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Gabinete e perenidade


[15 de outubro de 2011]



Entre os meses de setembro e novembro, na Galeria de Arte do SESI, em São Paulo, é realizada a exposição “Nelson Leirner 2011 - 1961 = 50 anos”, retrospectiva da produção do artista paulista. As vitrines do espaço expositivo incitam o passante da Avenida Paulista a ali entrar a fim de conferir esse importante agrupamento de obras dos mais diversos momentos de sua carreira. Logo na entrada, ao lado da recepção, uma banca de jornal. Espaço amplo, tons de vermelho sobre o metal com aparência nova. Trata-se de uma banca de jornal com roupagem “contemporânea”, como aquelas espalhadas pela Paulista. Não são mais “apenas” bancas de jornal; tudo é vendido nessas cavernas: ao lado de publicações brasileiras e estrangeiras encontramos líquidos, doces, cigarro, souvenirs.

A obra de Leirner está baseada nessa configuração. O artista preenche o espaço interno com elementos encontrados facilmente em bancas não-artísticas. A seguir sua pesquisa acerca da apropriação de objetos e do colecionismo, ele pinça fascículos que compõe uma coleção de naturezas-mortas. Carros em miniatura e pedaços de ossos a fim de serem montados e compor um esqueleto. Brinquedos em miniatura, alguns adesivos religiosos e outros relativos a desenhos animados. A História Antiga vem resumida, ironicamente, através de dois dados: em uma lateral temos miniaturas de soldados romanos, enquanto na outra extremidade vemos bonecos egípcios.

Leirner cria um kunstkammer, um “gabinete de curiosidades” da cultura material contemporânea. Um museu dentro do museu. Um prenúncio dos objetos colecionados, apropriados e recodificados dentro da sua trajetória artística e a compor esta exposição. É possível entrar nessa estrutura metálica? Não, há um distanciamento físico por parte do espectador (opção poética ou museológica?). A própria banca de jornal, portanto, é transformada em mera imagem, sem o direito da tridimensionalidade interna, tal qual uma imagem impressa. É quase possível circundá-la, mas o vazio do espaço destinado funcionalmente à aproximação dos indivíduos com os objetos salta aos olhos.

E estes objetos são curiosos? Banais demais para sê-lo, atravessadores de gerações e faixas etárias. Mas todo objeto não seria banal? Os gabinetes de curiosidades não consistiam justamente na coleção de objetos exóticos, seja pela sua beleza ou feiúra exorbitantes, pela discrepância cultural ou pelo distanciamento histórico? Com sua pequena galeria, Leirner dá o estatuto artístico ao “meramente banal”, tal qual dito por Arthur Danto e coloca em xeque o possível destino desta cultura material: sua institucionalização enquanto objeto museográfico. É como diz a primeira página do “Jornal do não artista”, distribuído ao lado desta instalação: “Hobby – um museu de tudo”. Um monumento à inegabilidade da musealização, à desbanalização das coisas e ao significado que aniquilirá o vazio.



Enquanto isso, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, próxima a uma das suas diversas entradas, um pouco afastada dos elevadores do prédio principal, outra banca de jornal. O título desta é “O que desaparece, o que resiste (II)” e a autoria é de Leila Danziger. Esta instalação fazia parte da exposição “Campus (Des)situado”, realizada dentro do 20º Encontro Nacional da ANPAP, entre setembro e outubro. Das cores e pequenos objetos de Nelson Leirner para a fruição das prateleiras monocromáticas e vazias. Do espaço interno do museu para o objeto artístico que está aos olhos dos transeuntes da universidade.

As pessoas que estudaram ou frequenteram a UERJ possivelmente tem a lembrança de como esta banca de jornal era decorada com uma variedade de publicações, todas amontoadas e escapando do seu espaço interno. Uma vez fechada, a banca foi cedida para a artista e, creio, causou estranhamento a aqueles que possuíam uma relação, mesmo que de passagem, com a instituição. O gabinete de curiosidades informativas foi devastado. No lugar das novas publicações, a artista distribui pelo espaço exemplares de folhas de jornal apagadas pelas suas mãos, através de fita adesiva. Nomes próprios, manchetes e legendas dão lugar ao rasgo, ao fantasma do conhecimento, da novidade que rapidamente se transforma em passado.

Aqui é necessária a entrada do espectador nesta caixa de metal para se experimentar fisicamente não apenas o vazio espacial, mas também decorativo. Faz-se importante imaginar ou se lembrar os modos como essa banca já foi preenchida por um jornaleiro. Reproduções dos seus trabalhos estão à disposição das mãos do público. Nelas há uma frase do poeta Paul Celan carimbada, “Para-ninguém-e-nada-estar”. Pouco a pouco, as pilhas brancas destas folhas dão mais espaço para o cinza.

Três televisores exibem vídeos recentes da artista. O som de apagar ou rasgar protagoniza “O que desaparece, o que resiste”, onde vemos apenas as mãos de Leila Danziger a provocar um esquecimento voluntário de partes dos jornais. Este ato cria poemas visuais em “When man’s castle is a storage room” (“Quando o castelo do homem é um depósito”), onde manchetes fragmentadas e somadas dão corpo a versos. Paul Celan aparece novamente, através da voz, em “Pallaksch, Pallaksch”, vídeo que sobrepõe imagens de jornais com a paisagem. Vemos folhas de jornal a voar sobre a areia, chegando ao contato com o mar. O conhecimento, mais do que apagado na superfície, passa a integrar o mundo e é dissipado no movimento das ondas. Ao fundo da banca, uma imagem que dialoga perfeitamente com estas em movimento: um agrupamento, uma parede frágil de jornais é montada. Imagens do céu e do mar em erosão na celulose.



Dois desertos. O deserto criado por Leila Danziger através da transformação da matéria em pó. Nelson Leirner e o banal que vira matéria através do excesso oferecido no SAARA; não o deserto, mas o mercado popular do Rio de Janeiro. Duas interpretações diferentes do gabinete de curiosidades rumo a um gabinete de perenidades.
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