expos      txts      e-books     bio

Falar com os mortos


André Griffo
[11 de julho de 2023]


Durante a organização deste livro, André Griffo chamou minha atenção para algo comum às suas pinturas, em especial as que se referem à arquitetura da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro: algumas das figuras humanas seguram uma linha. Em muitos destes fios, de um lado há a demarcação de um território e, de outro, temos um emaranhado deles, um bololô, como se diz popularmente.

Comecei a pensar como a pesquisa de Griffo se assemelha ao esticar destas linhas — suas imagens proporcionam sobreposições de temporalidades e culturas visuais que tanto delimitam narrativas, quanto nos confundem. Ao entrevistá-lo para esta publicação, uma de suas respostas me levou a aprofundar essa leitura: falando sobre suas primeiras experimentações com parafina, ele comentou a respeito de trabalhos feitos com sobras encontradas em cemitérios. Griffo disse que esta sequência pode ser vista como uma forma de “entender quais materiais as pessoas usavam para se comunicar com os mortos”.

Depois dessa afirmação, não consegui enxergar sua pesquisa de outra forma; comecei a observar suas narrativas como maneiras de manter uma comunicação constante com os mortos. Seus fios soltos me remeteram à expressão “fio da história” e a como, se caminhamos com um novelo de lã ou um carretel de linha em nossos bolsos, somos capazes de retornar aos nossos pontos de partida. O que as imagens de André Griffo nos sugerem, contudo, é que nem sempre esse caminho de volta é linear ou mesmo possível; há momentos da história que nos empurram para um estado de imbróglio e confusão. Inevitável e quiçá desejável, este é um estado no qual podemos pensar sobre as complexas formas de, mais do que nos comunicarmos com os mortos, fazermos reverência a eles.

Assim como as diferentes tessituras propostas por André Griffo, este ensaio se divide em quatro momentos — cada um dedicado a um grupo de trabalhos que, no todo, respeita certa cronologia de sua produção. Os quatro fragmentos são intitulados a partir de frases escritas pelo próprio artista na superfície de suas obras — em sua poética, a comunicação com os mortos muitas vezes também passa pela palavra.


Substituir os chifres
Considerando sua formação em arquitetura, é interessante notar o material escolhido por Griffo em seus primeiros trabalhos: a parafina. Derivado do petróleo e criado no início do século XIX, o material de caráter combustível é usado frequentemente em velas e chama a atenção por sua natureza moldável. Após sua experiência com o concreto, o artista opta por lidar com uma matéria conhecida por sua fragilidade e transitoriedade.

Quando observamos as fotografias desses objetos dispostos no chão de seu primeiro ateliê, suas formas geométricas se destacam: quadrados, retângulos, círculos desenhados com maçarico, torres e pequenas piscinas de parafina. Esses trabalhos possuem certa sujeira e se apresentam parcialmente derretidos, o que sugere uma relação mais orgânica com a arquitetura; são corpos estranhos que parecem brotar do ateliê.

Ao passo que essa produção se desenvolvia com velas por vezes apropriadas de outros espaços, trazendo, assim, materiais diversos a elas associados — como recortes de papel e fósforos —, Griffo também circulava por ferros-velhos em busca de pedaços de sucata, que seriam posteriormente interligados entre si em seu estúdio. Esses objetos remetem a diversos usos do ferro em relação ao corpo humano: próteses ortopédicas, equipamentos de musculação e até mesmo instrumentos de tortura. Há um certo fantasma da violência e da brutalidade nestas composições.

É interessante notar o que se sucede quando o artista realiza suas primeiras pinturas sobre tela: por meio da imitação, ele representa a fisicalidade encontrada na parafina e no ferro. Em Caixas (2011), uma de suas primeiras pinturas, vemos uma série de cubos que remetem a caixas d’água e às estruturas de parafina desenvolvidas por ele; em imagens posteriores, há a sugestão de uma ambiência arquitetônica que nos lembra algo entre a oficina mecânica e uma sala de cirurgias. Tubulações, articulações, parafusos, argolas, cordas e fiações conectam emaranhados de corpos. Em muitas dessas imagens, como um manual de montagem de um objeto, Griffo enumera elementos que nos dão a sugestão de sequência e denotam sua dívida com a arquitetura e seus métodos construtivos.

Assim como qualquer desenho esquemático, pouco a pouco surgem palavras e frases nas imagens. Se em alguns desses trabalhos o campo semântico da arquitetura se faz nítido — “decorado”, “sem matriz”, “chumbado” e “coroamento” —, em outros, notamos que alguns escritos soam agressivos e alheios a ela. Palavrões surgem aqui e ali, junto a frases como “não funciona”, “falsa insígnia” e “o que esperar que saia de um cano de 40 anos?”. Essas expressões, ao lado de iconografias de crânios de bois e porcos dilacerados em tons que vão do cinza ao rubro, criam uma ambiência peculiar. Sai de cena o artista como arquiteto e entra em palco uma figura mais próxima ao açougueiro — profissão intrinsicamente ligada à morte.

Não é à toa a presença do porco nestas imagens, animal associado à sujeira desde a Antiguidade — e especialmente desde o surgimento do cristianismo[1] — por ter patas com casco fendido. Essa característica física protagoniza desenhos de projeto e instalações como Chumbadores (2013), cujos materiais também trazem ganchos encontrados em casas de abate de animais. Além disso, não há como ignorar o simbolismo que a palavra “porco” adquiriu nos últimos anos, em especial nos Estados Unidos, ao ser associada com a força policial e seus constantes atos de violência gratuita.[2]

Em Reuso e retardo (2012), cujo fundo é similar à assepsia branca de um açougue, lemos a discreta frase “substituir os chifres”. Como um cirurgião, um açougueiro e/ou um escultor, Griffo optou, no início de sua carreira, pela corporeidade e pelo caráter violento da fragmentação do corpo animal. Trocam-se os chifres, conectam-se os crânios e criam-se corpos estranhos.

Ainda como pano de fundo, mas crescendo com o decorrer dos anos, aqui e ali em suas pinturas, surgiam referências ao arco ogival, às volutas e aos portais góticos. Até que em um desenho, comentando um objeto feito com ferro e parafina, ele escreve: “Como fazer o barroco vazio. Pegar uma grade de tamanho e dobrar até fazer uma caixa. Depois, revestir essa caixa com outras grades e içar. O objeto não tem fim”. Sai de cena o interesse pela carne e abre-se espaço para sua obsessão pela tradição clássica na história da arte ocidental.


Barroco vazio
Duas pinturas parecem abrir caminho para o interesse de Griffo em regurgitar a história da arte: Barroco vazio e A exibição de Giotto/Gotejamento contínuo/A vocalização da Mãe da Lua, ambas de 2014[3]. O primeiro trabalho pode ser visto como uma despedida de uma maneira de pintar na qual a relação entre figura e fundo se dá pela adição de formas sobre um plano abstrato de nuvens de cor. Há, novamente, a inserção de um crânio, que denota seu interesse pela morte em sentido literal. Uma gaiola parece ser sustentada por volutas e a expressão “barroco vazio” é escrita sobre a superfície. Estas duas palavras nos interessam não apenas pela fórmula aqui já referida, mas pelo que ecoam para além da pesquisa do artista.

A palavra “barroco”, utilizada não apenas nas artes visuais, mas em todas as áreas das artes e da história da cultura, inicialmente designava pérolas irregulares. Posteriormente, o termo é usado para nomear produções artísticas que parecem recusar a ordem, a simetria e a calmaria — também historicamente associadas (e inventadas) à noção de clássico. Nesse sentido, “barroco” poderia ser lido, de forma muito superficial, como algo anticlássico — uma suposta desordem com a qual se relacionariam as noções de kitsch e horror vacui, que se refere ao horror ao vazio cultivado nas igrejas católicas construídas após o surgimento do protestantismo. O Barroco, em sua associação com o catolicismo, é visto como uma maneira de, pelo excesso, mover os ânimos das massas.

Se a obra Barroco vazio preza, como diz o título, pela ausência de excessos, o mesmo não pode ser dito de sua outra pintura aqui referida que, desde o título — três nomes em um —, chama a atenção. Esse dado, somado ao seu tamanho monumental — mais de quatro metros de largura e mais de dois de altura — denotam um novo passo na trajetória do artista. Quando olhamos a superfície da obra, seu caráter citacionista vem à tona: há uma coleção de portões, janelas e detalhes extraídos da arquitetura gótica e de outros momentos da arquitetura ocidental.[4]

Já há algo barroco nos primeiros trabalhos de Griffo, sempre permeados por um excesso fisicalizante. Uma relação direta entre esta plasticidade e seu diálogo com a história da arte aparece de maneira inédita na pintura Acidentes não são territórios (2015). O artista mostra um espaço em ruínas, mas ocupado com citações a obras de arte. Ali estão artistas essenciais para a história da pintura como o italiano Giotto (1267–1337) e o alemão Dürer (1471–1528), ladeados por um elmo medieval e reproduções de elementos escultóricos feitos pelo próprio autor. Não deixemos passar de forma desatenta: logo na parte de cima da tela, no teto desse ambiente, há trilhos com refletores. Trata-se de uma galeria subterrânea; algo que, num piscar de olhos, remete à ideia de um museu em uma era pós-apocalíptica.

Se, nos trabalhos anteriores, apontei a metamorfose do artista-arquiteto na figura de um artista-açougueiro, nestas pinturas produzidas entre 2015 e 2018, poderíamos aproximar o artista de um historiador da arte e/ou curador. Sempre interessado no grande formato — beirando os dois metros de largura —, Griffo produziu uma série impactante de trabalhos nos quais as ruínas convidam o olhar do público ao deleite. Ao ver espectadores diante dessas obras, sempre me impressionou o tempo estendido durante o qual encaravam os detalhes. Para o público leigo, é o caráter realista de suas imagens que salta aos olhos — mesmo que, num segundo instante, as texturas destas ruínas voltem a ser meras pinceladas. Já um observador mais atento cai rapidamente no desafio de tentar identificar as obras curadas pelo artista — elas existiriam? Seriam invenções no estilo de artistas renascentistas? E estas flores que surgem solitárias? Alusões ao gênero da natureza-morta? Nesses trabalhos, a conversa com os mortos é direcionada aos artistas que nos antecederam e à própria história da pintura ocidental.

Aquela maneira de ver o mundo, porém, está morta; em 2016, obcecado com essa cultura visual, o artista extrai o personagem central da pintura O abençoado Ranieri liberta os pobres da prisão em Florença (1437–1444), de Sassetta, e o coloca a sobrevoar diversas situações. Duas pinturas destoam de outros trabalhos deste período: Ranieri abençoa os candomblecistas e Os colonos em prol dos bons costumes. Eis um dos primeiros momentos em que Griffo direciona a discussão para o campo geográfico-histórico do Brasil. Se observarmos atentamente suas pinturas de ruínas, algo semelhante se passa: de repente, a reverência feita à arte italiana cede espaço a reproduções de retratos fotográficos de pessoas negras produzidos durante o século XIX no Brasil. Em Back to Olympia (2017), atenção especial é dada à relação entre a figura da empregada negra no quadro original de Manet, de 1863, e outras representações de corpos negros, todos colocados lado a lado com fita adesiva, quase em referência ao Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg[5]. Oratórios semelhantes à escultura barroca praticada no Brasil durante os séculos XVII e XVIII se fazem presentes e citações arquitetônicas se relacionam à noção de casa grande. Essas imagens trazem um diálogo com outros mortos: os da colonização do Brasil.


A quem devo pagar minha indulgência?
Em 2018, André Griffo pinta um quadro intitulado Instruções para administração das fazendas I. No chão do edifício retratado na pintura, vemos miniaturas: uma casa está no centro da composição, assim como um oratório. O que chama mais a atenção, contudo, são diminutos corpos humanos. Ao nos aproximarmos, percebemos que são pessoas negras carregando objetos de um lado para o outro, saindo desta maquete de casa grande rumo a um buraco para plantar uma árvore ou observando o oratório como símbolo de poder. A partir da leitura de um documento sobre como fazendas deveriam ser administradas durante o período colonial no Brasil, o artista tensiona alguns dos jogos de poder que envolviam a propriedade colonial e a escravidão negra no Brasil.

Foi a partir de seu encontro com a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro que essa pesquisa ganhou uma camada mais ácida. Um dos edifícios mais antigos da cidade, com obras iniciadas em meados do século XVI, a instituição médico-religiosa oferece serviços públicos de saúde. Marco da arquitetura colonial brasileira, o hospital esteve sob acusações de má administração e corrupção em diversos momentos de sua história, colocando nos holofotes seus provedores. Munido das contradições inerentes à história da instituição — como seu anseio por misericórdia em um contexto escravagista —, Griffo acessa diferentes espaços do edifício, estuda sua arquitetura por meio do desenho e da fotografia, e a utiliza como base para uma extensa série de trabalhos.

É também de 2018 a tela A sala dos provedores na qual vemos a sala da Santa Casa que reúne retratos dos provedores da instituição durante seus quase quinhentos anos. Longe de celebrar esses homens ilustres que posaram tendo em suas mãos cruzes e livros, o artista subverte suas efígies — um dos quadros parece ter sido vandalizado com tinta vermelha, ao passo que outro senhor segura uma máscara do seu próprio rosto, tendo outras idênticas espalhadas pelo chão. Como comentado na introdução do texto, alguns destes retratados seguram linhas vermelhas — umas se espalham pelo chão e outras sustentam bolos de dinheiro. Ao centro da imagem, no chão da sala e dentro de uma planta baixa cruciforme esboçada com esta linha, dois corpos negros se encontram novamente trabalhando, portando enxadas sobre suas costas. À esquerda, uma miniatura de igreja com três homens negros velando um corpo também é colocada no chão. Na entrada, um reduzido São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro.

É na perversidade dos detalhes que André Griffo cria um paralelo narrativo entre os homens brancos com poderio econômico e simbólico que administraram — e seguem fazendo — a Santa Casa de Misericórdia, e a população negra miniaturizada, tratada como propriedade pela sociedade colonial brasileira; eis o artista-sociólogo. Nos anos seguintes, o espaço da instituição religiosa retorna de forma minuciosa na série Instruções para administração das fazendas: azulejos, janelas, esculturas religiosas, retratos de provedores, mobiliário, padrões geométricos do piso, luminárias e oratórios — todos esses elementos são incluídos em narrativas que demonstram como Estado e Igreja caminharam juntos em séculos de exploração do território que atualmente chamamos por Brasil. Enquanto a misericórdia era praticada, o sangue era derramado.

Ademais, Griffo nos lança outra pergunta: devemos articular esses verbos no passado? Projetos de poder que articulam religião e Estado no Brasil não são vigentes na contemporaneidade? A população negra, maioria da população brasileira, não segue a ser aniquilada diariamente, de diferentes formas que atualizam a violência colonial? É deste questionamento que o artista produz pinturas que são uma mescla de iconografias cristãs e representações da violência. Em Talvez valha a pena contar com a sorte (2019), uma figura angelical que parece extraída de uma pintura italiana do século XIV observa um grupo de pessoas negras trabalhando — a vista grossa feita até hoje. À direita, duas cascas de tinta de parede têm uma silhueta semelhante à América do Sul; uma delas representa o continente em sua relação com a África, a América Central e a América do Norte — as Américas como um projeto de ruína.

Em uma pintura de 2019, uma frase pixada sobre uma parede nos pergunta: “A quem devo pagar minha indulgência?”. Quem levanta a questão? As múltiplas figuras religiosas? As figuras estatais? Ou seriam estes corpos que trabalham para manter um país e, na impossibilidade de enxergar qualquer ascensão social, acreditam na ficção de que são pecadores? À esquerda, no chão, uma superfície de plástico reúne objetos de maneira semelhante à de vendedores ambulantes. O artista nos introduz um novo personagem em seu universo pictórico: os vendedores de miniaturas.


Voarei com as asas que os urubus me deram
Em 2020, André Griffo faz a pintura O vendedor de miniaturas. Fazendo referência a uma estação de metrô — algo recorrente em seus trabalhos recentes —, o artista pinta um espaço vazio, mas repleto da presença humana pelas miniaturas. Algumas, mantendo sua assinatura, estão pousadas no chão. Em posturas que se assemelham a santos cristãos, notamos a presença de um pastor com microfone que tem um fiel ajoelhado ao seu lado e alguns policiais militares. Outras figuras são agrupadas em cachos içados no teto da estação, semelhante ao que vendedores ambulantes fazem no Rio de Janeiro. Nelas, vemos não apenas silhuetas de santos, mas, novamente, pastores e policiais.

Depois de mais de dez anos de discussões sobre a violência, é interessante como apenas recentemente Griffo começa a utilizar iconografias que incluem agentes contemporâneos. A polícia militar, as milícias e o protestantismo foram alçados ao estatuto de poder estatal e religioso. As instituições a quem a população brasileira deve pagar suas indulgências mudaram; exemplo disso é O vendedor de miniaturas — show room (2021), no qual, em um ambiente semelhante a uma igreja com um belo vitral, todas essas figuras citadas são pintadas como se fossem esculturas de mármore.

A escala da figura humana cresceu em seus trabalhos recentes — era difícil imaginar anteriormente corpos em tamanho grande como os que encontramos nas várias versões de trabalhos na série O vendedor de miniaturas e nas figuras melancólicas das duas pinturas que compõem Olhos distantes se camuflam na paisagem. Na variante mais recente da tela, de 2022, um homem se senta perante uma mesa vazia com apenas uma garrafa de cachaça e um copo. Acima de seu corpo, presa à parede, uma reprodução da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Na ausência da fartura daquela grande refeição, cabe a esse homem estar ensimesmado e reflexivo em seu labirinto de azulejos.

Há algo de existencialista nas obras recentes de Griffo; gosto de pensar que, se anteriormente o apontei como um artista-sociólogo, aqui ele lança um olhar mais próximo da psicologia, versando sobre existências que se posicionam entre a melancolia e o cansaço dos dias de trabalho. Seus vendedores de miniatura se encontram em lugares subterrâneos e mal iluminados, ao lado de coleções de miniaturas perversas, em posturas entre o descanso e a autorreflexão. Talvez eles não percebam que, em verdade, as miniaturas são eles. É como lemos não apenas uma, mas duas vezes nas placas de O vendedor de miniaturas 5: “sem saída”.

Em O progresso do regresso 4 (2021), o artista nos mostra como o jornal desempenha um importante papel ficcional. Cinco recortes trazem artigos que apenas confirmam o beco em que estamos — um repete o título do trabalho, ao passo que os outros dizem “Iphan quer proteger as armas de fogo como objetos de valor cultural”, “Use sua arma nova em si”, “O que dá pra rir dá pra chorar” e “Talvez valha contar com a sorte”. Acima dessas matérias, a imagem de um bolsonarista fazendo uma arma com as mãos, tendo Brasília ao fundo. Neste ambiente seco e de desesperança, contudo, há uma frase escrita sobre a superfície externa de uma janela de vidro: “Voarei com as asas que os urubus me deram”[6], uma citação à música Manguetown, de Chico Science & Nação Zumbi.[7]

Em uma espécie de releitura do mito de Ícaro — o filho de Dédalo que voa alto demais e tem suas asas de cera e penas derretidas —, Griffo nos sugere que, uma vez no caos, mais vale abraçá-lo e tentar voar dentro de seus limites. Longe das asas das águias, que nos valhamos de pássaros cuja carga simbólica e cromática costuma ser associada à morte e ao mau agouro. Nestes trabalhos mais recentes, a conversa com os mortos proposta pelo artista diz respeito à própria noção de individualidade e liberdade; acometidos por tantas violências físicas, simbólicas e psicológicas estimuladas pela acelerada comunicação humana e pela luz de nossos celulares, só nos resta ficar prostrados. É a morte dos sonhos ou, melhor dizendo, é a conclusão de que só as asas dos urubus nos permitirão voar.

***

Em seu percurso de quase 15 anos como artista visual, André Griffo criou imagens que não cessam de proporcionar novas leituras e associações para o público. Felizmente, mesmo que seja um trabalho engajado em uma reflexão política e existencial, sua pesquisa está longe do caráter panfletário que abate tantos artistas em momentos de crise política, sucesso comercial e entrada institucional. Seus trabalhos recentes, assim como suas primeiras pinturas e objetos, permanecem um emaranhado de referências que nos convida a, como ele próprio escreveu, “substituir os chifres” — ou seja, mover signos daqui para ali, colocar lado a lado formas e extrair equações cujos resultados nunca serão os mesmos.

Comparando seus últimos trabalhos com os primeiros, é curioso constatar um interesse comum: a relação com o tempo, com a memória, com o passado, com a História e, claro, com a morte. Se aquelas produções em parafina se perderam enquanto escultura, segue no artista a experiência física de fazê-las e seu registro fotográfico para o público. Enquanto isso, algumas narrativas ecoadas em sua pintura parecem ter se desmanchado no ar — seja o Renascimento, seja a sociedade colonial, seja o fascismo que abateu o mundo. Como, porém, sua proposição de mnemotécnica[8]nos ensina, não existem verbos no passado — existem ciclos, às vezes orgânicos, às vezes abruptos, que nos colocarão perante o gozo e o medo, menos como um movimento pendular e mais como uma espiral.

Por agora, ao menos no Brasil, parece ser tempo de respirar aliviados e observar de forma esperançosa o horizonte — mesmo que estejamos voando com nossas asas de urubu. Quem disse que precisamos das asas de outros pássaros? O importante é voar.

[1] Diversos fragmentos da Bíblia fazem referência à carne de porco. Em Levítico, 11:7-8: “Também o porco, porque tem cascos fendidos, e a fenda dos cascos se divide em dois, mas não remói; esse vos será imundo. / Da sua carne não comereis, nem tocareis no seu cadáver; esse vos serão imundos”. Já em Deuteronômio, 14:8: “O porco também é impuro; embora tenha casco fendido, não rumina. Vocês não poderão comer a carne desses animais nem tocar em seus cadáveres”.
[2] Ver ORTEGA, Adam. “A brief history of the word pig as a slang for police” in Noise Omaha. 02 de julho de 2021. Disponível em <www.noiseomaha.com/resources/2021/7/1/a-brief-history-of-the-word-pig-as-slang-for-police>.
[3] Ambos os trabalhos, assim como parte das obras comentadas previamente neste texto, estavam na mesma exposição: Intervenções pendentes em estruturas mistas, no Palácio das Artes, Belo Horizonte, em 2015.
[4] Importante lembrar que esse largo estudo sobre o arco ogival levou o artista a realizar sua instalação de maior escala até agora, Predileção pela alegoria — andaimes, exibida na cobertura do Centro Cultural São Paulo, em 2017, e que também gerou a exposição de mesmo título realizada na Galeria Athena, em 2015. Há um tríptico em pintura com o mesmo título, também de 2015, que exemplifica seu interesse pelo estudo das relações entre forma, uso e ornamentação.
[5] Ver, por exemplo, WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madri: Ediciones Akal, 2010 e DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. Interessado no tráfego de símbolos entre tempos e culturas diferentes, o historiador da arte alemão Aby Warburg (1866–1929) desenvolveu um estudo em que aproxima imagens de diferentes temporalidades a fim de perceber constâncias formais. Warburg organizou mais de mil imagens em sessenta e três pranchas, abordando diversos tópicos desde a Antiguidade até a época do seu estudo, por meio de reproduções imagéticas e colagens.
[6] Este se trata do título de sua exposição individual na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, em 2022.
[7] Os versos originais dizem “Esta noite sairei / vou beber com meus amigos / ha! E com as asas que os urubus / me deram ao dia / eu voarei por toda a periferia”. A música tem composição de Chico Science e Lucio Maia, e foi incluída no álbum Afrociberdelia, de Chico Science & Nação Zumbi, de 1996.
[8] Ver YATES, Frances. A arte da memória. Campinas: Editora UNICAMP, 2007.

(xxxx) 
© 2024, Raphael Fonseca | Todos os direitos reservados.