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Fábulas de Américas


Paulo Nazareth
[16 de setembro de 2012]



Muitos são os modos possíveis de se escrever a História do continente americano. Poder-se-ia, por exemplo, partir de seu “descobrimento” durante o Renascimento ou enfocar nos movimentos de independência do domínio europeu. É da reflexão sobre estas diferentes narrativas que parece partir a pesquisa artística de Paulo Nazareth. Sua primeira exposição individual na Galeria Mendes Wood, em São Paulo, é intitulada “Notícias de América”. Importante ter em mente que não se trata de uma notícia apenas; as narrativas aqui não advêm apenas da América, mas versam sobre o continente. Partindo em março de 2011 de sua cidade natal, Santa Luzia, em Minas Gerais, no interior do Brasil, o artista realizou um trajeto que tinha Nova Iorque como destino. Os aviões foram substituídos por uma poética andarilha: portando sandálias Havaianas (este objeto já inserido em um estereótipo de brasilidade), Nazareth atravessou a diversidade cultural da América a pé, de ônibus e barcos, coletando materiais e produzindo vídeos e fotografias que estavam à mostra nesta exposição.

Em um pátio interno da galeria, entre árvores e plantas, encontramos algumas redes dependuradas. A preguiça, em resistência à correria do mundo, recebe o público. Dentro do espaço expositivo, notamos algumas mesas distribuídas de modo irregular, compostas pela assemblage de madeira e papelão de origens diversas. O artista oferece ao público uma espécie de museu de apropriações. Ao caminhar devemos tomar cuidado: objetos estão espalhados também pelo chão e podemos, sem querer, pisar sobre a arte contemporânea.

Sobre as mesas encontramos, por exemplo, pilhas de moedas, sabonetes, animais de plástico, bandeiras e recortes de jornal. Estes objetos se encontram lado a lado e frisam suas distintas origens geográficas. Um desses suportes se destaca por apresentar um grande agrupamento de rótulos de garrafa d’água distribuídos de modo sobreposto. A semelhança das palavras encontradas chama a atenção: “fresca”, “cristal”, “oásis” e “natural” são nomes que aparecem mais de uma vez e em diferentes embalagens. Com isto, Nazareth organiza um atlas metafórico que se recusa a dividir a América de modo convencional, ou seja, em continente do Norte, Central e do Sul. Este mapa construído pelo artista resulta de seu encontro com o inesperado dado pelo seu caminhar e seu colecionismo de objetos precários. A presença da água nesta instalação faz lembrar a ação final realizada pelo artista na sua chegada em Nova Iorque: após ficar seis meses sem lavar os pés, acumulando a “sujeira da América”, Nazareth os lava no rio Hudson, importante curso de água que corta parte dos Estados Unidos da América. Desse modo, a poeira da América Latina é transportada e lançada na hidrografia norte-americana, recodificando de modo poético e efêmero as diferenças culturais e socioeconômicas presentes no mesmo continente americano.

Nas paredes da galeria, além de cartazes também coletados e que endossam a experiência etnográfica de sua viagem, alguns autorretratos fotográficos estão presentes. Neles, o artista posa para a câmera e ostenta placas com textos semelhantes ao de um anúncio. “I clean your bathroom for a fair price”, diz um deles, onde se pode ver, ao fundo, a bandeira dos Estados Unidos. Em outra fotografia, sentado ao lado de um homem que esconde seus olhos com um boné em que está impresso “FBI”, Nazareth escreve “Llevo recados a los EUAmerica”. Impressas em pequena escala, estas imagens partem de uma retórica do autoexotismo que perpassa a exposição. No lugar de negar o passado colonial e sangrento dado pela colonização espanhola e portuguesa na América, o artista parece recordá-lo a todo o tempo através da utilização dessas frases que são o somatório de uma visão ácida e irônica perante o presente, mas também coerente com o conhecido fluxo imigratório rumo ao Norte.



Os objetos mais complexos da exposição, porém, são os vídeos projetados em monitores que, inseridos na extensa quantidade de objetos espalhados pelo espaço expográfico, perdem um pouco de sua potência visual. Neles, a busca por uma identidade cultural se faz de modo menos óbvio - sabemos que são registros realizados durante a experiência artística andarilha de Nazareth, mas estas imagens se sustentam de modo mais existencial. Em “Cuando tengo comida em mis manos”, pássaros tentam pegar pedaços de pão jogados por suas mãos. A timidez dos animais dá lugar, rapidamente, a uma nuvem de aves que anseia por comida; o artista se aproxima do demiurgo.

Nestes objetos audiovisuais, no lugar de apontar sua câmera para os homens infames da América, Nazareth cria narrativas de sua aproximação com a natureza. Não se trata de domesticar o homem ou a paisagem com a fotografia, o texto ou um pequeno gabinete de curiosidades, mas criar, como o título da exposição diz, “notícias” (notas fabulosas) que tem a América e sua diversidade como estopim. O continente americano é colocado no plural e a arte é capaz de apresentar as muitas Américas fictícias inseridas na mesma América.


(texto publicado original na revista ArtNexus de setembro-novembro de 2012)
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