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Herança indesejada


Ana Vidigal e Nuno Nunes Ferreira
[02 de março de 2021]



No dia 25 de julho de 2020, em plena instabilidade da pandemia do COVID-19, uma tragédia ocorreu na Avenida de Moscavide, em Lisboa: Bruno Candé, um homem negro de 39 anos de origem guineense e que exercia a profissão de ator foi assassinado por Evaristo Carreira Marinho, um homem branco português de 76 anos que é auxiliar de enfermagem reformado. O crime se deu alguns dias após ambos terem uma discussão que terminou com xingamentos racistas. Segundo a reconstituição do Ministério Público[1], frases como “Vai para a tua terra, preto!” e “Tens toda a família na senzala e devias também lá estar!” foram proferidas e seu racismo incitou o crime de ódio planejado e consumado três dias depois.

Em outra série desses xingamentos proferidos pelo assassino – que prefiro não citar explicitamente aqui -, a primeira pessoa do singular é usada em agressões verbais que referem a violações e violências físicas feitas por ele em África. A última frase supostamente dita por ele ao final de seu primeiro embate foi “Tenho lá armas em casa do Ultramar e vou-te matar!”. Além de uma infeliz promessa, essa frase trazia também um dado biográfico: sua atuação como militar em Angola entre os anos de 1966 e 1968 na chamada “Guerra do Ultramar” ou, seu nome mais costumeiro, “Guerra Colonial Portuguesa”. Evaristo foi, portanto, um dos milhares de portugueses participantes dos conflitos armados entre Portugal e suas colônias no continente africano entre 1961 e 1975, ano final do Estado Novo no país.

Do seu recrutamento – seja voluntário ou obrigatório –, Evaristo herdou a posse de armas, a violência, o racismo e, certamente, muitos traumas.

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Ana Vidigal e Nuno Nunes Ferreira, os dois artistas que ocupam as salas do Museu do Chiado na presente exposição, também podem ser considerados herdeiros – mas de espólios diversos deste episódio trágico. Ambos os artistas são filhos de homens recrutados para esta guerra entre o desejo de permanência da colônia e a independência de diversos países em África. Sessenta anos após o seu início, os diversos nomes que a escrita histórica deu a esse momento parecem – mas não conseguem – se sobrepor às diversas micro-histórias[2]das quais eles são personagens. Quando crianças, escutavam histórias sobre os conflitos, viam fotografias tiradas por seus pais e tinham experiências do tempo muito diversas – se Ana Vidigal esperou por anos até o retorno de seu pai à casa, Nuno Nunes Ferreira vivenciou os anos da guerra sempre no passado. Ela sentiu a espera fisicamente ao passo que crescia; ele se pôs a imaginar o que teriam sido aqueles anos pelos jornais e fotografias. O pai dela esteve no território hoje chamado por Guiné Bissau; o pai de Nuno, em Angola.

Além de suas diversas formas de presenciar os traumas da guerra – ela com o presente, ele com o passado -, ambos os artistas são de distintas gerações e experimentam a visualidade de formas contrastantes. Tenho a impressão de que o conjunto de seus trabalhos presentes nessa exposição traz ao público visões existenciais e pesquisas artísticas que se complementam principalmente pelas diferenças. Há algo, porém, que os une enquanto método: seu interesse pela noção de acúmulo.



Nos trabalhos de Ana Vidigal, essa amálgama de elementos surge de maneira iconófila: o seu interesse pelo papel e, mais do que isso, pela imagem reproduzida tecnicamente sobre o papel, possibilita à artista criar composições das mais variadas onde o excesso imagético pode ser o protagonista. Uma imagem sobre outra imagem tendo quantas outras também na mesma composição – Vidigal muitas vezes traz ao público uma espécie de atlas falsamente desorganizado. Sua pesquisa tem uma exploração cromática que não nega sua formação inicial como pintora: manchas de cor surgem a partir da associação de imagens e um claro interesse na relação bidimensional do corpo do público para com o objeto. Costurando também parte considerável de seu trabalho, eis certo humor – o kitsch, o excessivo, o nonsense, enfim: aquelas imagens que fogem facilmente à noção elitista de bom gosto e elegância.

A artista apresenta nas primeiras salas da exposição uma série de trabalhos em que se apropria de impressos que circulavam durante a sua infância.[3]Vidigal optou por explorar a própria superfície do papel e é dentro desta área que as fricções narrativas se dão. Em “I had a farm war in Africa”, a língua inglesa serve para se jogar com a dualidade entre as posses de portugueses em África e a guerra que se fazia necessária para que o colonialismo permanecesse. Estas imagens, porém, não se entregam à literalidade desta frase e, tal qual uma charada, preferem trazer ao primeiro plano suas sutilezas. Alguns destes trabalhos trazem figuras de pessoas negras representadas de forma estereotipada – muito semelhantes, infelizmente, a como vemos até hoje os Conguitos, marca de chocolates espanhola que toma seu nome da escravidão negra no Congo. Uma das obras dessa série se trata do recorte do corpo de um garoto negro que tem sua fisicalidade aprisionada por outro papel que traz uma coleção de aves – eis uma associação comum feita pelo olhar exotizante e eurocêntrico.

Algo semelhante pode ser visto no trabalho “Casa Africana”, que faz referência à famosa loja de mesmo nome que existiu em Lisboa desde 1872 e que tinha como figura-propaganda um jovem negro a carregar embrulhos para pessoas brancas. Como dissipar um racismo tão introjetado na cultura portuguesa? Ana Vidigal parece, com esses trabalhos, apontar para um pastiche que contribui com o embaralhar e colocar em dúvida narrativas tão sólidas que levaram à permanência da loja Casa Africana até a década de 1990.




Nas salas seguintes são mostrados alguns trabalhos de Nuno Nunes Ferreira e se faz perceptível sua diferente relação com a noção de acúmulo: se os trabalhos de Ana Vidigal sugerem um deslocamento em objetos que envolvem a noção de consumo, as séries do outro artista se concentram em jornais, capas de livro e fotografias do arquivo de seu pai. Ao observarmos a trajetória do artista – e conhecendo também seu ateliê - é quase inevitável o relacionar ao arquivista: suas caixas de papelão espalhadas tentam organizar o imenso volume que possui de periódicos, livros, fotografias e outros objetos. Poderíamos dizer que sua pesquisa também se aproxima das figuras dos acumuladores[4], mas quando estamos perante seus trabalhos e exposições, o que salta aos olhos é justamente o seu esforço organizacional: ele acumula para, ficcionalmente, criar formas de apresentar este material através de um princípio narrativo que nos permita perceber ciclos, repetições e coincidências. Obsessão é uma palavra-chave para sua poética.

O tríptico “Ir e morrer. Ir e regressar. Não ir e desertar” é exemplar de seu método obsessivo. A partir de sua coleção de jornais, o artista apresenta três narrativas da guerra: os obituários de soldados, a comemoração dos regressos à Portugal e a problematização daqueles que se negaram a participar. Próximo a esse trabalho, um dos destinos (ou recusas) de muitos dos nomes próprios que aparecem no jornal – Angola – tem seus limites cartográficos refeitos a partir da sobreposição de livros voltados a diferentes aspectos de seu processo colonizatório; de títulos que vão desde “Angola é nossa!...” (1975), de Augusto Dias ao “Livro negro da descolonização” (1977), de Luiz Aguiar, as capas trazem as sedes de domínio e de liberdade lado a lado. A presença desse trabalho perto das coleções de recortes feitos pelo artista me leva a refletir também sobre esses corpos recrutados durante a colonização – quais os seus lugares nas narrativas da macro-história? Há espaço para esses corpos que, desejosos ou obrigados a ir ao conflito, foram uma espécie de massa de manobra da colonização portuguesa e que alimentaram uma identidade nacional que ainda é embebida da nostalgia de imperialismo?

Esse desencontro entre uma ordem estatal portuguesa e os anseios desses milhares de pessoas levam o artista a mostrar dois trabalhos que formalmente se apresentam a partir do deslocamento e do corte. Seja a imagem de seu pai, sejam as “mulheres dos ex-combatentes condenadas a 40 anos de guerra”, sessenta anos depois desta guerra, os traumas se fazem presente na memória social de Portugal e de suas diferentes ex-colônias em África. Como diz essa mesma matéria de 2006 utilizada por Nunes Ferreira no trabalho “Juntos, mas separados”, “O único apoio que tínhamos era o álcool”. Sente-se o peso da memória, assim como os invólucros de bala de canhão empilhados que estruturam o trabalho “Escola Prática de Cavalaria de Santarém”.




Esta equação que perpassa toda a exposição entre memória, arquivo, presente e trauma ganha um tensionamento na última sala onde, finalmente, os trabalhos de Ana Vidigal e Nuno Nunes Ferreira são colocados lado a lado. Em “1344 dias”, Nunes Ferreira faz um vídeo onde álbuns de memórias produzidas a partir do número de dias de presença do seu pai em Angola são folheados - fotografias, embalagens, tickets, recortes. O desejo fotográfico de uns – e a expressão de seu gozo capturada pela fotografia – era proporcional ao sofrimento de outros, tal qual Vidigal sutilmente propõe com um trabalho intitulado “Vidas a(r)didas” onde três quicos militares são dobrados e moldados de forma semelhante à logomarca da Adidas. Mais uma vez jogando com as palavras, a artista também nos faz lembrar da relação direta entre guerra e capitalismo. Assim como em toda a exposição “Herança”, o olhar de chumbo de Nuno Nunes Ferreira cria um contraponto para a ironia constante de Ana Vidigal.

Nesse encontro de pesquisas – e na amizade nutrida nos últimos anos entre esses dois artistas – prevalece certa melancolia não apenas quanto à forma como lidam e recodificam suas memórias familiares, mas também como ambos observam e remodelam narrativas para as múltiplas histórias de Portugal. O seu olhar certamente não é o do nacionalismo tão proclamado pelos Da Vinci, em 1989, na música “Conquistador”: “Era todo um povo / guiado pelos céus / espalhou-se pelo mundo / seguindo os seus heróis / e levaram a luz da cultura / semearam laços de ternura / foram mil epopéias / vidas tão cheias / foram oceanos de amor”.[5]



Não há nada de amoroso nas relações coloniais disseminadas pelo esferas estatais de Portugal – do Império à democracia recente. De toda forma, esse ideário que constitui uma identidade hegemônica portuguesa permanece e, talvez desde o Estado Novo, está latente – vide os quase quinhentos mil votos recebidos por certo candidato à presidência que organizou, após a morte de Bruno Condé, uma manifestação afirmando que “Portugal não é racista”. Neste momento em que as narrativas históricas são moldadas via tweets e fake news, é essencial tocar nos traumas históricos das muitas histórias da colonização de Portugal – vistas, por exemplo, nos monumentos públicos espalhados pelo país.

O que esta exposição propõe é um exercício intimista de rememoração, reflexão e fissura em pequenas histórias que compõem o quebra-cabeça de um todo extremamente complexo onde processos de racismo estrutural foram solidificados ao passo que uma geração de recrutados portugueses sofreu traumas insuperáveis. Deste modo, cada artista à sua maneira, traz à tona que, sim, o racismo foi e é um dado essencial da cultura portuguesa.

Ao final de uma entrevista recente para a TVI, o ativista Mamadou Ba diz: “A disputa sobre a memória é diferente da disputa para a memória. Uma disputa sobre a memória é daqueles que não querem que o passado passe. Uma disputa para a memória é a daqueles que querem ser incorporados na narrativa coletiva. Querer ser integrados à narrativa coletiva, querem ser integrados na narrativa coletiva para que sejam representadas e refletidas no imaginário coletivo nacional”.[6]

No anseio de uma disputa para a memória coletiva e reparação histórica, nada melhor que começarmos a partir de nossos baús, álbuns e mesas de jantar.


[1]HENRIQUES, Joana Gorjão. “Um riso em tom de gozo fez arguido disparar cinco tiros contra Bruno Candé” in Público, Lisboa, 29 de janeiro de 2021. Acesso em 01 de março de 2021. [https://www.publico.pt/2021/01/29/sociedade/noticia/riso-tom-gozo-fez-arguido-disparar-cinco-tiros-bruno-cande-1948359]
[2]Refiro-me a um gênero historiográfico desenvolvido por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi em sua trajetória e especialmente a partir de uma série de publicações chamada “Microstorie”, publicada na Itália entre 1981 e 1988. O livro mais conhecido de Ginzburg no Brasil - exemplar do seu interesse pelas narrativas das vozes subalternizadas por uma escrita da macro-história - é “O queijo os vermes”, de 1976.
[3]É importante lembrar que a artista já havia desenvolvido outros trabalhos previamente em que tocava em questões relativas à sua família e sua relação com a Guerra Colonial Portuguesa: “Void”, uma instalação de 2007 e “Penélope”, outra instalação feita em 2000.
[4]É tamanha a curiosidade pública em torno das pessoas que sofrem de acumulação compulsiva que, desde 2009, o canal estadunidense A&E possui um programa chamado “Hoarders” onde pessoas apresentam suas casas e suas relações com o acúmulo de objetos.
[5]Agradeço a Tiago Cadete pela referência a essa música no seu espetáculo performativo “Atlântico” (2020), onde há toda uma sequência dedicada à reflexão em torno dessa canção.
[6]Entrevista de Mamadou Ba para a TVI, transmitida em 24 de fevereiro de 2021. Acesso em 01 de março de 2021. [https://tvi24.iol.pt/sociedade/antirracismo/mamadou-ba-e-o-haraquiri-nacional-nao-ha-mudanca-sem-incomodo-o-racismo-mata]


(texto escrito para a publicação relativa à exposição “Herança”, de Ana Vidigal e Nuno Nunes-Ferreira, no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em Lisboa, Portugal, entre 18 de maio e 29 de setembro)
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