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“French fucking idiots” ou chocolate com castanhas de caju


[06 de janeiro de 2014]




Nestas últimas semanas de produção desta mostra de cinema, nossa produtora se deparou com outra retrospectiva acerca do cinema belga. Realizada dentro do FESTROIA, o Festival Internacional de Cinema de Setúbal, em Portugal, em seu website é possível encontrar um texto comentando a edição anual da “homenagem a um país” que, claro, vem a ser a Bélgica. Intitulado “De Bruxelas com carinho”, a primeira frase deixa clara a abordagem acerca da cultura deste país:

... o 29º FESTROIA escolheu o reino dos chocolates, das batatas fritas, da cerveja e do Tintin, um país com 10 milhões de habitantes, duas línguas oficiais, e, enquanto coração da União Européia, a casa de quase tantos diplomatas e correspondentes estrangeiros quanto Washington.[1]

Logo na sequência da escrita, o curador britânico Phillip Bergson continua com sua descrição do cinema belga e afirma que “são muitos os actores talentosos e as lindas actrizes que pensamos serem franceses mas que, na realidade nasceram na Bélgica...” e termina por definir a região geográfica como “um país de diversão e amizade, humor e surrealismo”.

Em um primeiro momento, a reação que tive foi de ficar impressionado com esse rótulo um tanto quanto simples da cultura belga. Assim como o Brasil se resume, como uma vez uma crítica de arte russa me disse, a calor, praias, samba e pessoas nuas, a Bélgica poderia se concentrar em torno de alguns ícones que, mais do que “nacionais”, funcionam numa chave da projeção internacional. A culinária, a história em quadrinhos e uma pitada magrittiana de surrealismo, nessa perspectiva, é o que tangenciaria sua identidade cultural.

Não me parece, de todo modo, algo que pode ser incriminado de modo unilateral. Sabemos muito bem como essas afirmações não se dão de modo aleatório, mas geralmente são construídas historicamente e mesmo incentivadas pelas administrações públicas. As batatas fritas, por exemplo, em inglês chamadas por “French fries” e que no francês são nomeadas por “pommes frites” ou “patates frites”, seriam uma invenção belga. No anseio por ser criar traços de uma cultura própria, um jornalista belga chamado Jo Gérard alegou ter encontrado um documento de 1781, assinado por um ancestral, Joseph Gérard, intitulado “Curiosidades da mesa na Bélgica”. Esse parente escreve que

Os habitantes de Namur, Andenne e Dinant tinham o costume de pescar no Meuse atrás de pequenos peixes e fritá-los, especialmente entre os pobres, mas quando o rio estava congelado e a pescaria se tornava difícil, eles cortavam batatas na forma de pequenos peixes e os colocavam numa fritadeira.[2]

Essa espécie de ansiedade por marcos identitários faz com que exista em Bruges, na região falante do flamenco, um museu chamado “Frietmuseum”, o Museu das Fritas. O “French”, então, da língua inglesa, parece ser justificado através de uma utilização do termo pelos exércitos estadunidenses que chegaram à Bélgica durante a Primeira Guerra Mundial. Ao provar a iguaria local, por estarem baseados na região francófona do país, eles teriam associado a culinária à língua francesa e, voilà, “the French fries”. Anedotas não confirmadas à parte, é interessante pensar como a imagem de um país se molda através desses fluxos culturais que tem mais costuras soltas do que pontes de transferências claras.




Alguns desses traços da cultura popular aparecem nos filmes de nossa mostra. Em “Aaltra”, uma espécie de comédia de erros pautada no formato de um road movie (talvez um “road movie de erros”), os personagens centrais, após sofrerem um acidente e já estarem paraplégicos, resolvem ir rumo a Finlândia, país que sedia a empresa que fabricou o trator que os feriu. No percurso, porém, fica clara a fascinação de um deles pelo motociclismo. Após passarem por uma espécie de feira de novas motos, um deles engana o vendedor, nitidamente um homem nascido nos Estados Unidos, e rouba por algumas horas uma máquina de alta potência. Uma vez capturado, a primeira frase que este homem diz após jogar sua cadeira de rodas e recuperar seu objeto é “French fucking idiots!” (algo como “malditos idiotas franceses!”).

Interessante pensar como se retorna ao tópico da alteridade tal qual na tradução para “French fries” e a Bélgica é mais uma vez bloqueada pela língua francesa. Mais do que isso, a diferença linguística entre inglês e francês é reforçada de modo muito claro entre uma cultura supostamente inteligente, ao ritmo do capital, e aquela cultura que não é a “sua” (do personagem falante), ou seja, que é “outra” e, por tabela, “fucking idiot”. Os outros poderiam ser suecos, italianos ou mesmo finlandeses; todos seriam idiotas, mas o que nos serve aqui é constatar um apagamento da suposta identidade belga.

A Bélgica se configura de modo idiossincrático devido à sua pequena extensão territorial e à sua aparente divisão entre territórios que se comunicam de modo diferente. Ao norte, uma cultura batizada por “flamenca” e em contato direto com um passado compartilhado junto à sua vizinha Holanda. Ao sul, uma região fronteiriça com a França e que tenta não se deixar ficar à sombra de seu vizinho. Quase que ao centro, por vezes destacado de seu mapa geral, assim como o projeto gráfico dessa mostra, com um estatuto simbólico de ilha, temos Bruxelas, capital onde, supostamente, se fala o flamenco e o francês. Com uma clara intenção de representação internacional por ser sede da União Européia, basta, porém, caminhar um pouco pela cidade para perceber que as placas, o transporte público e mesmo o atendimento nos estabelecimentos comerciais pende para a língua francesa.

As línguas podem ser diferentes, mas foi muito curioso durante esse processo curatorial perceber que existe um tópico claro na produção belga recente de cinema: a noção de deslocamento. A maior parte dos filmes aqui selecionados está pautada em uma apreensão da paisagem geralmente pelo ponto de vista do viajante, ou seja, as narrativas se iniciam geralmente através de encontros que fazem com que os protagonistas saiam de seus lugares seguros.[3] Quando isso não ocorre de modo explícito, personagens surgem de modo curioso dentro do espaço privado e agora instável de outros indivíduos.[4]




Essas peculiaridades me fizeram buscar relações com a história da imagem na Bélgica e recordar de um importante texto datado de 1572 e de autoria de Domenicus Lampsonius. Em vez de nos determos apenas a uma leitura cliché da iconografia popular da Bélgica contemporânea, talvez seja interessante cruzar essa escrita do Renascimento com as imagens encontradas nos filmes selecionados para essa mostra. Lampsonius, humanista, pintor, colecionista e poeta nascido em Bruges, em 1532, e falecido em Liège, em 1599, escreveu um texto intitulado “Pictorum aliquota celebrium germaniae inferioris effigies”, uma compilação de poemas dedicados a vinte e três artistas que viveram entre os séculos XV e XVI.

O que chama a atenção em sua escrita, como aponta a historiadora da arte Maria Berbara, é o modo como ele busca construir uma identidade própria da arte do então chamado “Norte da Europa”.[5] Em outras palavras, em vez de se colocar em uma posição de admiração e diminuição perante os grandes nomes então vivos da produção artística na Itália, como Michelangelo e Tiziano, Lampsonius elogia e busca aquilo que seria próprio à arte dos “Países Baixos”. Ao comentar a obra de Jan van Amstel, diz:

A glória própria dos belgas é bem pintar os campos; a dos italianos, homens ou deuses; é por isso que se diz, com razão, que o italiano tem o cérebro em sua cabeça, e o belga, em sua hábil mão. Jan, preferiste portanto que tua mão pintasse bem paisagens, a que tua cabeça pintasse mal homens e deuses.[6]

Lampsonius coloca de modo explícito uma problemática típica de meados dos tratados de arte do século XVI. Do mesmo modo que o historiador contemporâneo a ele e inclusive seu amigo, Giorgio Vasari, elogiava Michelangelo por ele ser favorável à representação idealizada do corpo humano nu e com cunho narrativo, na melhor recodificação da antiguidade greco-romana, o escritor belga elogia Jan van Amstel por ser um precioso imitador da natureza e detalhista quanto à paisagem. Não só aqui a potencialização dessa característica merece atenção, como também, por exemplo, quando elogia Herri met de Bles: “Foi a própria localização excelente de sua pátria que dele fez um artista; nenhum mestre ensinou-lhe. A pequena Bouvines invejou a glória de sua vizinha e criou Henrique, hábil na pintura de paisagem”.[7] A própria geografia, o próprio entorno paisagístico, apela para sua forma e imprime a preferência de gênero artístico do pintor.

Acho interessante trazer esses exemplos para a contemporaneidade e se olhar novamente os filmes dessa mostra e sua nítida insistência pelas visões da paisagem. Planos que deixam clara a pequeneza da figura humana perante as autoestradas ou mesmo em momentos de deslocamento pedestre são constantes em todas as narrativas aqui pautadas no desbravar do território belga. Se, por um lado, poderíamos atribuir isto a uma proposição estética típica de um road movie, não poderíamos enriquecer essa leitura também com uma perspectiva anacrônica da própria construção de uma identidade belga pautada na observação de sua própria produção de imagens durante o Renascimento?

Quando o autor elogia a produção do grande Pieter Brueghel, apenas resta citar um artista de geração anterior:

Quem é este Hieronymus Bosch, renascido no mundo? Quem, tão hábil na arte de imitar os sonhos fantásticos do mestre com o pincel e o lápis, é capaz até mesmo de superá-lo? Louvado sejas, ó Petrus, louvado pela tua arte. Em teu gênero de pintura (e no de teu mestre), pleno de humor e engenho, mereces de todos, em todos os lugares, o prêmio da laude, não inferior a de nenhum outro artista.[8]




Não só pintores de paisagens, mas os artistas belgas se destacariam, nessa perspectiva, por serem representantes das chamadas “pinturas de gênero”. No lugar das grandes narrativas católicas em grande formato, tal qual vistas na Itália, estando imersos em um ambiente com uma religiosidade que se dava de outro modo, menos permeado pelo pathos e que caminhava rumo ao protestantismo, os pintores belgas se tornaram especialistas em quadros de pequeno formato que utilizavam de contos populares a fim de levar mensagens sobre o correto comportamento do homem. Longe dos grandes santos e dos fatos célebres, os protagonistas aqui são os homens comuns e suas banais atividades como o comer, o trabalhar e as relações interpessoais.

Essa construção historiográfica de Lampsonius também me faz lembrar como os filmes dessa mostra estão pautados numa aparente “arte do encontro”. Personagens se esbarram e uma sucessão de situações por vezes bizarras se desencadeia: um acidente de carro apaga a memória de um homem em “Rumba”; uma batida no estacionamento de um supermercado proporciona primeiro o ódio, depois a paixão entre uma mulher madura e um jovem em “Moscou, Bélgica”; dois cadeirantes partem rumo às longínquas terras finlandesas em “Aaaltra”. As ações se dão, portanto, de baixo para cima. Melhor do que um “cinema surreal”, talvez possamos falar de uma produção audiovisual enfocada no lado irreal e improvável da vida, apostando suas fichas em encontros que por vezes parecem beber de um realismo quase fantástico, assumindo o caráter ficcional da arte do cinema.

Do mesmo modo que ao contemplarmos uma pintura de Herri met de Bles as figuras humanas quase que somem perante sua vontade de representar a paisagem, deixando a narrativa numa segunda instância, talvez seja interessante observar esses filmes para além das batatas fritas belgas. Não se trata, porém, de esquecer a carga quase turística desse cinema, por algumas vezes colocada como problema em seus filmes (não à toa Van Damme é título e protagonista de um deles), do mesmo modo que nós, brasileiros, não queremos esquecer Carmen Miranda. O convite aqui é de uma ampliação da leitura da arte cinematográfica, mais pautada em uma perspectiva transhistórica e transdisciplinar, quiçá a dialogar com os pressupostos dos chamados “estudos culturais”.

Quem sabe assim os belgas possam deixar de ser meros “French fucking idiots” e seu típico chocolate seja acrescido de algumas castanhas de caju.


[1] BERGSON, Philipe. “De Bruxelas com amor”. Acesso em 7 de julho de 2013. [http://www.festroia.pt/belgium-homage.php]
[2] HENRY, Hughes. “La Frite est-elle belge?”. Acesso em 7 de julho de 2013. [http://www.frites.be/v4/index.cfm?context=article&ContentID=354]
[3] “Eldorado” se inicia através de assalto a uma residência e desemboca numa viagem pela Bélgica, enquanto “Ex drummer” se constrói a partir do encontro entre quatro personagens a fim de dar vida a uma banda de rock.
[4] Possível exemplificar com a invasão no seio privado que a construção de uma autoestrada causa na família central de “Home” ou na figura do vizinho flamenco que se apaixona por uma dona de casa francófona e que pretende vender seu único imóvel, contra a vontade de seus filhos, em “Propriedade privada”.
[5] BERBARA, Maria. “Propria Belgarum laus: Domenicus Lampsonius e as Pictorum aliquot celebrium germaniae inferioris effigies” in Revista de História da Arte e Arqueologia. Campinas: Editora UNICAMP, volume 8, pp. 1737.
[6] Ibidem, pág. 25.
[7] BERBARA, Maria. Op. cit., pág. 27.
[8] Ibidem, pág. 30.


(texto publicado originalmente no catálogo da mostra "Cinema belga contemporâneo", realizada na Caixa Cultural de São Paulo entre os dias 14 e 26 de janeiro)
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