Mascaro - o personagem nem é apresentado em uma narrativa monumental em torno de sua testosterona, nem exotizado como peixe fora d'água. Iremar é as duas coisas - e por que não o seria? O que impedir de um ser humano apresentar as duas atividades?



Essa fuga das grandes narrativas que inventaram os arquétipos do que seria o "Brasil" e o "Nordeste" - tão bem estudados por Roberto DaMatta e Durval Muniz -, parece caracterizar a pesquisa artística de Gabriel Mascaro. Em "Boi Neon", novamente, suspeitamos que a narrativa se dá no Nordeste devido ao sotaque de seus personagens, mas este é apresentado como pano de fundo para as ações do filme e nunca como tema central e folclórico. Os ambientes e ações dos personagens se sucedem de modo nada transcendente, onde o corpo humano é mostrado com frieza semelhante às imagens dos bois - sem pudores e sem trilhas sonoras emotivas. A narrativa começa em uma ação e finaliza em outra sem a construção objetiva de um clímax dada por uma estrutura com claros início, meio e fim. A câmera passeia pela vida desses personagens, compartilha suas ações com o público e se despede do mesmo modo seco como aí entrou.



Essa opção de linguagem também se faz perceptível em "Ventos de agosto" (2014), onde dois jovens de uma comunidade ribeirnha sentem a passagem do tempo e a presença da morte. Trabalhando na coleta e transporte de cocos, as imagens estão distantes do célebre verso de Ary Barroso - "esse coqueiro que dá coco" precisa do trabalho braçal de muitos homens e mulheres para chegar até seus consumidores. Já no documentário "Doméstica (2012), ao pedir que adolescentes filmem suas empregadas domésticas por uma semana, a relação trabalhista entre patrão e empregado também é apresentada a partir de diferentes simetrias. Se o espectador espera a denúncia social panfletária, se surpreende ao ver que as relações podem ser mais afetivas do que imaginado - ou seriam esses depoimentos encenações para a câmera? Por fim, em "Um lugar ao sol" (2009), documentário sobre moradores das coberturas mais caras do Brasil, o discurso meramente elitista e preconceituoso por vezes (muitas) esbarra na filosofia do banal e em divagações existenciais. E quem poderia imaginar que essas pessoas ricas teriam algo a dizer?



Voltando a Ary Barroso, creio que, alegoricamente, os coqueiros que Gabriel Mascaro nos apresenta dão cocos, mas metade tem um néctar tropical e a outra parte é dura e seca. É nessa tensão entre a grande narrativa e a micro-história, entre a minha calçada e a sua calçada do outro lado da rua, que reside a sua potência.


(texto publicado originalmente na edição de abril da revista Harper's Bazaar Art)
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