Gustavo Caboco
[12 de setembro de 2019]
Conheci Gustavo Caboco e iniciamos um diálogo devido à exposição “Vaivém”, atualmente em temporada pelas unidades do Centro Cultural Banco do Brasil. Baseado na minha investigação de doutorado na UERJ sobre as relações históricas entre as redes de dormir e o Brasil, estava buscando por artistas de origem indígena de diferentes regiões do país que pudessem colaborar com o projeto. Após consultar a curadora Beatriz Lemos – obrigado, Bia! – ela me indicou o seu trabalho, o qual havia conhecido após coordenar um programa de arte contemporânea em Curitiba. Nos meses seguintes, acompanhei o nascimento das imagens que compõem a série “Rede indígena: extensão Wapichana” – na distância entre os estados do Paraná e do Rio de Janeiro, mas na velocidade instantânea das mensagens de WhatsApp.
O olhar de Caboco é baseado em outra distância geográfica: a da sua relação com o atual estado de Roraima, com suas narrativas que envolvem seus familiares e seu pertencimento peculiar a uma identidade indígena. Filho de Lucilene, mulher Wapichana, o artista se enxerga como uma extensão entre essa origem e a cidade onde foi criado, Curitiba. Se há uma distância de quilômetros que separam os dois lugares, não parece haver distanciamento no que diz respeito à sua escuta afetiva das narrativas de seus parentes. Por um viés autobiográfico, o artista revisita a narrativa diaspórica de sua mãe, as histórias de seu Tio Casimiro e a memória de sua avó Maria. Nos meandros dessas histórias, bananeiras aparecem e adoecem, as redes balançam e se pinga pimenta nos olhos. Como ele próprio diz sabiamente: “A terra muda”.
Chama a atenção como o trabalho de Caboco pode tomar diferentes linguagens e formas de apresentação. Em “Vaivém” as imagens eram apresentadas como estandartes feitos com serigrafia impressa sobre tecidos vermelhos. Aqui, elas são acompanhadas por textos e se transformaram em livro. Comum a essas duas formas e ao interesse do artista no cinema de animação está um elemento fulcral: o desenho. O risco tem sido a célula de sua pesquisa e, nas suas mãos, o nosso olhar acompanha os traços e se impressiona como uma coisa pode virar outra. Os contornos de uma coxa humana se transformam nos punhos e pano de uma rede que, por sua vez, irá se conectar a uma bananeira. Seus desenhos podem ser impressos no centro de uma folha de papel, mas não se apresentam como algo geométrico; parecem ser fruto de organicidade pura.
Olhar a sua produção como pertencente ao lugar de fala das culturas ameríndias se faz essencial em um momento histórico em que tantos agentes se esforçam por apagar as memórias dos povos originários no Brasil – através de suas imagens nos lembramos que sim, o ato de desenhar pode ser um ato político. Sua poética, contudo, se apresenta de maneira aberta, longe da arte-panfleto – as palavras não aprisionam, mas libertam; os desenhos parecem ter algo de movimento constante. Gosto, portanto, de observar a sua produção em relação com artistas – indígenas e não-indígenas – que se valem do desenho, da criação de narrativas e da equação entre imagem e palavra para afirmar as diferenças no mundo.
Riscar é fazer lembrar – e mal podemos esperar pelas futuras ficções mnemônicas de Gustavo Caboco.
(texto escrito para a introdução do livro “Extensão Wapichana”, de Gustavo Caboco, editado pela Aua Editorial)