Histórias mestiças
[23 de fevereiro de 2013]
Entre os dias 29 de agosto e 5 de outubro, foi realizada no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a exposição “Histórias mestiças”, com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz. Antropóloga e professora da Universidade de São Paulo, a curadora tem uma extensa pesquisa no que diz respeito às relações entre cultura, imagem e questões raciais no Brasil, sendo autora de alguns livros essenciais para essa reflexão como “O espetáculo das raças” (1993). Enquanto isso, mesmo que o currículo recente de Pedrosa aponte para curadorias fora do Brasil como a Bienal de Istambul (2011), não devemos esquecer sua co-curadoria na célebre “Bienal da Antropofagia”, em São Paulo, sob curadoria geral de Paulo Herkenhoff.
Como o próprio título coloca em tensão, a exposição gira em torno da ideia de mestiçagem no Brasil – entre as Histórias (com agá maiúsculo e com pretensões a serem oficiais) e as histórias, as narrativas próximas da ficção e da fabulação que também giram em torno dos debates raciais no Brasil. É possível aproximar a exposição de um texto clássico de autoria de um cientista alemão, Karl Friederich von Martius, que se intitula “Como se deve escrever a História do Brasil” (1845). O texto é comumente relembrado por basear parte de sua argumentação na concepção de três grandes raças que dariam substância à jovem nação brasileira – segundo o autor, “a de cor cobre ou americana, a branca ou a caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular”.
Para tal, nada mais justo do que se pensar em salas expositivas que estão baseadas em tópicos constantes da produção de imagens sobre o Brasil, como “Ritos e religiões”, “Tramas e grafismos”, além de “Máscaras e retratos”. Em uma expografia que em muito dialoga com as proposições recentes de Paulo Herkenhoff no Museu de Arte do Rio, o espectador era convidado a adentrar espaços permeados por imagens que são “friccionadas” (como o release da exposição dizia) e convidavam a um diálogo pela distância histórica e pelo contraste entre matérias e conteúdos.
Por outro lado, essa configuração que poderia ser vista como “warburguiana” do espaço acarreta em outras implicações: até que ponto o público consegue apreender as especificidades históricas das imagens justapostas nas salas da exposição? Apenas como um dentre os vários exemplos possíveis, as obras com cunho indianista e modernista de Vicente do Rêgo Monteiro se encontram próximas a objetos indígenas, ou seja, se por um lado a temática aparece de modo claro, por outro as minúcias documentais das imagens por vezes se esvaem na amálgama de informações, trazendo por instantes o receio de que alguns diálogos se dão mais através da forma do que a partir dos usos e campos semânticos daquelas imagens. Ao fim da exposição, por mais que o fantasma formalista da famosa “Primitivism in 20th century art: affinity of the tribal and the modern”, realizada no MOMA há trinta anos, tenha se afastado de minha leitura, se faz difícil não manter em mente a visão crítica perante essa “afinidade” entre as imagens.
Isso me parece bem exemplificado através de um trabalho de Adriana Varejão que é capa de parte do material bibliográfico da exposição e onde a artista soma à sua própria imagem a apropriação de pinturas corporais indígenas presentes nas imagens do viajante português Joaquim José Codina durante o século XVIII. Apropriar certamente não quer dizer recodificar e fica a pergunta: justapor esses dois dados, o rosto da artista e uma série de rostos indígenas plasmados por um homem ocidental há três séculos ativa, atualiza ou “mestiça” o nosso senso comum sobre as muitas mestiçagens no/do Brasil?
Há a dúvida, mas também a certeza de que navegar por esse oceano de questões em um país continental e culturalmente tão diverso como o Brasil é, certamente, uma aventura.
(texto publicado originalmente na seção Art Notes, dentro do website da revista ArtNexus, em dezembro de 2014)